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EIXO DE DISCUSSÃO D: SOBRE A DISCRIMINAÇÃO E O PRECONCEITO

4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.4 EIXO DE DISCUSSÃO D: SOBRE A DISCRIMINAÇÃO E O PRECONCEITO

“Que também tem muito isto, homofobia. É assim, você ser atacada pelos outros, na rua... Quando você passa na rua, geralmente, tem homens que não gostam de, de homossexuais, das gays, de travestis, de gays, estas coisas [LGBT]. Então, você sai e jogam piadinhas. Muitos querem até te agredir. Por homofobia, por não gostar do homossexual.” [Summer].

Este eixo ou zona de sentido foi pensado diante da percepção de que a discriminação e o preconceito, enquanto indicadores, presentes e evidenciados em todo processo de coleta de dados acerca da formação e do desenvolvimento das travestis e transexuais, no sentido de interferências na construção de suas respectivas identidades partilhadas e socializadas a partir dos seus diversos grupos e subgrupos de pertencimento. A discriminação e o preconceito aparecem de forma marcada, como foi apresentado em todos os eixos de discussão, fomentando uma interface de conexão com todas as dimensões e zonas de sentido antes apresentadas: identidade, cotidiano e religiosidade.

Como apresentado, a identidade de gênero de travesti e transexual perpassa inicialmente pelo conflito da sua orientação sexual a partir da orientação e percepção do desejo afetivo-sexual, em um mundo norteado por regras sociais binárias, como salienta

114 Bento (2008). As travestis, em sua maioria, se desenvolvem diante desta situação conflituosa, considerando a necessidade humana de nomear e formar grupos de pertencimento, em uma situação de meio termo entre as possibilidades dadas ao sexo masculino e ao feminino, subvertendo a lógica e a ordem heteronormativista.

Enquanto as transexuais tendem a se movimentar para este padrão de estética e comportamento, acabam agindo com preconceito contra as travestis como uma forma de delinear suas respectivas identidades, a partir da sua maior inserção social e profissional, em decorrência da proximidade com os aspectos e padrões esperados na feminização dos corpos. Porém, ambos os grupos sofrem discriminações e preconceitos, ainda que com nuances diferenciadas, de modo que temem e enfrentam este cotidiano, ora assumindo a travestilidade e transexualidade, ora recusando as mesmas.

Diante dos processos e transformações físicas dos corpos, podem aumentar ou minimizar os preconceitos e discriminações vividas. O fato de ser feminina e considerada bonita auxilia no processo social de aceitação e inclusão, por se aproximarem da ordem heteronormativa ‘estabelecida’ culturalmente. Contudo, a questão da educação e da informação apareceu na distinção das transexuais, em detrimento das travestis. A educação e a informação facilitam o respeito para com elas, assim como denuncia a ausência de conhecimento. Neste caso, as travestis apareceram em desvantagem, pois subverteram a lógica estabelecida e seus respectivos padrões, pois se configura e se predomina a androgenia dos corpos e falhas na conclusão de educação formal.

Os dados revelam uma diferença de postura diante da diversidade na travestilidade e transexualidade. Nem toda transexual tem preconceito com as travestis, pelo fato de assim como elas sofrerem recriminações na família e na sociedade, chegando a apanhar de pessoas que queriam que elas fossem diferentes, o que gera muito sofrimento, por não entenderem, quando criança, o que está acontecendo com o seu corpo, associado aos próprios castigos e

115 punições familiares e sociais a que são expostas, diante de uma consciência e autopercepção feminina. Nem toda transexual se coloca em um suposto patamar de superioridade pelo fato de se considerar uma mulher, mas se representa como mais uma pessoa que indica a diversidade da causa LGBT, assim como as muitas possibilidades das configurações humanas, a exemplo dos dicionários e das conceituações do verbete mulher, apresentados no referencial bibliográfico desta dissertação.

