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Confusão patrimonial e desvio de finalidade da pessoa jurídica

No documento Marina Pacheco Cardoso.pdf (páginas 109-112)

7 OMISSÃO COMO FRAUDE À PARTILHA DE BENS 1 Omissão direta dos bens

7.2 Omissão indireta

7.2.1 Mau uso da pessoa jurídica na partilha de bens

7.2.1.1 Confusão patrimonial e desvio de finalidade da pessoa jurídica

Vigem no direito da empresa os princípios da separação e da autonomia patrimonial, os quais estabelecem a distinção do patrimônio da pessoa jurídica e o das pessoas físicas dos seus sócios, e estipulam que os bens da pessoa jurídica respondem pelos atos praticados pela empresa, e não o das pessoas físicas constantes no contrato social. Esses princípios foram enraizados pelo revogado art.20 do Código Civil de 1916, cuja norma determinava a total independência do patrimônio social e inviabilizava a responsabilização dos bens dos sócios por atos da sociedade empresária e vice-versa, pois entendia-se à época que os bens e direitos da pessoa jurídica não pertencem a nenhum dos seus sócios, mas tão somente ao ente jurídico.344

Um dos benefícios da criação da pessoa jurídica está relacionado à ideia de limitação da responsabilidade dos sócios, em face da separação patrimonial, pois esta autonomia torna a responsabilidade dos sócios estranha à responsabilidade social, sendo as pessoas físicas somente responsabilizadas subsidiariamente, nos casos previstos em lei.345 Ou seja, a personificação da sociedade torna o patrimônio da pessoa jurídica inconfundível e incomunicável com o patrimônio individual de cada sócio, pois consoante observa Clóvis Beviláqua, a consequência jurídica da personificação da sociedade é a distinção dos membros que a compõem, pois cada um dos sócios é considerado uma individualidade e, a sociedade, uma outra, não havendo como lhes confundir a existência.346

Por conta da autonomia da pessoa jurídica, os sócios estão proibidos de misturar os patrimônios particulares com os da sociedade, sob pena de caracterizar abuso da personalidade jurídica pela confusão patrimonial, cuja figura jurídica pode ser caracterizada quando inobservadas as regras societárias. Um exemplo é a inexistência de adequada escrituração da

343 Art.134. O incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de

sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial.

344 MADALENO, Rolf Hanssen. A desconsideração judicial da pessoa jurídica e da interposta pessoa física no direito de

família e no direito das sucessões. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p.34.

345 REQUIÃO, Rubens. Abuso de direito e fraude através da personalidade Jurídica: disregard doctrine. São Paulo, Revista dos

Tribunais, São Paulo, v. 410, n.58, p.16, dez.1969.

sociedade empresária, ou simplesmente por não ficar claro, na prática, a separação entre o patrimônio social e o dos sócios.347

Apenas a título de exemplo, no julgamento da Apelação Cível nº9.247 do Tribunal de Alçada Civil de São Paulo, em 11 de abril de 1955, apesar de não fazer menção à desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, o Desembargador Relator Edgard de Moura Bittencourt detectou a ocorrência de confusão patrimonial e responsabilizou pessoalmente o sócio, ou seja, corretamente, afastou o princípio previsto no art.20 do Código Civil de 1916 de que a pessoa da sociedade não se confunde com o de seus membros. O caso concreto envolvia um hospital que assumiu a forma de sociedade anônima cujo patrimônio acabou se confundindo com o patrimônio pessoal de um de seus sócios, pois ele adquiria bens em nome da sociedade anônima para uso pessoal (imóvel residencial, televisão e geladeira domésticas).

No mesmo sentido, mas sob a égide do Código Civil de 2002 que permite a desconsideração da personalidade jurídica quando detectada a confusão patrimonial (CC, art.50), a Corte de Santa Catarina flagrou no julgamento do Agravo de Instrumento nº2010.073954-2, que um dos cônjuges “utiliza-se de suas empresas para encobrir seus bens, não possuindo qualquer imóvel ou móvel em seu nome, colocando todos em propriedade da empresa [...]”.348

Ou seja, configura verdadeira confusão patrimonial a aquisição de bens de uso pessoal pela sociedade empresária, ou ainda quando um dos sócios faz pagamentos de contas particulares diretamente pela empresa, uma prática muito habitual nas fraudes patrimoniais familiares, pois o cônjuge que administra a sociedade aparece nos litígios conjugais desprovido de bens e recursos em sua pessoa física, e muitas vezes, apesar do nítido embuste patrimonial, sai ileso e premiado pela cometida má-fé, pois alguns julgadores ainda hesitam em envolver pessoas jurídicas nos processos judiciais, pois entendem em uma míope visão que a imperiosa investigação acerca dos bens comuns envolverá sócios estranhos ao processo.

