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3. A CONSTITUIÇÃO E O NEOCONSTITUCIONALISMO: DA REGRA AO PRINCÍPIO

3.14 O conflito de parâmetros e a democracia

Anexado84 ao conceito de democracia está o parâmetro como sendo um sentido fundamental do dever-ser, ou seja, não é uma norma, já que esta é uma permissão, proibição ou obrigação, inserta em princípios ou regras. Ocorre que, é por meio do parâmetro que a norma faz sentido, isto é, a norma ―proibido matar‖ tem lógica pelo fato de reconhecer valores ao ser humano, e, dessa maneira, a conclusão é que a mesma adquire legitimidade no âmbito de um parâmetro.

Por vezes existem conflitos de parâmetros, sendo, por óbvio, dificultoso legitimar uma norma. Em um juízo de prognóstico, diante da forte crise econômica vivenciada pelo Brasil, precise-se limitar, através de lei, ou de ações do executivo, direitos sociais, dentre eles o parcelamento dos salários de alguns servidores públicos e de aposentados, ou o não recebimento de 13º (décimo terceiro) salário e de 1/3 (um terço) de férias somente aos servidores públicos, como ocorreu em Portugal, sem que haja compensação e extensão aos demais trabalhadores da iniciativa privada, acarretando um conflito de parâmetros.

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Além de uma Constituição Formal, há a necessidade de uma Constituição real e a necessidade do poder constituinte, tendo o autor em tela dito: ―[...] A liberdade política e a igualdade jurídica, elevadas a valores absolutos, comunicavam um ímpeto emancipativo que as elevava ao mais alto grau de prestígio. Sendo essas Constituições uma fórmula comum à maioria dos povos ocidentais, em níveis de civilização, com ela se traçava a fronteira entre a liberdade e o despotismo . Mas quando a revolução burguesa consolidou seu poder e a opressão dos privilégios feudais caiu em esquecimento, a sociedade de classe subsequente fez esfriar o otimismo acerca da liberdade e da igualdade com valores abstratos. A crítica das ideologias descobriu cedo as insuficiências do Estado liberal, sobretudo suas omissões, numa sociedade que permanecia tão injusta ou mais injusta que a sociedade do passado. Houve, porém, um instrumento de legitimidade que sobreviveu à queda do Estado liberal: o poder constituinte , obra do pensamento constitucional francês, festejada nos parlamentos da revolução de 1889 como a maior descoberta da Ciência política em todos os tempos. O gênio de Sieyés unira, pois, as formas representativas ao elemento fundamental de sua legitimidade – o poder constituinte. Estavam lançados os alicerces do Direito Constitucional moderno. Com todos os conceitos da escola do liberalismo, o de poder constituinte não há de furtar-se a uma análise revisionista de suas funções para saber-se como ele atua na sociedade política contemporânea ou o que ele, na essência, significa. Disse Lassalle que todas as questões constitucionais são questões de poder (Verfassungsfragen sind Machtfragen). As decepções com a Constituição formal fizeram a crítica descobrir a força da Constituição material, subjacente áquela, gravada em papel, segundo a ironia do reformista social fundador do socialismo alemão [...] O poder constituinte formal cede lugar assim a outro poder constituinte, mais real, mais eficaz, mais político e social, embora menos jurídico, que não está nos parlamentos senão na sociedade mesma. Em nome da Constituição real, ele produz resultado à primeira vista imprevisíveis na estrutura móvel do poder [...].‖ (BONAVIDES, 2010, p. 89).

Coutinho (2015, p. 9), sobre a temática dos parâmetros concluiu que: ―as ordens humanas são sempre compostas por normas que reflectem tais parâmetros‖ e que estão centradas na ideia de dignidade humana ou igualdade fundamental de todos na humanidade comum. Assim, a concepção parametrizadora na qual é ratificada autoridade a uma norma e que reconhece a todos direitos fundamentais, define um poder limitado que não pode ser modificado, desde que respeite a razoabilidade.

Em havendo um senso comum do que seja parâmetro sobre determinada matéria a norma é perfeitamente válida, não se podendo falar em conflitos de parâmetros. Entretanto, na democracia também deverá preservar as liberdades negativas, e, logicamente, os conflitos de parâmetros não podem ser dirimidos pela tradição ou comodismo do senso comum, até porque a sociedade contemporânea é capitaneada pela pluralidade axiológica, sendo praticamente impossível o senso comum. Pergunta-se: qual o órgão competente para solucionar um conflito de parâmetros? O legislativo ou o judiciário?

