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PARTE II – A INDÚSTRIA BRASILEIRA DE CALÇADOS: AGLOMERAÇÕES DE PRODUTORES E

Capítulo 5 – Eficiência coletiva nas aglomerações de empresas de calçados na economia brasileira

6.2. Configuração da cadeia produtiva global na indústria de calçados: um exemplo de cadeia dirigida

Um instrumento bastante interessante para a análise da atuação da indústria calçadista brasileira no mercado internacional é o desenho da cadeia produtiva global comandada pelo comprador (buyer-driven), tal como foi apresentado por Gereffi (1994) e discutido na primeira parte deste trabalho.

A análise do desenho organizacional da cadeia internacional de suprimentos do setor calçadista mostra que nesse setor é possível verificar uma representação típica da organização de uma cadeia comandada pelo comprador. O principal agente dessa cadeia são os grandes compradores internacionais, cujas relações com os fabricantes de calçados são intermediadas por agentes especializados na comercialização internacional desse produto. O detentor de maior poder de barganha nessa relação é o grande capital comercial internacional, que detém ativos essenciais

chave, relacionados principalmente com a posse de canais de comercialização e distribuição do produto, e impõe seus interesses aos fabricantes do produto.

Essas empresas são capazes de comandar a cadeia de produção e distribuição de produtos em virtude da posse de ativos intangíveis essenciais: acesso aos grandes mercados internacionais e controle dos canais de comercialização e distribuição, posse de marcas mundiais consolidadas e esforços de desenvolvimento de produto e design de acordo com as tendências mundiais da moda. Além disso, verifica-se uma elevada assimetria entre as duas partes, dada a elevada concentração dos compradores internacionais, por um lado, e de outro a grande pulverização dos produtores de calçados93.

Nesse contexto, os ativos produtivos têm importância relativa bastante reduzida na conformação das formas de governança da cadeia produtiva global desse setor. Isso permite que os grandes compradores internacionais aloquem suas encomendas de produtos em qualquer lugar do mundo, de acordo com a capacidade dos produtores em atender os requisitos do demandante, que vão do custo do produto até a capacidade de incorporação de atributos diferenciados. De acordo com as capacitações dos diversos produtores espalhados pelo mundo, que são amplamente conhecidas pelos demandantes, serão feitas as encomendas de calçados.

Isso mostra a posição bastante subordinada dos produtores nesse processo, já que eles são incapazes de impor seus interesses aos grandes compradores internacionais. Em geral, os produtos que são destinados a esses grandes compradores sequer levam a marca da empresa fabricante e até a procedência é impressa em local pouco visível da embalagem.

Existe ainda um agente intermediário importante nesse processo que são as companhias de comércio (tradings companies). Essas empresas exercem o papel de representantes do grande capital comercial junto aos produtores, assumindo a tarefa de encomenda dos calçados junto aos produtores e a distribuição do produto nos seus respectivos mercados de destino. Além disso, esses agentes são responsáveis pela assistência técnica e pelo de controle de qualidade do produto final, garantindo a entrega do produto de acordo com os requisitos demandados pelos grandes compradores.

Esse formato organizacional da cadeia produtiva global do setor calçadista independe do segmento em que as empresas compradoras atuam. No caso do segmento de calçados esportivos (tênis), por exemplo, percebe-se a atuação de grandes empresas internacionais como Nike, Reebok e Adidas, que subcontratam integralmente sua produção junto a produtores de países que apresentam custos salariais reduzidos. Outro exemplo é o das grandes lojas de departamentos, principalmente dos Estados Unidos, que compram calçados, geralmente sociais e de passeio (sapatos) de países como China, Índia e Brasil. Essas grandes lojas fazem encomendas de calçados de diversos segmentos, adquirindo tanto produtos masculinos como femininos, e em faixas de preço em geral bastante largas.

93 Vale ressaltar, como já foi apontado na primeira parte deste trabalho, que esse tipo de configuração da cadeia

produtiva global não é específico da indústria de calçados, podendo ser encontrado em outros setores como vestuário, móveis, cerâmica e outros.

É verdade que de acordo com o segmento de mercado e o tipo de produto que compõe a cadeia, algumas distinções podem ser verificadas, especialmente no que se refere à identificação dos ativos relevantes. No caso, por exemplo, das empresas de calçados esportivos (tênis), os ativos essenciais, que garantem a capacidade de comando da relação entre as empresas, estão fortemente relacionados com a gestão da marca e com a capacidade de incorporar atributos diferenciados aos produtos.

