• Nenhum resultado encontrado

De modo geral, as participantes desta pesquisa realizam um movimento de recusa do sexo anatômico e de afastamento dos padrões sociais vinculados ao modelo heteronormativo e heteroafetivo para aproximarem-se e vivenciarem a travestilidade e a transexualidade. De modo invertido, as transexuais buscam adequarem-se ao modelo dado, alterando seus corpos, modelando comportamentos sociais e atitudes religiosas, na busca de serem reconhecidas a partir da sua percepção de serem mulheres. As travestis, apesar de se ajustarem às referências habituais de feminização, para serem aceitas no cotidiano e expressarem suas identidades, não assumem o papel feminino em sua integralidade nem esperam transformar-se fisicamente em mulheres, como é desejado pelas transexuais. Assim, as travestis acabam por manter-se constantemente na linha da subversão ao referido modelo hegemônico, inclusive no que diz respeito a expressões e entendimentos de cunho religioso.

Nesta construção de ambas as identidades, as transexuais buscam se diferenciar das travestis pela busca de conhecimento formal, de habilidades profissionais distintas e da maior integração a ensinamentos cristãos tradicionais. Mas, mesmo entre elas, há subgrupos e esta divisão não se mostra de forma socialmente organizada e facilmente esclarecida. Elas apontam para o fato de que algumas travestis assumem uma postura que denominam de ‘transex’ – condição situada entre a travestilidade e transexualidade, evidenciando as dificuldades com os rótulos, as autodemominações e as denominações entre elas. Salienta-se a existência de classificações temporárias, indicando a fluidez de identidade por grupos de pertencimentos. Esta dinâmica reforça a desconstrução, que cada vez mais desconsidera a orientação sexual e a genitália enquanto marcos identitários rígidos de gênero das pessoas em seus mundos, retirando do campo religioso a força para enraizar tal rigidez.

121 O exercício e a prática de tentar nomeá-las, ainda que se tenha o intuito de apreendê- las em suas peculiaridades, não dão conta da complexidade dos fenômenos relativos à travestilidade e à transexualidade, a não ser que se queira vê-las pela ótica das aberrações, demonizações e anormalidades psíquicas. É importante ressaltar que os manuais científicos e os preceitos religiosos, que têm como finalidade as orientações de diagnósticos para facilitar intervenções, não dão conta de alcançar essa complexidade diante da ampla gama de diversidades possíveis de identidades, subjetividades e performances humanas. A presente dissertação configura-se, portanto, como mais uma contribuição reflexiva para se pensar sobre estas modulações de gênero, sexualidade e religiosidade de modo crítico às visões preconceituosas e segregacionistas.

Ao se considerar, por exemplo, a Classificação Internacional de Doenças (CID 10), pela Organização Mundial de Saúde (OMS), na sessão F64 – Transtornos de Identidade Sexual, onde se encontra o chamado ‘travestismo bivalente’, nota-se que não se pode aplicar, numa associação direta e imediata, tal conceito às travestis entrevistadas, principalmente no caso das mais velhas, que já vivem esta realidade há mais de vinte anos. Afinal, elas já alteraram seus corpos há décadas, o que não se configura em uma experiência temporária. Pelo contrário, antes permanentes, com uso de hormônios e modificações físicas e psíquicas profundas, além do uso de vestimentas e utensílios femininos no decorrer do dia a dia e do fato de não terem o desejo de realizar uma intervenção cirúrgica no órgão sexual masculino. Por outro lado, ressalta-se que nem todas as transexuais optam pela referida cirurgia, o que reforça a fluidez desse campo.

Em trabalho de observação, notou-se a presença de dificuldades de nomenclaturas, enquanto exigências sociais, também por parte das participantes, reforçando as reflexões e a percepção a partir dos dados gerados por Pelúcio (2006, 2007) acerca das travestilidades no plural. Enquanto as transexuais, embora se apresentem como verdadeiras mulheres, em alguns

122 momentos, nas entrevistas, fazem menções a si mesmas no masculino, o que reforça essa ideia da pluralidade de experiências e fragilidade no contorno dos grupos e subgrupos, como salienta Bento (2006, 2008).

Entre as contribuições desta dissertação, estão os diversos apontamentos para novas pesquisas, apresentados ao longo da discussão. Em especial, um dos seus desdobramentos se refere à necessidade de se pensar em projetos sociais e de saúde que se voltem para as peculiaridades de crianças, adolescentes e adultos/as que apresentam sinais ou mesmo assumem a identidade de travestilidade e transexualidade, que vise à prevenção e promoção de saúde pelo desenvolvimento respeitoso destes seres humanos. Em paralelo, deve-se engrossar aos trabalhos de observação e intervenções pensadas a respeito da sexualidade infanto-juvenil nas escolas, que, de certo modo, se relacionam às respectivas comunidades, junto aos pais, corpo discente, corpo docente e técnico-administrativo, assim como todos os profissionais da área de saúde e educação, em uma visão de trabalho inter e multidisciplinar, com finalidade de modificar o cotidiano marcado por tantos preconceitos e discriminações.

Além disso, nesta dissertação, vê-se a necessidade de criação de espaços novos com a possibilidade de debater sobre preconceitos e discriminações, as diversidades em orientação sexual e de gênero, considerando as nuances religiosas e espirituais, o desenvolvimento humano e o exercício pleno de cidadania, em seus direitos e deveres, associados às múltiplas configurações de orientação sexual e identidade de gênero, pela naturalização e inclusão das diferenças sociais e subjetivas.

