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Princípio da boa-fé objetiva nas relações patrimoniais de família

No documento Marina Pacheco Cardoso.pdf (páginas 39-43)

3 DIREITO PATRIMONIAL 1 Noção de patrimônio

3.2 Princípios do direito patrimonial

3.2.4 Princípio da boa-fé objetiva nas relações patrimoniais de família

Com a mudança de paradigma após o advento da Constituição Federal de 1988, o ordenamento jurídico comprometido em estabelecer um padrão ético de conduta e regras capazes de evitar o desequilíbrio nas relações interpessoais, passou a tratar com primazia os efeitos sociais do comportamento humano em detrimento do seu sentimento e sua real intenção (boa-fé subjetiva), pois na sociedade atual quase não existe espaço para o imperativo ético, em especial no final das relações amorosas, onde a lealdade e honestidade estão em verdadeiro estágio de extinção. Daí a extrema importância da consagração do princípio da boa-fé objetiva em nosso sistema, assim como de novos mecanismos jurídicos para combater, por meio de “ameaças de sanções, os desonestos, desleais e mentirosos a agirem como se não o fossem”112.

Apesar de ter nascido e se desenvolvido em um cenário exclusivamente negocial e ser aplicada com mais abundância no direito do consumidor, direito administrativo e empresarial, a cláusula geral da boa-fé objetiva vem, progressivamente, ganhando espaço no Direito de Família, tanto nas relações existenciais como patrimoniais, para preservação e ampliação da incidência da confiança, e sobretudo, para proteção do princípio da dignidade humana com a vedação do injusto desequilíbrio patrimonial provocado pela conduta contraditória de um dos partícipes da relação familiar.

Difundida do direito alemão (BCG, §242), a boa-fé objetiva surgiu com a finalidade de corrigir os excessos da liberdade individual e se tornou um princípio geral de lealdade recíproca entre os contratantes, como igualmente assumiu uma função importante na solução de conflitos, sendo por essas razões, a preocupação da doutrina em investigar e compreender o seu conceito e conteúdo técnico, para ampliar sua aplicação em diversos gêneros de conflitos que caracterizem o abuso do direito, sem que levar à banalização do instituto.113

Uma das maiores contribuições dos juristas alemães foi diferenciar a boa-fé objetiva da boa-fé subjetiva, cuja distinção para Francisco Amaral ocorre da seguinte forma:

111 DÍEZ-PICAZO, Luís; GULLÓN, Antonio. Sistema de derecho civil. 11.ed. Madrid: Tecnos, 2003, p.379.

112 NEGREIROS, Teresa. O princípio da boa-fé contractual. In: (Org.) MORAES, Maria Celina Bodin de. Princípios do direito

civil contemporâneo. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.222.

A boa-fé é um princípio geral do direito que oferece duas perspectivas de análise e consideração. Para a primeira, de natureza subjetiva ou psicológica, a boa-fé é a crença de que se procede com lealdade, com certeza da existência do próprio direito, donde a convicção da licitude do ato ou da situação jurídica. É estado de consciência, uma crença de agir conforme o direito; é o respeito consciente ao direito de outrem. Para a segunda perspectiva, de natureza objetiva, a boa-fé significa a consideração, pelo agente, dos interesses alheios, ou da imposição de consideração pelos interesses legítimos da contraparte, o que é próprio de um comportamento leal, probo, honesto, que traduza um dever de lisura, correção e lealdade, a que o direito italiano chama de correttezza.114

Para Judith Martins Costa, “a expressão ‘boa-fé subjetiva’ denota do ‘estado de consciência’, ou convencimento individual de obrar (a parte) em conformidade ao direito”, e complementa, que “diz-se ‘subjetiva’ justamente porque, para sua aplicação, deve o intérprete considerar a intenção do sujeito da relação jurídica, o seu estado psicológico ou íntima convicção, enquanto o a boa-fé objetiva significa

modelo de conduta social, arquétipo ou standard jurídico, segundo o qual ‘cada pessoa deve ajustar sua própria conduta a esse arquétipo, obrando como obraria um homem reto; com honestidade, lealdade, probidade’. Por este modelo objetivo de conduta levam-se em consideração os fatores concretos do caso, tais como status pessoal e cultural dos envolvidos, não se admitindo uma aplicação mecânica do standard, de tipo meramente subjetivo.115

