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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.3 EIXO DE DISCUSSÃO C: SOBRE A DIMENSÃO RELIGIOSA

4.3.3 Sexualidade, Religiosidade e Travestilidade

Mesmo acreditando em uma força superior, os resultados das entrevistas também apontaram que é muito difícil uma travesti ou uma transexual ser religiosa, por acreditarem que a religiosidade estaria diretamente relacionada à frequência em organizações religiosas, em decorrência da discriminação das igrejas cristãs, que “apresentam os caminhos para encontrar a Deus como sendo muito difíceis”, como salienta a Colegial; Ou, ainda, ressaltam as barreiras enfrentadas ao frequentar os espaços destinados aos rituais de origem afrodescentes por não acreditar na condução, organização e lideranças humanas, como no caso da própria candomblecista, questão que pode ser estendida aos espaços cristãos, conforme relato a seguir:

“Na minha vida eu tenho fé. Não vou à igreja, não vou no centro, não vou... Eu não procuro. Eu procuro a minha [fé], dentro de casa mesmo. Eu rezo. Creio em Deus. Mas tipo assim, porque a gente não tem total liberdade de entrar em uma igreja. Se você vai em uma igreja católica, o pessoal fica assim: ‘oh, lá, oh, oh lá, o travesti, não sei o quê. Oh lá!’. Atrapalha até pro homo, o homossexual que tá dentro da igreja, travesti, nê? Vai na macumba, aí é ‘viado’, tem que ser macumbeiro. É, na... No evangélico, você vai pra uma igreja evangélica o pessoal quer expulsar o diabo do seu corpo, tá com a Pomba-Gira. Tá com isto, tá com aquilo, na sua vida. Então eu prefiro, na hora que vou deitar, rezo” [Summer].

Como relatado, algumas delas não acreditavam muito na influência das forças superiores, até terem a sua primeira experiência religiosa e espiritual, como no caso da incorporação. Já outras, vivenciaram esta fé apenas a partir de sentimentos advindos do rito. Além dos momentos de reza, meditação e oração, que geralmente ocorrem antes de dormir e ao se levantar, em suas próprias residências, apenas algumas de origem pentecostal e as candomblecistas relatam vivenciarem a religiosidade a partir da manifestação dos chamados dons e carismas, com o enfoque da espiritualidade na religiosidade.

110 Deste modo, deflagraram que, entre as religiões, a que mais se utiliza de preconceitos por endemonização das pessoas é a evangélica, utilizando-se de preconceitos históricos para com as religiões de descendência afro, ampliando o seu discurso para as questões de ordem de orientação sexual e identidade de gênero. O que ficou mais marcado pela história da segregação com o homossexual que apresenta suas nuances, como em uma performance e condição de travestilidade dentro das igrejas, momento em que a comunidade religiosa, representada por grande parte dos seus frequentadores, atrapalhava a busca pela religiosidade. No ambiente católico, há uma espécie de coação que as leva a se sentirem constrangidas, diferente da matéria da CLAM (2008), que relata sobre os estudos acerca da Homofobia e Violência, coordenada por Maria das Dores Campos Machado. É por isto que, diante das dificuldades em frequentar uma organização religiosa, a maioria delas relataram rituais caseiros, principalmente na hora de dormir. Retomou-se o processo da criação e inconsciente coletivo, da informação cristã, socialmente partilhada na ‘cultura brasileira’, de que, ao se deitar e ao dormir, deve-se rezar, orar ou fazer preces em agradecimento e proteção divina, voltando-se à expressão da religiosidade ao rito.

As transexuais também não possuíam uma frequência nas igrejas, por medo de serem recriminadas quando as pessoas descobrirem que não se tratam de mulheres nascidas com a correspondência feminina, nem de hermafroditos, remeteu-se, portanto, ao fenômeno da evasão do meio religioso por travestis e transexuais:

“Eu já não vou na igreja. Eu só frequento de vez em quando. Antes eu ia bastante na igreja, hoje não (...) Tenho medo que as pessoas descubram e não falem mais comigo, me evitem.” [Gil].

Por estas razões, elas também afirmavam buscar a religiosidade, mas não se consideravam religiosas, por pertencerem a um grupo social que não é geralmente aceito nas

111 igrejas e, por sua vez, de certo modo, e em resposta, elas não aceitavam as igrejas, apesar de respeitar ou mesmo tolerar.