As grandes empresas internacionais de calçados esportivos mantêm estratégias agressivas em duas áreas principais. Primeiro, na área de marketing, por meio especialmente de grandes esforços publicitários, que contam com vultosos recursos para patrocínio de equipes, selecionados e atletas de todo o mundo. A estratégia de uma das grandes empresas do setor, a Nike, reflete a importância das estratégias de marketing dentro do setor: o extenso patrocínio que a empresa realizou com o jogador estadunidense de basquetebol Michael Jordan motivou, inclusive, o lançamento e a manutenção de uma linha exclusiva e específica de tênis ligada à imagem do jogador94.

Segundo, as empresas mantêm centros importantes de desenvolvimento de produto e design, que as permitem realizar uma política agressiva de lançamento de novos produtos e de novos modelos. Além disso, para incorporar melhorias tecnológicas aos seus produtos, as empresas mantêm fortes e constantes interações com os fornecedores de componentes, especialmente com a indústria química95.

No caso do segmento de calçados sociais ou de passeio (sapatos), as empresas que comandam a cadeia produtiva global não possuem, em geral, marcas consolidadas e sequer fazem investimentos tão vultosos em desenvolvimento de produto e design. Trata-se de grandes compradores internacionais, cujos ativos essenciais estão ainda mais relacionados com a capacidade de comercialização dos produtos. Neste caso, as atividades relevantes para as empresas de calçados esportivos, como a gestão da marca e o desenvolvimento de produto e design, são menos importantes, priorizando a capacidade de gestão da cadeia de suprimentos e o acesso aos grandes mercados consumidores.

É verdade que existem exceções importantes que fogem a essa regra geral. Algumas empresas, por serem capazes de incorporar atributos diferenciados aos seus produtos, conseguem impor aos compradores alguns de seus interesses, tanto em termos das características do produto como no que se refere ao preço. Porém, esses casos são mais freqüentemente encontrados em nichos bastante específicos do mercado. Um exemplo disso é a aglomeração de produtores calçadistas italianos da região de Montebelluna, que se especializaram na produção de botas de material sintético para esportes de inverno como alpinismo e esqui, produtos de preço bastante elevado e destinado a um segmento específico de mercado. Em casos como esse, os produtores conseguem “escapar” dos interesses dos grandes compradores por meio da fabricação de um produto altamente diferenciado e específico96.

94 O tênis que foi inspirado no jogador foi o conhecido “Nike Air”. Aliás, mesmo depois da “aposentaria” do

jogador, a empresa continua explorando sua imagem por meio de extensivas campanhas publicitárias.

95 Mais uma vez utilizando o exemplo da Nike, seus esforços de desenvolvimento de novos produtos e design se

traduzem em uma média incrível: um novo tênis é lançado por dia.

96 Esse é um exemplo interessante do que Schmitz e Knorringa (2000) chamaram de segmento de mercado dirigido

No Brasil, onde os produtores atuam numa faixa de mercado de produtos não tão especializados, tal regra não se aplica. Os grandes compradores internacionais estão representados pelas companhias de comércio, que estabeleceram no passado escritórios de exportação no Brasil, especificamente nas duas aglomerações mais importantes de empresas97. Desse modo, os principais clientes dos produtores calçadistas brasileiros são grandes as

lojas estadunidenses de departamentos, que encomendam calçados de couro femininos, oriundos do Vale do Sinos, e masculinos, provenientes de Franca. A figura 6.2 mostra o desenho organizacional da cadeia internacional de suprimentos da qual participam as empresas brasileiras.

97 Não se tem notícia de escritórios de exportação que estejam instalados em outras regiões senão no Vale do Sinos

FIGURA 6.2 – Formato organizacional da cadeia produtiva global do setor calçadista e a

participação das empresas brasileiras

Fonte: elaborado a partir de Gereffi (1994).

Como se vê pela figura, trata-se de uma organização típica de uma cadeia comandada pelo comprador. Os grandes compradores internacionais, que possuem acesso aos grandes mercados consumidores, fazem encomendas de calçados aos produtores brasileiros. Nessas encomendas, que são intermediadas por agentes de exportação, são especificados todos os atributos, inclusive o preço. Desse modo, os produtores brasileiros exercem influência pouco significativa na relação com o grande capital comercial internacional, ficando sujeitos a todas as exigências impostas pelos demandantes. Além do mais, como o preço do produto é fixado pelo comprador, ele acaba determinando também as margens de rentabilidade das empresas fabricantes de calçados.

Isso revela a completa subordinação dos interesses das empresas brasileiras aos grandes compradores internacionais. Como apontaram Schmitz e Knorringa (2000), pôde-se perceber nos últimos anos uma forte concentração das empresas de varejo, o que proporcionou ainda uma elevação brutal do poder de barganha dessas empresas na negociação com os produtores.