É importante ressaltar que nem toda travesti recrimina de forma preconceituosa as transexuais. Apenas acreditam que o fato de se perceberem como mulheres, na busca de serem ‘originais’, ou no caso nascerem com o sexo correspondente ao feminino, realizando a Cirurgia de Redesignação Sexual, não as fará completamente mulheres, por não poderem engravidar e amamentar, por exemplo, ocasionando um maior grau de sofrimento, podendo chegar à depressão, e desenvolver distúrbios de uso de drogas.

A identidade de gênero também se relaciona ao ambiente familiar, ocasionando construções favoráveis ou não para o desenvolvimento humano das travestis e transexuais, e novamente o preconceito e a aceitação marcaram o desenvolvimento e a melhor aceitação das suas respectivas identidades de gênero. A família é apontada por elas como o primeiro grupo social que promove o seu desenvolvimento, mas diante do conflito frente à sexualidade. Também é o primeiro grupo a agir de forma preconceituosa e recriminatória. Promove um ambiente em que geralmente tende a intensificar os conflitos e os maus tratos, em confluência ao período que corresponde ao final da segunda infância e pré-adolescência. Os 14 anos de idade, aproximadamente, correspondem ao marco em que são expulsas de casa ou levadas a evadir. Assim, muitas vezes, acabam por encontrar na prostituição os grupos sociais que irão acolhê-las e orientá-las, desempenhando o que a princípio seria o papel do núcleo familiar.

Apesar de considerado normal, o cotidiano de uma travesti que se prostitui está cheio de situações e riscos diante das vulnerabilidades que estes ambientes oferecem, mas que se

116 configuraram como o primeiro campo de trabalho que as acolhe diante da inexperiência, da falta de capacitação e da aquisição de habilidades profissionais, logo, encontraram na exploração dos seus corpos, a sobrevivência em seu cotidiano. Corpo que precisa ser reconstruído a partir das marcas e intervenções medicamentosas e cirúrgicas, que varia de médio a grande porte, e é executado por pessoas que podem ou não ter formação, capacitação ou experiência necessária diante de cada procedimento. Seus corpos foram alterados para atender o misto do desejo pessoal e do mercado da indústria do sexo. Além dos efeitos de drogas, lícitas e ilícitas, observadas como refúgio dos conflitos decorrentes deste cotidiano.

É importante salientar que nem toda travesti vive da prostituição. Mas, no enfrentamento deste cotidiano, observou-se quase como um contingente praticamente inevitável, buscavam na área da estética e beleza cargos e profissões que proporcionassem melhor qualidade de vida e oferecessem melhores condições de trabalho, possibilitando a inserção social decorrente de hábitos que passaram de noturnos a diurnos. Contudo, diante da falta de orientação, estrutura e apoio familiar, nem sempre os salários foram considerados suficientes, em decorrência de cargos que necessitam de pouca formação e são executados com ampla jornada de serviço, o que dificulta a conclusão do segundo grau, por exemplo. Deste modo, ainda que a tendência destes campos de atuação profissional se tornar mais centrais em suas vidas, a prática da prostituição de rua foi vivenciada como uma forma de renda extra, e cada vez mais evitada, diante dos riscos à vida em decorrência de espaços de marginalização. Questão que deve ser ampliada ainda para a observação da realização do desejo em sua prática, visto como fetiche, na interação tanto na perspectiva do/a cliente quando da própria transexual que se prostitui.

Neste universo profissional, tanto a travesti quanto a transexual vivem no cotidiano a marginalização e a recriminação, em ambientes de trabalho desejados, mas que nem sempre as aceita na expressão das suas identidades de gênero. Quando aceitas na área de estética e

117 beleza, geralmente exige-se delas que apresentem comportamentos ora correspondente ao do sexo masculino, pelo nome de registro, ora pela postura e comportamento feminino. Geralmente as transexuais, ocupam este segundo lugar quando oferecido oportunidade de trabalho. Mas, caso elas exerçam a prostituição, é proibido comentar.

Mesmo cumprindo dupla jornada, constatou-se que é exigido delas sigilo em relação as suas vidas íntimas, cumprindo uma regra de conduta que é comum aos dois campos de trabalho, sendo que, no caso dos salões de beleza, não se pode falar sobre a prostituição, ainda que muitos saibam ou mesmo desconfiem.