Sobre este excessivo respeito do Judiciário, Fábio Konder Comparato observa que se o próprio sócio, que é o maior interessado na manutenção do princípio da autonomia patrimonial, descumpre na prática, “não se vê bem porque os juízes haveriam de respeitá-lo”349.

Também resta configurada a confusão patrimonial quando mais de uma empresa pertence

347 CORDEIRO, António Manuel da Rocha e Menezes. Responsabilidade civil dos administradores. Coimbra: Almedina,

1997, p.324.

348 BRASIL. Tribunal de Justiça de Santa Catarina. Agravo de Instrumento nº2010.073954-2 , Primeira Câmara de Direito Civil,

Rel. Domingos Paludo, j.25/06/2014.

ao mesmo grupo econômico, mas a divisão societária das pessoas jurídicas conjugadas é meramente formal. Esse entendimento foi ilustrado no julgamento do Recurso Especial nº907915/SP, no qual o Ministro Luis Felipe Salomão, ao confirmar o acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, firmou entendimento de que a existência de empresas formalmente autônomas que substancialmente se integram com interesses convergentes formam um grupo empresarial e a confusão patrimonial existe, pois nessas organizações societárias, uma sociedade opera seus negócios por meio das demais empresas a elas vinculadas, são sócias umas das outras e transferem ativos entre elas.350

Salomão, no voto deste recurso, apoiando-se nas lições de Fábio Comparato, alerta que os grupos de sociedades são uma realidade que não deve passar despercebida pelo direito, pois “não é razoável que se admita a coligação de sociedades apenas quando favoreça a sua constituição e, por consequência, o rápido giro comercial e financeiro, desprezando-se esta realidade quando arguida em benefício dos credores de boa-fé.”351

Nesse viés, está consagrado o entendimento que “pertencendo ambas as sociedades ao mesmo grupo econômico, qualquer uma pode ser acionada, pois atuam em conjunto, utilizando- se dos mesmos funcionários, passando ao público consumidor a ideia de unicidade empresarial (teoria da aparência)”352.

Vale dizer que o julgador nas ações de partilha de bens não deve medir esforços quando estiver frente a litígios que envolvam diversas empresas sócias entre si, sendo correto o reconhecimento de grupo econômico e a determinação de aprofundado estudo técnico para identificar o real montante partilhável, pois é muitíssimo comum a construção de complexas teias societária para fraudar à meação de outro cônjuge, na qual diversas são as razões sociais estabelecidas para o alcance desta finalidade, sendo, inclusive, na maioria das vezes, o controle de todas as empresas de um só sócio ou de um grupo específico deles.

Em outras palavras, ocorre grupo econômico quando as empresas estão ligadas entre si, ou seja, quando há “empresa mãe e empresas irmãs”. Nesse caso, cada uma delas possui personalidade jurídica própria, isto é, CNPJ próprio, quadro de pessoal próprio, exercem

350 BRASIL. Tribunal de Justiça de São Paulo. Resp nº907915, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.07/06/2011. No

mesmo sentido: REsp 63652/SP; REsp 12.872/SP.

351 COMPARATO, Fábio Konder. O poder de controle na sociedade anônima. São Paulo: RT, 1976, p.284. (BRASIL.

Tribunal de Justiça de São Paulo. Resp. nº907915/SP. Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j.07/06/2011) No mesmo sentido: REsp 63652/SP; REsp 12.872/SP.

atividades econômicas similares ou diversas.353

Logo, assim como no direito do trabalho354, no direito de família, quando houver indício de fraude e um dos consortes for proprietário de mais de uma pessoa jurídica com fins econômicos – ainda que seja como administradora de bens –, e com uma relação de coordenação interempresarial, deve ser caracterizado como grupo econômico. Contudo na seara familiar, para fins de garantir uma justa e equânime partilha de bens, cuja figura além de representar uma confusão patrimonial ensejadora da aplicação inversa da desconsideração da personalidade jurídica deve ser considerada como tal para aferição da real participação do cônjuge fraudador no conglomerado de empresas como um todo, ainda que de algumas participe através de outras pessoas jurídicas, pois como é sabido, a constituição de sociedades nessas circunstâncias são criadas única e exclusivamente para fraudar a partilha dos bens conjugais.

No documento Marina Pacheco Cardoso.pdf (páginas 109-112)

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