Além disso, assim como verificado em outros setores, a indústria de calçados vem passando por um processo no qual os ativos essenciais estão cada menos associados à produção de mercadorias. As principais vantagens competitivas da indústria calçadista têm se concentrado nas áreas de marketing, desenvolvimento de produto e design e na capacidade de gestão da cadeia produtiva. Ao dominar esses ativos essenciais, os grandes compradores colocam-se em posição privilegiada na estrutura da cadeia de suprimentos do setor. Outro exemplo de

Fluxo de produtos Comando ESTRUTURA PRODUTIVA E

COMERCIAL – BRASIL

MERCADO CONSUMIDOR – EUA

Produtores de calçados Compradores Internacionais Traders Grandes Estabelecimentos Comerciais Fornecedores

setor industrial em que esse fenômeno vem ocorrendo com grande intensidade é o eletrônico, em que as empresas estão crescentemente abandonando suas estruturas produtivas e concentrando as atividades na gestão de ativos intangíveis, como a marca e o desenvolvimento de produtos (Sturgeon, 1997).

Por essas razões, aliadas à política de sobrevalorização cambial, as empresas brasileiras buscaram estabelecer, ao longo dos anos 90, estratégias que permitissem reduzir o volume de vendas para os grandes mercados consumidores internacionais. Muitas empresas, especialmente as de pequeno e médio porte, que destinavam sua produção ao mercado externo, não conseguiram sobreviver a esse cenário, já que não foram capazes de encontrar alternativas a uma situação extremamente deteriorada nas vendas ao mercado internacional, especificamente ao mercado estadunidense.

Já as empresas maiores conseguiram, em sua grande maioria, reverter parte da produção que era destinada às vendas externas para o mercado doméstico, onde elas são capazes de praticar preços mais elevados e auferir margens mais elevadas de rentabilidade. Um outro fator que contribuiu para o sucesso dessa estratégia foi a expansão da demanda doméstica, que permitiu que parte significativa dessa produção anteriormente destinada às exportações pudesse ser colocada no mercado interno.

As empresas procuraram, ainda, elevar suas vendas externas para outros países, onde as condições acima descritas não eram verificadas. Foi por esse motivo que houve um expressivo aumento das vendas de calçados para os países da América do Sul, com destaque para Argentina, Paraguai, Chile, Peru e Bolívia. Nesses países, as empresas brasileiras conseguiram reproduzir os esquemas de comercialização e os canais de distribuição que são utilizados no mercado doméstico. Em outras palavras, conseguiram atuar sem a presença dos grandes compradores internacionais. Como mostra a figura 6.3, o formato da cadeia de produção e comercialização de calçados para os mercados doméstico e sul-americano é fundamentalmente distinto daquele verificado nas vendas destinadas aos mercados estadunidense e europeu.

FIGURA 6.3 – Formato organizacional da cadeia de produção e comercialização de

calçados – mercados doméstico e sul-americano

ESTRUTURA PRODUTIVA E COMERCIAL – MERCADO DOMÉSTICO / AMÉRICA DO SUL

Produtores de Calçados Fornecedores Canais de comercialização Estabelecimentos comerciais

Fonte: elaborado a partir de Gereffi (1994).

Como se vê pela figura, o esquema de vendas pulverizadas para os mercados doméstico e sul-americano dá às empresas um maior poder de barganha na relação comercial. Nesse sentido, os produtores brasileiros são capazes de negociar de modo mais adequado seus interesses junto aos compradores, seja em termos do tipo de produto ofertado e seus atributos, seja no que se refere aos níveis de preços alcançados. Diversas entrevistas realizadas em empresas calçadistas do Vale do Sinos e de Franca corroboraram essa impressão. Muitos dos empresários e diretores de empresas entrevistados afirmaram que os níveis médios de preços praticados pelas empresas que atuam no mercado doméstico são significativamente superiores àqueles praticados nos grandes mercados internacionais. Até as empresas maiores, que atuam em ambas as frentes – mercados interno e externo –, admitiram que conseguem alcançar preços superiores, e consequentemente, margens mais elevadas, nas vendas ao mercado doméstico.

Esse mesmo fenômeno também pode ser constatado, em magnitudes bem inferiores, nas vendas destinadas ao mercado sul-americano. Nas exportações para países como Argentina, Paraguai e Chile, as empresas também conseguem alcançar patamares mais elevados de preços.

Esse quadro pode ser comprovado pelo desempenho das empresas calçadistas brasileiras. As empresas do setor que apresentaram um melhor desempenho produtivo ao longo da década de 90 foram aquelas que atuavam predominantemente no mercado doméstico, onde praticam políticas mais pulverizadas de vendas. Essas empresas foram, por esse motivo, capazes de “escapar” dos esquemas que são comandados pelos grandes compradores internacionais.

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