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4. APRESENTAÇÃO E DISCUSSÃO DOS DADOS

4.3 EIXO DE DISCUSSÃO C: SOBRE A DIMENSÃO RELIGIOSA

4.3.1 Religião, Crenças e Valores

As entrevistadas afirmam que ouviram falar da religiosidade pela primeira vez na infância. Algumas especificam a faixa que varia entre os seis e os nove anos de idade, por intermédio dos familiares ou amigos/as da comunidade. A adolescência é vista, também, como um marco de uma vida religiosa ou migração para outras denominações religiosas, movimentando-se do catolicismo para o protestantismo, mas ambas advindas do cristianismo:

“Com 08 anos... eu fui católica. Eu ia à missa. Mas aí quando eu me converti eu fui só evangélica... Eu comecei com 14 mesmo. Eu virei evangélica com 15. Aí eu fiquei um ano, na igreja. Eu já era travesti. Aí fiquei um ano na igreja. Eu rapei o cabelo. Aí com 16 eu voltei de novo pra ser travesti, não voltei mais [à igreja].” [Colegial].

“Desde quando eu era criança. Eu venho de uma família muito religiosa. Eu fiz catequese. Fiz crisma. Fiz tudo. Primeira comunhão. Então, desde quando eu tinha seis anos de idade que eu era levado pra igreja”. [Kelly].

Infelizmente, a questão do significado da religiosidade na vida de cada uma das participantes não foi retomada na maioria das entrevistas, por entender que os relatos da questão referente à percepção de ser ou não ser uma pessoa religiosa responderam sobre o significado que a força superior ocupa em suas vidas, assim como a igreja e seus símbolos e rituais. A maioria delas sentiu dificuldade em associar sua expressão religiosa a uma forma de

103 religiosidade, por não mais possuírem uma frequência nas comunidades religiosas, enquanto critério que nomeia ser ou não uma pessoa religiosa.

É importante salientar, em especial, as dificuldades que as pessoas oriundas de religiões denominadas como neopentecostais apresentaram em responder sobre o significado da religiosidade em suas vidas, uma vez que a palavra religiosidade não faz parte do vocabulário religioso, ou mesmo quando é apontada, serve para lugar de crítica em decorrência dos dogmas da igreja católica e de outras religiões, conforme aponta a percepção abaixo, em um curto trecho de entrevista. Mesmo não sendo a entrevistada uma frequentadora regular de igreja evangélica, visita várias delas de forma esporádica:

P: Então, retomando a pergunta: o quê que significa religiosidade na sua vida? Como é que é a religiosidade na sua vida?

Gil: Como assim? Eu não tô entendendo.

As práticas evangélicas não são entendidas pelos seus frequentadores como parte da religiosidade protestante ou evangélica por não partilharem das convenções do que venha a ser religiosidade. Antes, pressupõem uma relação com Deus sem intermediações, por mais que as mesmas sejam mediadas e de certa forma consolidadas, ainda que por meio de normas e regras de convívio a partir da Bíblia, assim como por meio de orações, manifestação de dons, carismas, incorporações e milagres. No meio evangélico, entende-se como antagônicos os conceitos de espontaneidade e religiosidade, vinculando este último ao rito e dogma rígido, mais próximo do cristalizado. Aproximam-se mais do conceito acerca da espiritualidade e suas manifestações, logo são apresentadas em suas possíveis flexibilidades.

A maioria das travestis entrevistadas acredita em uma força superior que nomeia como Deus. Apesar de partir da religiosidade e dos ritos formadores advindos das igrejas de base cristã, acreditam em uma força superior, mas não respaldam a sua fé e nem o exercício da religiosidade a partir das amplas práticas, filosofias e doutrinas em igrejas, enquanto

104 organizações religiosas institucionalizadas. Para elas, a figura e a analogia de Deus existem, independentemente dos padrões cristãos estabelecidos.

Entre as entrevistadas, duas travestis frequentam o candomblé e uma delas intercala as práticas do candomblé com as de cunho evangélico, chegando a frequentar os dois espaços, e, esporadicamente, acompanha familiares em celebrações católicas. As demais travestis não frequentam a igreja por se sentirem discriminadas e, em muitos momentos, serem tratadas como “aberração da natureza”, por subverterem as relações e papéis hegemonicamente marcados nestes espaços. Não procuram o candomblé por não ser sua prática de fé. Diferentemente do que muitas pessoas imaginam, nem todas se identificam com esta religião, apesar de respeitarem-na. Evidenciam que é uma prática religiosa que, a princípio, não discrimina as pessoas pela sua identidade de gênero e/ou orientação sexual, mas não apresentam afinidades com a mesma em sua filosofia e doutrina. Já entre as transexuais, apesar da prática irregular, exposta ao longo da entrevista, uma é católica, outra evangélica e outra kardecista. Todas oriundas das práticas cristãs.

Mesmo antes de perguntar se acreditam em uma força superior, algumas das participantes, já associaram a pergunta a uma suposta questão e situação de endemonização, no sentido de possessão ou encosto demoníaco, diferenciando de forma bem marcada a crença em Deus, em detrimento de qualquer outra forma de entidades e forças superiores, em especial às consideradas malignas. Isto se dá, inclusive, a partir de relatos em situações que vivenciaram em seu dia a dia, em que pessoas, na tentativa de reversão das suas condições humanas, atribuíram às suas identidades a possessão ou influencia de entidade espiritual.

A maioria delas atribui a existência de uma força superior a Deus, e a candomblecista sinaliza várias entidades espirituais. É importante ressaltar que, de todas, apenas uma das travestis relata que esta força superior, que estaria abaixo e diferenciada de Deus, seria uma força maligna, e aponta que é a razão que a faz ser como é, e se sente estranha com isto:

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“Ai... É uma coisa muito estranha, sei lá... Na minha vida?... É o que me faz ser assim... A força superior, a força maior é Deus. É! (...) Não!... Deixa eu ver. Não a força. Essa força, é... Esta força... A que me faz ser assim, sei lá (...) [não é possível compreender a última palavra para transcrição]. É a força maligna. Pra mim é uma força maligna.” [Colegial].

As travestis e transexuais apontam que a força superior significa e representa tudo em suas vidas, configurando-se na força que as faz viver, assim como bem-estar e conquistas do cotidiano, levando-as ao que elas chamam de progresso e transformação de vida, que esta força sugere, orientando suas atitudes, crenças, valores e comportamentos. Representa inspiração para viver e conquistar sonhos e desejos almejados, como se tornar proprietária de um salão de beleza, por exemplo. Esta força pode, ainda, estar dentro delas, dando-lhes esperança, e, como algumas salientam, compondo ou sendo representada pela própria natureza, em especial, como no caso da candomblecista, mas que também aparece nas falas das de origem e prática cristã. Deus é visto, também, como um ser supremo, evidenciando ser base de tudo, uma vez que tudo criou, e tudo governa e comanda, aproximando-se tal representação aos dogmas do cristianismo. Além do dualismo e da movimentação entre o bem e o mal, para a explicação da evolução da condição humana, por meio do carma e da reencarnação, como no caso da kardecista. Elas acrescentam a noção de respeito e amor ao próximo, como atributos e motivações advindas da força superior.