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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.2 EIXO DE DISCUSSÃO B: SOBRE O COTIDIANO

4.2.1 Condições de Trabalho

O cotidiano das entrevistadas é organizado por suas relações de trabalho, o qual aparece como indicador que norteia o parâmetro de normalidade. Salientam-se basicamente dois tipos de travestis: as que possuem vida social e trabalho durante o dia (com ênfase para as transexuais, ou mesmo travestis que não se prostituem) e as que possuem vida social e trabalho noturno (com ênfase para travestis) (cf. Quadro 2). A maioria das travestis cumpre dupla jornada de trabalho:

“Olha, eu mexo com salão. Assim, o dia a dia: salão, e de vez em quando, [do] prédio para a pista.” [Fetiche de Madalena];

“Eu trabalho na noite [faz apenas referência a prostituição]”. [Kelly].

Algumas trabalham com a execução de programa como forma alternativa de aumentar a renda e ter condições diferenciadas em comparação à prostituição de rua, uma vez que a maioria das entrevistadas trabalha cotidianamente em salões de belezas ou ensaia outras possibilidades profissionais, não convencionais:

“Restaurante... Tem vez que eu trabalho de garçonete. Lá é bem liberal... [Fiz programa]... Eu já fiz programa assim, mas na internet. O cara me pega na porta de casa e me deixa na porta de casa... Ganhei dinheiro também, lógico [risos]... [Mas] só quando eu preciso. Só quando eu quero alguma coisa, aí eu faço”. [Patizinha].

As profissionais que exercem a prostituição na rua estão sujeitas ao tempo e às mudanças climáticas, envoltas de um ambiente de marginalidade, drogas e assassinatos, mas também estão condicionadas aos valores e atitudes individuais de cada profissional:

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“Depende, porque não é... Porque é assim, você tá na pista, você tá ganhando pouco, passando frio e tudo.” [Patizinha]

“As pessoas falam assim pra mim, ‘você é linda’. Aí eu falo assim, ‘não, é a minha geração que quer estar viva!’ (...) Quem vivi muito em prostituição, corre o risco constantemente, entendeu? Então a vida é um risco. Quem vive vinte quatro horas a avenida, muito risco. Prostituição, droga, marginalidade. (...) Deve ser umas três, umas quatro [da minha geração, que eu me lembre e que ainda estão por aqui e vivas]. Aí, num universo de umas cinquenta.” [Fetiche de Madalena]

Diante das precárias condições de trabalho a que as prostitutas na rua estão submetidas, cada vez mais condicionadas às situações de risco e à pouca segurança, há um espaço de reflexão e ação, voltando-se para as questões de realização dos próprios desejos, conforme fala de uma delas que deixou temporariamente o cotidiano de programas em função da religiosidade e de a prostituição de rua ser marcada pela violência:

“Aí eu comecei a sentir os desejos, porque eu era da vida do pro... Fazia muito programa. Aí eu comecei a sentir vontade de ter os caras, sabe? O mais difícil pra mim é isto. O desejo por homem, entendeu? Que eu não consegui ficar [na igreja].” [Colegial].

“... A rua virou a cracolândia, então, acabô. Então assim, a rua hoje é mais fetiche, é mais libido, de você ir lá e viver aquilo.” [Fetiche de Madalena].

Deste modo, apontam o programa em outra perspectiva, como uma situação de ‘vício’, diferente da observada pelas respondentes de Pelúcio (2007). As travestis também não aceitam gays que fazem ‘pegação’, encontros informais com homens nas redondezas da área de prostituição, pela disputa de espaço e de mercado, uma vez que estes homossexuais não recebem pelo sexo, considerando, ainda, que elas já competem umas com as outras pelo domínio destes espaços, que, a princípio são de domínio público, mas à noite, são vistos como privados.

Ganham menos dinheiro as que se prostituem na rua do que as que fazem o primeiro contato com os/as clientes pela internet. O uso da internet foi apresentado como mais uma alternativa de captação dos/as clientes, além de proporcionar condições de trabalho mais adequadas, mas também condiciona a novas situações de riscos e exposições, já que os/as

91 clientes podem pegá-las em suas residências. A internet, portanto, enquanto meio de contato inicial, pela promoção da distância transacional com noção de relativização do espaço físico- presencial (BARBOSA, 2009), no caso, mascara a representação de maior segurança tanto para a profissional quanto para o/a cliente. Na rua, a travesti pode recusar com maior facilidade a prestação dos serviços às pessoas que estão acompanhadas, que podem oferecer maiores riscos à sua integridade física no ato do programa. Na maioria das vezes, ao recusar o/a cliente na rua, ‘fica por aquilo mesmo’, ao passo que o cliente vai em busca de outra profissional do sexo, mas dificilmente consegue a contratação dos serviços. No campo de trabalho, elas partilham informações e um código de conduta pela preservação e integridade de suas vidas, mediante a condição estabelecida entre a seguridade das mesmas, o que sugere uma espécie de conduta ética profissional, que será explicada adiante. Deste modo, quando o cliente está acompanhado de mais uma pessoa, oferece uma situação de risco para as mesmas, pois, em conflito, a profissional do sexo teria que se defender de mais de uma pessoa.

