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CAPÍTULO II – Debate Teórico A Filosofia da Linguagem

1. Conhecendo Bakhtin

Porém, antes de apresentar a teoria bakhtiniana, devemos atentar para quem foi Bakhtin. Isto é justificável, pois, principalmente na França, lugar do nascedouro da Análise do Discurso, o filósofo não é amplamente reconhecido nem pelas suas considerações filosóficas nem no tocante aos estudos linguísticos. Por exemplo, ao lermos Charaudeau vemos que ele só reconhece os estudos das formações discursivas a partir da ascensão de Pechêux (analisando o discurso dos políticos) e Foucault, como já dissemos anteriormente. No entanto, muitos dos avanços nos estudos de linguagem (que foram citados nas décadas de 1960 e 1970) já haviam sido criados – se não com a

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mesma terminologia, com a mesma ideia – no início do século pelo russo Bakhtin. O autor, para chegar a conceitos como dialogismo, carnavalização, polifonia e intertextualidade, buscou grande parte de suas teorizações no seio da vida social, como defende Miotello (2002)27. Desse modo, é importante apresentar o autor para depois apresentar suas teorias, que não são meramente linguísticas, mas teorias de linguagem em relação com o mundo.

Nascido em 1895, na cidade de Orel, Bakhtin teve uma sólida formação filosófica e de literatura desde a infância. Cursou Estudos Clássicos na Faculdade Filológica-Histórica, primeiro na Universidade da cidade natal, depois em São Petersburgo. Em 1918, fugindo do frio, ele mudou-se para a pequena cidade de Nevel – onde arregimentaria, um tempo depois, uma série de intelectuais (Lev Vasiliévitch Pumpiânski, Matvei Isaevich Kagan, Valentin Volochinov, Maria Iudina) para formar o famoso Círculo de Bakhtin. Nessa época acontece algo que iria ser parte da realidade na ainda embrionária União Soviética: Bakhtin teve que mudar-se novamente em 1920, para Vitebsk – em busca de melhor qualidade de vida e, principalmente, acesso à comida. Foi em Vitebsk que ele foi acometido de osteomiolite e febre tifóide, que o fizeram ficar em casa lendo, fumando e se debruçando a escrever sobre ética e estética.

Nesta altura Bakhtin conheceu Elena Aleksandrovna Okolóvitch, que seria sua esposa. Na primavera de 1924, Bakhtin retornou para a agora Leningrado e iniciou um período de efervescência intelectual, quando, primeiro publicou um livro sobre o freudismo e os formalistas russos, e ainda resgatou os trabalhos do Círculo de Bakhtin com novos membros e alguns de outrora. De acordo com Miotello (2002) em janeiro de 1929 foi a vez de Bakhtin sofrer um primeiro expurgo: por uma série de acusações esdrúxulas, foi condenado a passar dez anos nas ilhas Soloviétski (Sibéria).28 No entanto, como sua saúde não suportaria, teve a pena abrandada.

O ano de 1929 é marcante também, pois foi quando Bakhtin publicaria duas grandes obras: Marxismo e Filosofia da Linguagem e Problemas da poética de Dostoiévski. Porém, não obteria fama por conta disso – ao contrário – ganharia a pena de reclusão de sua própria terra. Após muitos percalços, Bakhtin ficou na gélida Sibéria

27 As demais informações históricas a seguir também são de Miotello. No entanto, não haverá referência a fim de não tornar o texto muito repetitivo.

28 Bakhtin foi acusado por três motivos: ser membro da Irmandade de São Serafim, que era contra e não apoiava a revolução; porque poderia ser participante de uma lista de um futuro governo anticomunista, divulgada em Paris e por corromper jovens em aulas dadas em cursos pastorais.

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somente até dezembro de 1929. Por conta da pressão dos amigos e da frágil saúde teve o encarceramento relaxado e, um tempo depois, a condenação comutada para pena de exílio no Cazaquistão, em Kustanai. Por não poder lecionar (uma vez que ele "corrompia" a juventude, um dos argumentos para ser preso), acabou trabalhando em uma cooperativa distrital, na parte de cálculos para cumprir os planos econômicos comunistas. Apesar da melhora nas condições de vida, ele teve que se distanciar dos estudos. Por outro lado, pôde ver de perto as mazelas e dificuldades que o comunismo real impunha aos russos, e como estavam devastando o modo de vida tradicional.

Foi somente em 1936 que Bakhtin teve autorização para lecionar literatura no Instituto Pedagógico da Mordóvia, em Saransk. Infelizmente o retorno durou menos de um ano: com o recrudescimento dos Grandes Expurgos como política de Josef Stálin, Bakhtin teve que ir para Savelovo, cidade a 100 quilômetros de distância de Moscou – distância mínima que uma pessoa com antecedentes políticos poderia ficar da capital.

Nesta época, a ajuda dos amigos para a subsistência básica foi necessária – problema que rondou a vida de Bakhtin desde cedo, com raros momentos de folga. Sem trabalho, ele voltou-se para os estudos do romance e finalizou o doutorado sobre François Rabelais. Entre os anos de 1941 e 1945, passou a ensinar línguas – um retrocesso para quem já ostentava grande atividade intelectual. Por ironia da vida, com o final da segunda guerra mundial Bakhtin foi aceito novamente em Saransk, onde ganhou cargo importante e passou a ser tratado com deferência. Em meados de 1956 e 1957 começou a ganhar fama, por conta das concorridas aulas e palestras que dava, além de passar a ser reconhecido e citado por seus pares acadêmicos.