Por meio da expressão religiosa particular e doméstica das entrevistadas, acabaram salientando outras formas de vivenciar a religiosidade, aproximando-se mais dos conceitos acerca do exercício da espiritualidade. Afinal, em sua maioria, elas foram marginalizadas do convívio social-religioso, em função de preconceitos e descriminações marcadas na sociedade em geral e, também, em organizações religiosas, em especial quando a sexualidade e a

123 sensualidade floresceram em seus corpos, marcadas na pré-adolescência, momento que a maioria delas começou a viver conflitos de identidade sexual e de gênero, associados a conflitos de ordem religiosa.

As travestis, em particular, marcaram e evidenciaram os dilemas e ambiguidades diante da sua condição humana em interação à vida social-comunitária. Não há espaço de inclusão religiosa nos modelos hegemônicos, em relação à interação da sexualidade quando em diálogo com a religiosidade, embasada em doutrinas tradicionais, que elas desconsideram e não legitimam. Há uma relação na contingência de sofrimento em se viver a respectiva identidade de gênero de uma travesti, que é guiada e nomeada por princípios rígidos e cristalizados de que elas seriam vinculadas à materialização ou incorporação das formas demoníacas ou do mal. Este pensamento se estende a outros núcleos sociais quando se considera a religião como formadora de valores e crenças, que guiam atitudes e comportamentos, quando, na realidade, configuram-se como uma das principais matrizes na formação e retroalimentação do preconceito e da marginalização, que se justificam nos critérios de ordem dogmática.

Uma das possibilidades que as travestis encontraram nesta contingência, diante da marginalização e do “processo de endemonização”, foi viver nas fissuras sociais, na produção e de uma ação considerada como fetichista, voltando-se ao jogo sexual e social do imaginário coletivo, seja na relação com seus familiares, amigos/as e clientes, como forma de enfrentamento de um cotidiano marcado por violências e agressões, e como uma forma de inclusão social, ainda que precária, quando comparada a outros grupos e movimentos homossexuais, que também apresentam fragilidades.

Em contrapartida, apesar do desejo manifesto por algumas entrevistadas, não há por parte delas a elaboração e a constituição de espaços que proponham uma maior inserção social, a exemplo do I Seminário da Visibilidade das Travestis e Transexuais do DF (2009),

124 que entre as/os poucas/os participantes, uma parte significativa era de militantes gays e lésbicas e outra de transexuais, levando à pergunta: onde estavam as travestis? Mas, trabalhos acadêmicos, tais como a presente dissertação, podem auxiliar os movimentos homossexuais e seus representantes a identificar formas de como acessar este público no DF, favorecendo a construção de uma agenda ativa e de um cronograma de atividades articuladas por elas mesmas.

Ao se repensar os espaços considerados como LGBT, deve-se estender as reflexões aos ambientes religiosos, mesmo àqueles chamados inclusivos (que, a princípio, não recriminam os/as LGBT). Ainda há poucos registros de travestis e transexuais, registros informais partilhados pelas redes de militantes pela espiritualidade e religiosidade LGBT, que abram campo para novas investigações em relação a este fenômeno nas práticas e nos discursos religiosos inclusivos, pela averiguação das razões que elas não participam de tais comunidades, ditas alternativas.

Por meio dos procedimentos metodológicos adotados, acredita-se que foi possível conhecer algumas dimensões religiosas nas vivências cotidianas de travestis e transexuais, que residem no DF, tanto de modo coletivo, por parte dos grupos informais indiretos e observados, como individualmente, por meio das entrevistas. Elas exercem as expressões e práticas religiosas de forma individual, na crença de uma força superior que as conduz, protege e direciona. De modo geral, são religiosas e espiritualizadas, apesar de não vincularem tais práticas a determinadas igrejas ou grupos religiosos reconhecidos. Segundo elas mesmas, ao contrário do que muitas pessoas imaginam, é possível ser travesti e transexual sendo religiosas e espiritualizadas, ainda que não haja espaço para as suas respectivas crenças e práticas de fé singulares. Por fim, apresentaram manifestações religiosas inclusivas e tolerantes, uma vez que abrem espaço e vontade de relerem seus próprios aprendizados religiosos antigos, que foram vivenciados sob o peso de agressão, violência e

125 marginalização, dando-lhes novos significados, a partir dos seus atuais valores, experiências pessoais e condições existenciais de vida. Para elas, a força superior constitui-se e configura- se em reflexos na força interior para o enfrentamento do cotidiano tão marcado por preconceitos e discriminações.

Associadas a tudo isso, então, encontram-se as contribuições decorrentes desta pesquisa, que investigou, em caráter exploratório e qualitativo, sobre a identidade, o cotidiano e a religiosidade de travestis e transexuais no DF, observando a discriminação e o preconceito presentes nos discursos das mesmas. Trata-se de um público negligenciado em relação aos estudos acadêmicos na perspectiva biopsicossociocultural, assim como aponta a necessidade de aprofundar maiores estudos acerca da religião/religiosidade/espiritualidade, que poderá auxiliar na construção e na instrumentalização do efetivo exercício dos seus direitos a uma vida sem violências, uma vez que a religiosidade atravessa todo o desenvolvimento na vida em sociedade, pela formação de valores sociais, que, em muitos momentos, acabam por favorecer ou mesmo fomentar e justificar ações preconceituosas e discriminatórias como as que foram citadas pelas participantes.

126