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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.3 EIXO DE DISCUSSÃO C: SOBRE A DIMENSÃO RELIGIOSA

4.3.2 Recontando a Experiência Religiosa

A experiência religiosa é recontada a partir dos dogmas de fé de suas respectivas ‘igrejas de origem’, ou mesmo, diante da fé e crença partilhada. Há relatos de incorporação diante de um culto religioso, configurando a crença de alguns religiosos em relação à possessão e interferência de forças espirituais vistas como malignas, em suas respectivas vidas, forma como explicam o fenômeno da travestilidade e transexualidade, que as entrevistadas resistem, em sua maioria, por acreditar apenas em Deus.

106 Algumas travestis não acreditavam na incorporação, até que algumas, no candomblé, puderam vivenciar esta experiência, momento em que elas mesmas foram o instrumento ou personagem deste fenômeno. No caso de uma das transexuais, a partir das suas crenças, remonta uma história de deja vu, que, para ela, está relacionada à reencarnação e vivencia em situações e lugares já visitados, a partir da crença em vidas passadas, situação marcada inclusive com a realização de uma prece de agradecimento diante da vivência e compreensão daquela experiência, relativizada pelo desempenho e existência histórica atual.

As experiências religiosas são recontadas, também, a partir de rituais, preceitos e dogmas da igreja, como no caso do batismo, primeira comunhão e crisma - momento em que reuniam familiares, parentes e amigos/as. Configurando-se, portanto, em boas recordações, como no caso dos elementos que fazem parte dos ritos, como a hóstia, e a curiosidade infanto- juvenil em relação ao seu sabor, uma vez que muitas pessoas, em especial as crianças, eram excluídas destes momentos em comunidade religiosa. Adultas foram excluídas da igreja e, se dependesse apenas do seu desejo, ‘sendo elas como estão/são’, percebendo-se e aceitando-se, em sua maioria como, travestis e transexuais, frequentariam as igrejas como faziam quando eram crianças.

Há, ainda, experiências com revelações, mensagens da parte do divino, do transcendente. Quando elas próprias não são as mensageiras ou pessoas intermediárias (com ênfase no fato de que esta situação foi apontada por elas com menor frequência), junto a outras pessoas que recebem as bênçãos e mensagens advindas das forças superiores, que por sua vez não levam em consideração a orientação sexual, identidade de gênero e credo religioso dos que foram abençoados, enquanto registro que elas buscam não reproduzir: a segregação religiosa que sofreram no seu cotidiano. Ou quando as mensagens foram destinadas para as participantes entrevistadas, por outras pessoas (o que acontece com maior frequência, evidenciando que, dentro das igrejas, há pessoas que resistem em acolhê-las,

107 compreendidas por elas como mais religiosas, independentemente de cargos ou funções religiosas). Estas pessoas são consideradas como intermediárias e mensageiras. Tais experiências as marcam e mobilizam como sendo bem especiais.

Entre os relatos, também está a cura de pessoas próximas, como amigos/as e familiares, que vivenciaram e compreenderam as vivências como os respectivos milagres, por exemplo. É interessante que elas não relataram histórias de cura em suas vidas, provavelmente por estar associado aos preceitos de uma suposta cura de orientação sexual e identidade de gênero apontada por fundamentalistas e com divulgação nos meios de comunicação atualmente. Outro fator que cerceia a crença religiosa a partir do cotidiano, manifesto enquanto resistência em viver possibilidades de espiritualidade e religiosidade, como nas religiões de origem afrodescentes.

O relato marcante, sinalizado no tópico anterior, na definição e crença de uma força superior, configura a fala de uma das únicas travestis que não se aceita, no sentido de viver um suposto julgo de condenação, debaixo de um sentimento que foi ensinado e que ela acreditava como oriundo de uma força demoníaca opressora, maléfica, ocasionando dor, sofrimento e tristeza, sentimentos ressaltados outrora pela candomblecista como resultado de uma vida em que uma travesti ou transexual se condiciona a viver subordinada aos moldes de uma vida cristã, no sentido de opressão da sexualidade, em especial das travestis e suas respectivas identidades de gênero, levando-as a viver uma vida triste, sem alegria, ou mesmo deprimida, confundindo-se o sentimento de tristeza e de opressão, pela não aceitação da identidade posta, construída pela orientação sexual e demais fatores biopsicossocioculturais, e vivida, também, a partir de preceitos religiosos rígidos, que, muitas vezes, não levam em consideração a diversidade humana.

De forma geral, elas ainda relatam que muitas vivem estes tipos de conflito por não se aceitarem e buscarem nas drogas as respostas para o refúgio diante de tais questões, levando

108 em consideração o cotidiano de uma travesti marcado por tantas ações preconceituosas e recriminatórias, que as levam à marginalidade.

A participante citada, em especial, relatou que se sente covarde diante de Deus, pois estaria mudando a sua criação, e, por causa disto, acabou recorrendo a esta força superior apenas quando estava na pior, em momentos de dificuldade e risco. O interessante é que, mesmo não se aceitando, acreditando que Deus não a aceita da forma como se apresentava no momento da entrevista, na condição de uma travesti, mas que paradoxalmente a ama mesmo assim, ela ainda vivenciou experiências religioso-espirituais, como histórias de livramento de riscos, agressões e violências físicas, como no caso de ‘emboscadas, roubos e sequestros’ que poderiam ocasionar a morte, como aconteceu com muitas outras quando estavam na prática profissional de prostituição de rua. Relatou que Deus fala com ela e provê livramentos diante dos riscos do cotidiano de uma travesti que se prostitui.

A relação com o transcendente estava condicionada a não aceitação da performance atual e dos preceitos aprendidos, na distinção entre certo e errado, bem e mal, pois, segundo a participante, quando vivia dentro da igreja, havia as manifestação dos dons carismáticos, como no caso da revelação, com maior frequência e fluência. Mas se sentia culpada por não estar dentro da igreja, e em contrapartida, privilegiava a vivência no meio homossexual, além de apontar saudade das experiências religiosas vivenciadas e classificadas como boas, ocasionando bons sentimentos.

Outra entrevistada, que visitou com frequência os rituais do candomblé e do meio evangélico, mesclando de forma esporádica o ritual católico, aponta a religião evangélica como uma religião que lava a alma, provavelmente por promover espaços de catarses em seus rituais religiosos, o que alguns autores como Guareschi & Jovchelivitchi (2002) vão nomear como parte do movimento de massificação, apesar de um olhar superficial e desclassificatório, por não levar em consideração a cultura e o dia a dia destas pessoas em

109 suas respectivas comunidades religiosas, para compreender a amplitude dos seus sentidos construídos na crença e participação ativa com o transcendente.