A maioria das transexuais, assim como as travestis, relatou uma história de frequência pregressa nas igrejas até o momento que perceberam ou que assumiram possuir uma orientação sexual diferenciada e por não terem espaço de escuta e orientação, principalmente quando se foi pregado e vinculado à homossexualidade e seus desdobramentos como uma prática demoníaca.

Muitas vezes, nos espaços religiosos, a homossexualidade foi configurada como aberração, ou ainda embasada nos mesmos dogmas que se voltavam à própria prática sexual, aceita apenas entre pares heterossexuais, em que restringia o ato sexual à finalidade de procriação, ainda evidenciada na fala dos mais ortodoxos, estendendo tais princípios aos homossexuais, sugerindo a este grupo uma condição de vida celibatária, pela repressão e renúncia dos impulsos e desejos sexuais por pessoas do mesmo sexo, observado como pecado e sujeito ao julgo e penalizações espirituais, que são ampliadas à vida terrena, com exclusão em espaços e respectivas funções e atividades dadas a partir das distribuições de papéis na comunidade religiosa em que a religiosidade também é construída.

Assim, os homossexuais poderiam até ser aceitos e viverem uma vida religiosa em comunidade, desde que se negassem e vivesse uma vida de celibato e castidade compulsória e modelassem seu comportamento para o padrão esperado, de acordo com a correspondência do sexo biológico, e regras e normas de conduta heterossexuais.

No caso das transexuais e travestis, a situação se agrava em decorrência da falta de correspondência entre valores, atitudes, práticas e comportamentos esperados. As travestis entrevistadas relatam que iniciaram uma vida religiosa ativa até o momento que a homossexualidade aflorou em seus corpos, com expressão de trejeitos considerados como femininos, por exemplo. No primeiro momento, houve, por parte da maioria delas, uma

112 tentativa de controlar os impulsos sexuais, modelando padrões de vida e comportamento, convencionando-se ao que era esperado, a partir do sexo biológico (no caso masculino), deixando de usar utensílios femininos e cortando o cabelo curto. Porém, este novo estilo de vida não foi suficiente para mantê-las dentro das igrejas, por reprimir sentimentos e desejos homossexuais. Não se adaptando à outra performance de vida, que não correspondem aos seus desejos e identidade, deixaram as suas organizações religiosas.

É interessante salientar o fato da não adaptação ao modelo hegemonicamente dado estava diretamente ligado ao fato da maioria delas não acreditar em religiões institucionalizadas, mas apenas em Deus. Além do receio de serem recriminadas ou viverem experiências de abusos religiosos, no sentido de caracterizar a performance delas como supostas possessões oriundas de forças antagônicas à força superior, logo parte de suas respectivas identidades, como algo proveniente do demoníaco, logo a figura materializada ou incorporada do próprio demônio. A partir disto, partem para o exercício religioso no seu dia a dia, configurando suas respectivas religiosidades.

A maioria delas, inicialmente, responderam que não seria possível uma relação entre a experiência religiosa e a identidade de travesti. Enquanto apenas uma, como relatado nos tópicos anteriores, assume e concorda com a condição e o fato em ser travesti como algo oriundo de forças malignas. A identidade de travesti, segundo elas, não estaria condicionada à experiência religiosa ou religiosidade. Perceberam a condição de travestilidade e transexualidade da mesma forma e de acordo com as contingências que não explicam a origem da heterossexualidade. Além do sentido de que nem todo heterossexual é religioso ou é visto sob influência de forças superiores. Mas, no segundo momento, reestruturando a pergunta, elas responderam que é possível ser travesti e ser religiosa, mesmo que não seja possível frequentar uma igreja. Afinal, segundo elas, os humanos necessitam desta busca e trazem dentro de si uma energia que os liga a força(s) superior(es).

113 Já sobre o ponto de vista das transexuais, apenas uma delas acha que é totalmente possível a relação de travestilidade com a religiosidade. As outras apontaram para o fato do preconceito e da discriminação, incluindo as próprias travestis, justificadas em suas

performances, cotidiano e relação com as transformações corporais, como aspectos que as

excluem do cotidiano religioso. Porém, é uma relação possível, desde que haja conhecimento, mas questiona a aquisição deste conhecimento, uma vez que são excluídas e ‘se excluem’ dos ambientes das igrejas. Para uma das transexuais, a relação da transexualidade é algo mais aceito, por estar dentro de padrões que se aproxima do esperado. Caracterizam, ainda, a explicação da transexualidade como mistério decorrente de forças espirituais superiores.