Os nomes pelos quais preferem ser chamadas, algo de muita importância na vida em sociedade, como critério orientador da identidade, também são negligenciados. Nem sempre as famílias, amigos/as e pessoas que permeiam o ambiente de trabalho destas pessoas as respeitam diante da escolha e condição de vista imposta. Elas acabam por relativizar e compreender estas situações, por acreditar ser importante a inclusão familiar, mesmo que tenham sofrido histórias no passado marcadas por recriminações e violência, na busca de resolução e diminuição dos conflitos, momento em que ambos os lados acabaram cedendo, travestis/transexuais e membros da família. E, no ambiente de salão de beleza (incluindo as outras poucas possibilidades de mercado) ou na prostituição de rua, acabam se sujeitando às condições estabelecidas. Em especial no salão de beleza, que garante uma espécie de inclusão por ser uma profissão em que mais se aceita homossexuais - ocasionando, também, a manutenção do desejo e fetiche pessoal, colocando-as de certa forma no controle do atendimento ou não do/a cliente na prostituição, além de possibilitar renda fixa e/ou extra.

Observou-se que elas não possuem a sensação, percepção e estímulo de sustentabilidade e estabilidade por nenhum dos grupos sociais apresentados, a partir da família, igreja, escola e sociedade como um todo. Além do fato de que pelos agentes de segurança pública, que também deveriam garantir as suas integridades enquanto cidadãs, são

118 negligenciadas e abusadas, muitas vezes com requintes de crueldades e quebra de condutas diante dos princípios dos direitos humanos. Assim como os políticos que não desenvolvem projetos de leis e operações/intervenções sociais que pensem em suas integridades físicas e psíquicas, ainda que consideradas como parte do elenco de atores sociais no cenário em que os mesmos ocorrem, colocando-as sempre à margem.

Na busca de resgatar o tempo perdido e momentos sonhados e idealizados, mas não vividos, investiram em relacionamentos que não são duradouros e apresentaram grande rotatividade mediante os padrões heteronormativistas esperados, reforçado ainda pelas organizações religiosas de base cristã, proporcionando que seus parceiros não as assumiram como pares diante da sociedade, condicionando-as apenas as situações de prostituição, o que pode ser revisto em relação ao fetiche relatado, uma vez que nem mesmo as novas condições de trabalho garantem para elas uma vida normal, no sentido de dignidade em usufruir direitos e deveres. A prática de prostituição, nestes casos, repensadas a partir do prisma do estudo do perfil da travesti, do/a cliente, em comparação ao perfil das pessoas com que elas se relacionam afetivo-sexualmente com a finalidade de constituição familiar, dado os termos utilizados, apresentados pelas respondentes: namoro, casamento, separação e desquite.

Mesmo muitas vezes excluídas do convívio familiar e social, e mesmo das igrejas, elas permaneceram acreditando em uma força superior que dá força para o enfrentamento do cotidiano. Por meio da religiosidade e da expressão da religião, encontram forças e argumentos para enfrentar o dia a dia pela organização e estruturação da sua vida profissional e familiar, determinando a postura das mesmas diante da sociedade, independentemente das práticas e ramos profissionais vivenciados, mas que garantem bem-estar, aceitação e qualidade de vida, por não condicionar suas respectivas vidas aos aspectos marginalizados que as condições de travestilidades sugerem. Distanciam-se das religiões e proporcionam práticas místicas vivenciadas no cotidiano e partilhadas com outras LGBT e heterossexuais.

119 Como apontado pelas travestis e transexuais, Deus e as forças superiores são vistos como supremos, evidenciando ser base de tudo, ao passo que se observou que elas se aproximam do Transcendente, ainda que não seja por meios observados enquanto padronizados e convencionais, pelo fato de a maioria não estar permanentemente inserida nas organizações de cunho religioso, uma vez que se percebem no exercício destas características, mesmo não sendo compreendidas:

“Travesti é uma, uma... Você não vai ver uma travesti triste. É só alegria, amor, carinho, compreensão. Agente compreende muita gente, mas ninguém compreende a gente.” [Serena].

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