Por se tratar de um verdadeiro freio às atitudes antes tidas como irresistíveis na esfera contratual que a boa-fé objetiva ganha espaço, pois acaba por controlar os abusos da autonomia privada, sejam nas relações contratuais como nas familiares de ordem existencial e patrimonial. Contudo, para que não haja a vulgarização do instituto, Anderson Schreiber alerta sobre a necessidade da busca de uma justificativa técnica para ampliação de sua aplicação, pois a simples associação à ética, à equidade, ao comportamento digno e aos mais elevados valores sociais retira da cláusula geral sua utilidade prática nas soluções dos conflitos concretos já que fragilizado fica do ponto de vista científico pela generalização e pela ausência de especificação do seu conteúdo.116

Schreiber defende ser preciso resistir ao uso exacerbado e quase mitológico da boa-fé objetiva e atentar para seu “conceito técnico como cláusula geral que impõe deveres de lealdade

114 AMARAL, Francisco. Direito civil – introdução 6.ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p.420.

115 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 1999,

p.411.

e respeito à confiança recíproca entre as partes de uma relação jurídica, à margem da expressa constituição de obrigação nesse sentido.”117 Igualmente afirma ser imperioso o estabelecimento

de preceitos objetivos para aplicação desta cláusula geral, como ocorre com a vedação do enriquecimento sem causa e a proibição de comportamento contraditório quando visa lesar a confiança despertada em outrem, pois assim será delimitado de forma sólida o amplo conteúdo desta tão importante ferramenta jurídica.118

Apesar não precisar o conceito, na busca da melhor aplicação, a doutrina distinguiu três funções da boa-fé objetiva, a saber: a) interpretativa; b) criação de deveres jurídicos; e c) limite ao exercício dos direitos subjetivos,119 cuja divisão é muito útil às relações patrimoniais advindas do casamento ou da união estável, pois, na verdade, assim como as demais, apesar de afastado do Direito de Família o interesse no lucro e da vantagem econômica, são relações negociais que exigem um determinado padrão de conduta, a concretização da confiança e, principalmente, um dever de não se comportar contrariamente às expectativas geradas no outro no momento que ambos, tomados pelo amor e pela crença da eternidade da união, olhavam na mesma direção.

A função interpretativa, como bem assevera João Brandão Aguirre, busca identificar o “alcance do consenso de ambas as partes e os objetivos desejados no momento da entabulação do negócio”, cujos elementos, no Direito de Família, são de fácil verificação pela escolha do regime de bens. Os deveres jurídicos criados são aqueles que emanam da boa-fé objetiva e devem ser respeitados não somente durante a vigência do pacto firmado entre as partes, mas nos momentos que antecedem as tratativas e após o término da relação conjugal, conforme prevê o art.422 do Código Civil. Já a terceira e última função corretiva elencada pela doutrina visa coibir as negociações e condutas unilaterais e abusivas de um dos cônjuges ou companheiros que causem maliciosa redução patrimonial à meação do outro, uma vez que prima pelo equilíbrio da relação negocial com a correção dos danosos efeitos produzidos pelo abuso de direito cometido.120

Em outras palavras, as consagradas funções da boa-fé objetiva existem justamente para ajustar a intepretação do contrato, contribuir com o suprimento das falhas com acréscimo de

117 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2012, p. 318-319. 118 SCHREIBER, Anderson. Direito civil e Constituição. São Paulo: Atlas, 2012, p.320-322.