Ambos os campos de trabalho, prostituição de rua e área de estética e beleza, estão condicionados aos períodos e fases do mercado. A média de ganhos também varia. As profissionais mais experientes na área de salões de beleza salientam ganhos financeiros devido aos clientes fixos, enquanto, nas pistas, não possuem tais clientes e acabam tendo pouca procura, provavelmente em decorrência da idade e pela concorrência. Isto força a redução do custo do programa.

As travestis mais jovens apontam justamente uma inversão desta dinâmica financeira. Na pista, possuem mais clientes e rentabilidade, enquanto no salão de beleza não conseguiram montar uma agenda de fixos, obtendo menores lucros. Apontam também indícios que as contingências da prostituição dificultam um planejamento financeiro elaborado, diferente das de um salão de beleza, conforme relato a seguir:

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“O salão é o dinheiro que você,... É suado. Não vou dizer que o outro dinheiro [o da pista] também não é suado. Mas é um dinheiro que você sabe o que você faz; Porque o dinheiro da pista você pega, vamos botar, duzentos reais; [e] Você gasta duzentos e cinquenta amanhã [no exemplo já gerou um déficit de cinquenta reais]. Então você sabe que vai vir muito mais no outro dia. Então você mesmo sai e gasta. Agora quando você está ali suando, esticando um cabelo, não vai esbanjar todo o dinheiro, que você não sabe se vai vir um cliente amanhã ou depois pra fazer a mesma coisa. Agora, na rua não. Na rua sempre vem. (...) Com certeza [o salão me ajudou a economizar mais]” [Summer].

Já em relação às transexuais, não foi possível traçar nenhum paralelo, tendo em vista as poucas entrevistadas e as condições de entrevistas vivenciadas, necessitando de novas investigações sobre este aspecto.

Em relação à prostituição de rua, as condições de trabalho não oferecem os mesmos ganhos quando comparados a um passado remoto no DF, visto como um tempo economicamente interessante para se ganhar dinheiro com a prostituição, principalmente entre as travestis. A noite era marcada por uma gama considerável de clientes, que também pagavam bem e geravam maiores rendimentos, ocasionando maior rentabilidade, somados ao descontrole e à falta de planejamento para com os ganhos, por parte das travestis, que acreditavam que, no outro dia, provavelmente conseguiriam dinheiro, ainda que observassem as dificuldades e a instabilidade da clientela. O trabalho na noite e a prostituição facilitavam para que elas também gastassem com a manutenção das suas personagens na realização dos programas.

Se gasta muito, também, consigo mesma, pois, da área de prostituição, após o trabalho, saem para se divertir. No passado, no início da carreira de prostituição, gastava-se muito mais, diante das possibilidades de maior rentabilidade oferecida pelo mercado, associadas aos lazeres almejados, para garantir um bom status social entre as LGBT. Elas frequentam bares, festas e boates em sua maioria destinadas ao público LGBT e assumem que acabam desvalorizando seus ganhos. Principalmente considerando o fato de a noite de Brasília, ainda que em alguns lugares, para pessoas vistas como de camada populares, é uma noite cara, associada às poucas alternativas e qualidade de serviços oferecidos. Deve-se

93 considerar, ainda, o fato de que muitas se drogam, contribuindo para a diminuição de lucratividade e para a redução da qualidade de vida.

O uso e o consumo abusivo das drogas, que por sua vez são caras e ilegais, são apontados como uma espécie de fuga da realidade ou de seu enfrentamento. A dificuldade em constituir uma nova família e relacionamentos mais duradouros as direciona a viver em pequenos grupos de travestis, compartilhando histórias de vida parecidas, auxiliando nas suas respectivas sobrevivências, por formar uma rede social informal e transitória, que substitui as relações familiares temporariamente. Tudo isto, somado às dificuldades de promoção da cidadania deste público mediante as poucas políticas públicas para promoção da identidade de gênero, merece cuidados. O somatório de dificuldades possibilita e ocasiona a depressão.

Ao retomar a discussão sobre rentabilidade versus lucratividade, o comportamento visto como compulsório, desmedido e desregulado com os gastos dos ganhos advindos da prostituição, são diferentes quando comparados ao ambiente de salão de beleza. Há uma relação de custo-benefício diferenciada para quem trabalha no salão de beleza e para quem trabalha com prostituição, tendo em vista que se pode ter um cliente fixo ou não com maior frequência no salão quando comparado com a pista. Assim, esse grupo social necessita de cuidado e atenção privilegiados para manutenção dos gastos. O trabalho no salão de beleza possibilita a redução das situações de risco e vulnerabilidade da prostituição e também é uma espécie de refúgio ou alternativa para não ser levada à reprodução da marginalidade.

A condição de trabalho em salões de beleza, além de prover o sustento, proporciona a prevenção e a promoção da saúde, como qualidade de sono e inclusão social, por exemplo. As transexuais diferenciam-se nesta questão, pois raramente se envolvem com a prostituição e, geralmente, encontram melhor aceitação na área de estética e beleza, visto inclusive, como um estereótipo a ser transposto por algumas delas que apontam maior grau de escolarização. É neste grupo que fica bem marcado o movimento de ensaiar outras possibilidades profissionais

94 além dos chamados salões de beleza, passando a atuarem e a serem vistas em outros campos e áreas profissionais que, por sua vez, condicionam-se às capacitações, competências e/ou habilidades profissionais necessárias e exigidas no mercado de trabalho para o exercício dos cargos almejados.