As discordâncias, os desacordos entre direitos fundamentais não são apenas políticos, mas jurídicos, e, por isso, a jurisdição constitucional, através de um Órgão independente, tem a legitimidade para averiguar a violação de direitos fundamentais quando houver desproporção do Estado Legislador.

O Poder Judiciário, assim, não precisa efetuar um juízo positivo (Barnes, 1998) em relação ao fato da medida restritiva escolhida ter sido a mais adequada, ou a mais idônea, ou a de maior equilíbrio, e sim perceber se o meio menos limitador foi levado em consideração. É o que Canotilho85 denomina de liberdade de conformação do legislador.

85Sobre a atuação do legislador, diz Canotilho: ―[...] O princípio da proibição do excesso aplica-se a todas as espécies de actos dos poderes públicos. Vincula o legislador, a administração e a jurisdição. Observar-se-á apenas que o controlo judicial baseado no princípio da proporcionalidade não tem extensão e intensidade semelhantes consoante se trate de actos legislativos, de actos da administração ou de actos de jurisdição. Ao legislador(e, eventualmente, a certas entidades com competência regulamentar) é reconhecido um considerável espaço de conformação(liberdade de conformação) na ponderação dos bens quando edita uma nova regulação(cf. Acs. TC 484/2000 e 187/2001, DR, II, de 26-06-2001). Esta liberdade de conformação tem especial relevância ao discutir- se os requisitos da adequação dos meios e da proporcionalidade em sentido restrito. Isto justifica que, perante o espaço de conformação do legislador, os tribunais se limitem a examinar se a regulação legislativa é manifestamente inadequada ou se existe um erro manifesto de apreciação por parte do legislador(cf. Ac. TC 108/99, DR, II, 104/99) [...].‖ (CANOTILHO, 2000, p. 272, grifo nosso).

É evidente que a gênese de um direito posto, calcado no jurídico e no político, ensejou o constitucionalismo que margeou a moderação dos governos, a limitação dos poderes, e o respeito a uma Constituição escrita86.

É o que Elival chamou de ―juridicização do poder‖ (RAMOS, 2014, p. 111). Foi por meio do Poder Constituinte, em ato de soberania, que surgiu o ordenamento jurídico e a institucionalização do poder com a criação de órgãos com funções diferentes e deliberados em uma Constituição, com o firmamento na separação de poderes e na delimitação das funções estatais87. Em resumo, a devida subordinação do Estado ao direito.

A lei restritiva de direitos fundamentais, com o vício da desproporção pela inadequação ou erro manifesto, evidente, não é substituída, mas sim invalidada pelo judiciário (BARNES, 1998). Há lógica, que a mesma maioria restritiva de direito fundamental reaprecie a matéria, ou essa situação deve ser resolvida por outra maioria pertencente a órgão diverso?

A possibilidade de restrição a direitos fundamentais por parte do legislador não é plena e absoluta em vista do princípio da proporcionalidade em uma situação de inconstitucionalidade inimaginável. Deve sempre haver um balanceamento entre o estado de direito ou princípios materiais (direitos fundamentais) com o princípio da competência decisória do legislador (democracia), tendo o escopo de não mitigar a escolha política (ALEXY, 2004, p. 90-91).

Como se vê, a democracia está vinculada à soberania popular, ao governo do povo e, em regra, a vontade majoritária, contudo a democracia não se resume ao princípio majoritário (BARROSO, 2009, p. 10-12). Na verdade, existe uma interpenetração entre democracia e Estado Constitucional, isso porque, apesar da soberania popular, não se pode descartar o constitucionalismo.

No que diz respeito à atuação da jurisdição constitucional constata-se duas justificativas: uma de natureza normativa e outra filosófica (BARROSO, 2009, p. 10- 12). O pensamento normatizado é oriundo da previsão constitucional que atribui

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Nas lições de Gonçalves, trouxe o fim do constitucionalismo nos seguintes termos: ―visa a estabelecer em toda parte regimes constitucionais, quer dizer, governos moderados, limitados em seus poderes, submetidos a Constituições escritas.‖ (FERREIRA FILHO, 2008, p. 7).