119 MARTINS-COSTA, Judith. A boa-fé no direito privado: sistema e tópica no processo obrigacional. São Paulo: RT, 1999,

p.44.

120 AGUIRRE, João Brandão. Responsabilidade e informação – efeitos jurídicos das informações, conselhos e recomendações

questões não abordadas por ele e, quando necessário, corrigir alguma questão “que não é de direito no sentido justo.”121

No entendimento de Cristiano Chaves de Farias, esta tríplice função da boa-fé objetiva a concede o caráter multifuncional, pois desempenha diferentes papéis de acordo com o caso concreto, como afasta nitidamente as relações patrimoniais da teoria da vontade e da teoria da declaração e as aproxima da teoria da confiança, pela qual “se materializam os valores constitucionais e prestigia-se a proteção fundamental da pessoa humana, a partir da solidariedade social e da isonomia.”122

Diante desta amplitude, guardando o alertado zelo, a boa-fé objetiva também penetra no Direito Patrimonial de Família, pois na qualidade de um princípio jurídico – que exige um comportamento ético – e de uma cláusula geral – responsável por proteger a confiança depositada nas relações familiares, impedir o venire contra factum proprium e o enriquecimento sem causa –, tem o cunho de preservar os interesses da entidade familiar, e, principalmente, a dignidade de seus membros nos efeitos materiais advindos do matrimônio, os quais refletem além da partilha de bens, objeto deste trabalho, na herança, na pensão alimentícia, no direito real de habitação, usufruto dos bens, entre outros assuntos especiais das relações familiares.

Assim sendo, a boa-fé objetiva deve impor modelos ideais de conduta e ao mesmo tempo consequências jurídicas para s hipótese de descumprimento destes deveres, como imperativo alicerçado na noção de responsabilidade, cuja ideia pretendemos sugerir na seara da divisão patrimonial decorrente da dissolução do casamento. Isto, porque, atualmente inexiste sanção ao cônjuge que se empenha em omitir ou desviar bens para fraudar à meação do outro, o que acaba por ser uma porta aberta às ações fraudulentas, pois se houver êxito nos maliciosos estratagemas, o desonesto é contemplado com a totalidade do bem comum sonegado, e na pior das hipóteses, terá apenas que submeter o patrimônio escondido à partilha ou sobrepartilha de bens, muitas vezes após anos de discussão ter se beneficiado do uso exclusivo ou até mesmo de eventual renda proporcionada com a sonegação.

A recíproca também deve ser protegida pela boa-fé objetiva, ou seja, quando cientes os cônjuges do patrimônio particular do outro, deve ser inviabilizada a pretensão de qualquer um deles de, por vias transversas, se beneficiar dos respectivos bens no momento da partilha, como,

121 AZEVEDO, Antônio Junqueira de. Insuficiência, deficiências e desatualização do Projeto de Código Civil na questão da boa-

fé objetiva nos contratos. In: Revista Trimestral de Direito Civil, v.1, p.7.

aliás, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial nº1.164.887/RS, quando negou a comunicação dos frutos de bem doado com cláusula de incomunicabilidade, cujo gravame abrangia as futuras bonificações, pois além de não haver exigência legal de os nubentes descreverem quais eram seus bens anteriores no momento do casamento, “pretender que o separando tivesse sido cientificado dos bens que a separanda possuía ao casar, bem como a condição de cada um deles, implicaria presumir que o casamento não estava sendo contraído de boa-fé pelo varão.”123

Exatamente por essas e outras situações é que a boa-fé objetiva, nesta perspectiva, é fundamental desde o princípio: na escolha do regime de bens, em eventual alteração do regime escolhido, na administração e gestão do patrimônio durante a união e, na dissolução dos vínculos familiares, consoante abordaremos na sequência, após analisar a vedação ao venire contra factum proprium.

3.2.5 A proibição do comportamento contraditório no âmbito das relações patrimoniais

No documento Marina Pacheco Cardoso.pdf (páginas 39-43)

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