A vida de Bakhtin e da esposa só mudou por causa do entusiasmo de estudantes moscovitas de pós-graduação: ao estudar o texto de Bakhtin sobre Dostoiévski, o grupo decidiu republicar a obra e, por acaso, descobriu que o autor ainda vivia. Assim, Bakhtin foi revisitado em vida. Em 61 começaram os contatos e no ano seguinte saiu a republicação oficial do texto. Novamente por ironia, a autorização da ida ao prelo foi dada pelo Partido Soviético – em um jogo de “morde e assopra”.

Em 1966 a saúde do casal deteriorou e em 1969 eles foram para Moscou a fim de se tratarem no hospital do Kremlin, famoso pelos tratamentos e pela dificuldade de se conseguir vagas. Uma vez mais, os bafejos de sarcasmo estiveram presentes para o russo, já que uma aluna em especial foi quem ajudou o casal a conseguir quarto no prestigiado local. Ela era filha de Iúri Andropov, que seria anos depois líder da União Soviética (entre 83 e 84). Após um tempo sendo cuidados, Bakhtin e Elena tiveram que

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ser transferidos para um asilo, onde ela faleceu em 71. Sem a mulher, Bakhtin comprou um apartamento de dois dormitórios e contratou uma governanta. O dinheiro veio dos direitos autorais das obras publicadas.

Como podemos notar, a vida de Mikhail Bakhtin foi pontuada por ironias na relação entre o marxismo e a realidade social, quando, ora era reverenciado, ora escorraçado. No início, entusiasmou-se com a nova revolução que a Rússia viveu, para depois se desencantar com os rumos tomados. Por outro lado, apesar da fragilidade de saúde, viveu sempre em busca dos elementos culturais disponíveis no povo e da literatura para sustentar as teorias que viria a postular, apesar de nunca ter tido a paz necessária para escrever. Mesmo assim, Bakhtin foi um prolífico escritor e atuante docente. Um homem ímpar. “Uma das figuras mais fascinantes e enigmáticas do mundo europeu no século XX”, como disse o discípulo Todorov no prefácio da edição francesa do livro Estética da Criação Verbal [1979] (2003).29 Primeiro por conta das dificuldades da vida (além de tudo ainda teve que amputar uma perna por causa da osteomielite), depois pela amplitude do seu pensamento: Bakhtin nunca assumiu a autoria, por exemplo, do livro Marxismo. Muitos autores indicam Volochinov como o real autor da obra. Para um autor que pregava a dialogia, não fazia nenhum sentido "brigar" por um texto – já que ele mesmo era formado por muitos outros, constituído por outras vozes. Essa é a maior celeuma que persegue e dá tons de mito para o autor. Existem outros mitos que sustentam a aura do autor, como o texto sobre Rabelais nunca ter sido aceito pelo Instituto Gorki por conta da polêmica que a tese de doutoramento provocava. Outro fato acontecido foi ele ter usado uma versão do trabalho sobre Dostoiévski como papel de cigarro; e depois, na falta dos manuscritos, também teria fumado uma Bíblia30.

Atualmente Bakhtin é conhecido como o filósofo do diálogo – não somente pela filosofia atemporal que criou, mas também pelo que viveu até o fim. A passagem de morte do autor demonstra tal espírito: "E em 7 de Março de 1975, às duas da madrugada, ele morreu pronunciando suas últimas palavras, anotadas pela enfermeira: “Eu vou ter contigo”. Morreu como viveu e como ensinou: indo ao encontro do outro"(MIOTELLO, 2002, p.4).

29 BAKHTIN, Mikhail [1979]. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão Pereira. São Paulo, Martins Fontes, 1997.

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Em relação aos demais filósofos e linguistas, é clara a separação entre Filosofia da Linguagem de Bakhtin e Análise do Discurso – esta última constituída em disciplina na década de 1950 através de esforços de Zellig Harris (cf. PARO, 2005, p.15). De acordo com a autora, a AD demorou para chegar a considerar o contexto do enunciado, abusando da abordagem estruturalista imanente, sendo que só conseguiu tal salto após Roman Jakobson e Émile Benveniste. Na vertente francesa, por meio de M. Pechêux, é que foi inserida a noção de discurso/poder foucaultiana e de ideologia althusseriana. Enquanto isso o flanco anglo-americano ainda considera a AD uma extensão pura da linguística no qual o indivíduo é imune ao contexto e, segundo Denise Paro (2005), as exceções são Norman Fairclough, Allan Bell e Roger Fowler – que pendem para aceitar a realidade social nas pesquisas.

Os nomes que citamos surgiram da metade do século 20 para frente, enquanto Bakhtin já preconizava suas teorias trinta anos antes dos modernos. O percurso mostra claramente que outras correntes aceitam em partes ou negam veementemente o contexto sócio-histórico e a necessidade do outro, enquanto Bakhtin eleva-os como elemento central de sua teoria – constituindo seu principal distanciamento metodológico e teórico. Nem dentre os futuros estudiosos Bakhtin conseguiu ressonância tão profícua quanto o fez com seus amigos do Círculo de Bakhtin por décadas – sendo que apenas nos últimos anos eles vêm sendo retomados não somente no âmbito acadêmico ocidental, mas também em pesquisas na própria Rússia, a fim de descobrir novos textos.