87 Conforme Montesquieu: ―estaria tudo perdido se um mesmo homem, ou um mesmo corpo de principais ou de nobres, ou do Povo, exercesse esses três poderes: o de fazer as leis; o de executar as resoluções públicas; e o de julgar os crimes ou as demandas dos particulares.‖ Isto porque ―é uma experiência eterna que todo homem que tem poder é levado a abusar dele‖, salvo se, ―pela disposição das coisas, o poder freie o poder‖ (MONTESQUIEU, 1999, p.165 e 168).

esse poder ao Judiciário. A justificativa filosófica para a jurisdição constitucional é a limitação do poder com o respeito aos direitos fundamentais.

Até esse ponto do trabalho há a constatação que a grande parte dos Estados democráticos separa uma fatia do poder político, não para legisladores ou gestores, mas para integrantes do Poder Judiciário ou de Tribunais Constitucionais não empossados pelo pleito eleitoral para agirem de maneira técnica e imparcial, sem que isso teoricamente extirpe a política e a democracia.

Nesta perspectiva é a definição de Maués:

[...] por definição, toda Constituição constitui um limite da expressão e da autonomia da vontade popular. Constituição quer dizer limitação da liberdade da maioria de cada momento, e, neste sentido, quanto mais Constituição, mais limitação do princípio democrático... O problema consiste em saber até que ponto é que a excessiva constitucionalização não se traduz em prejuízo do princípio democrático. (Artigo Sarmento e constituição ubíqua). (MAUÉS, 2001, 272).

A situação da constitucionalização, apesar da faceta positiva, é extremamente preocupante no instante em que tolhe, excessivamente, a vontade majoritária do povo através dos seus representantes eleitos, e quando a interpretação judicial ocorre sem a devida racionalidade em Constituições com inúmeras normas vagas e abstratas88.

Por outro lado, nos países constitucionais democráticos em que há um abismo entre as normas e os fatos sociais, inevitavelmente, imprescindivelmente

88 Trecho do artigo de Sarmento: ―[...] Vitória sim, mas não uma vitória sem custos. A constitucionalização do direito suscita também uma série de problemas. No presente estudo, pretendemos analisar dois deles, que nos parecem os mais importantes. O primeiro: constitucionalizar uma decisão é retirá-la do alcance das maiorias. Por isso, se tudo estiver constitucionalizado, então o povo, pelos seus representantes, não poderá mais decidir coisa alguma. Só emendando a Constituição, e mesmo assim, num país como o Brasil, em que abundam os limites materiais ao poder de reforma, apenas se a mudança não atingir alguma ―cláusula pétrea.‖ Em outras palavras, constitucionalização do Direito em excesso pode ser anti-democrática, por subtrair do povo o direito de decidir sobre a sua vida coletiva. E o segundo problema: a constitucionalização do Direito pode provocar uma certa anarquia metodológica. Esta não é uma consequência necessária do fenômeno, mas ela tem ocorrido no Brasil. Como a base da constitucionalização – pelo menos a da sua faceta mais virtuosa, identificada com a filtragem constitucional do Direito - é composta por normas vagas e abstratas, a irradiação destas normas pelo ordenamento, quando realizada pelo Poder Judiciário sem critérios racionais e intersubjetivamente controláveis, pode comprometer valores muito caros ao Estado Democrático de Direito. [...] A constitucionalização é apontada como algo intrinsecamente bom, redentor até – e aqui os típicos excessos retóricos da academia brasileira têm plena vazão. Afirma-se que constitucionalizar o ordenamento jurídico implica em aperfeiçoá-lo e aproximá-lo dos ideais de justiça – igualdade, liberdade, solidariedade, etc. – presentes no texto magno. Em geral, não discordamos deste ponto de vista, que já até defendemos em outro trabalho. Porém, na nossa opinião, falta, no Brasil, problematizar a questão, mostrando também o outro lado da moeda: os perigos que uma ―panconstitucionalização‖ do Direito, ou mesmo uma constitucionalização metodologicamente descontrolada, podem encerrar [...].‖ (SARMENTO, 2014, p. 2-3)

utilizar-se-ão da constitucionalização com uma volumosa sindicabilidade para a preservação ou o reestabelecimento de uma vida com um mínimo de dignidade.

3.15 O princípio da igualdade e suas formas - A igualdade perante a lei e na

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