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CAPÍTULO II – Debate Teórico A Filosofia da Linguagem

3. Compreendendo Bakhtin Dialogismo

3.2. Estilo, construção composicional e tema

Adentraremos neste ponto na problemática do estudo sobre a estilística em Bakhtin. Ganha necessidade saber que os enunciados são individuais, na medida em que

36 BENVENISTE, Émile. Problemas de linguística geral I. 4.ed., Campinas, São Paulo, Pontes, 1995. 37 VAN DIJK, T. A. La noticia como discurso. Compreensión, estructura y producción de la información. Barcelona, Paidós, 1980.

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o signo imanta-se de sentidos dentro da consciência para ganhar materialidade no contexto externo. A citação seguinte sintetiza bem o que já vimos até agora no autor russo:

Por outro lado, todo fenômeno ideológico, ao longo do processo de sua criação, passa pelo psiquismo, como por uma instância obrigatória. Repetindo: todo signo ideológico exterior, qualquer que seja sua natureza, banha-se nos signos interiores, na consciência. Ele nasce deste oceano de signos interiores e aí continua a viver, pois a vida do signo exterior é constituída por um processo sempre renovado de compreensão, de emoção, de assimilação, isto é, por uma integração reiterada no contexto interior (BAKHTIN, 1997, p.57).

Até aqui já percorremos a questão da ideologia, alinhada à consciência individual, passamos pela necessidade do outro como forma de ideologização e estratégia do dizer, até chegarmos à compreensão única e reiterável ao mesmo tempo, estipulando a compreensão. Este devaneio estrutural nos facilita a limpar a área e abrir espaço para o novo momento em que o estilo toma voz. Brait (2005) aponta a dificuldade de se falar de estilo dentro da teoria de Bakhtin, já que este prima pela relação do eu com o outro.

A própria definição de estilo não é algo simplório: basta dizer que são centenas de conceitos que buscam defini-lo, sem consenso. Como ponto comum, temos a questão estilística nem sempre ligada à exclusividade do sujeito. Só que este é um ponto raso e a ser abordado. Por exemplo, quando Bakhtin estuda no Marxismo a construção do discurso citado, acaba por encontrar tanto o estilo linear quanto o pictórico. No estudo de cada escritor, o autor consegue encontrar a historicidade imanente, demonstrando que os estilos são mutáveis ao largo do tempo. Mas é no texto denominado Discurso na vida e discurso na arte que Bakhtin trata do estilo de uma maneira filosófica: "o estilo é o homem". Com tal frase, quis dar a entender que o estilo é um homem em constante diálogo dele com outros e até consigo mesmo, refratando diálogos anteriores que o constituíram – tornando-se um participante constante da fala interior e exterior (cf. BAKHTIN apud BRAIT, 2005, p.82).

Como vimos, posto ser o estilo uma das raízes dos gêneros do discurso, então cabe afirmar que onde existe gênero existe estilo. De acordo com Bakhtin (2003) há alguns gêneros que são mais ou menos propícios para a visibilidade do estilo. O que não podemos é cair na falácia de que não existe estilo: ele sempre existe em cada atividade humana, que gera um gênero discursivo. Ou seja, todo discurso é composto por este epifenômeno complementar, sendo que mudanças de gêneros dos discursos implicam

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também em mudanças históricas. Na questão do estilo é que a visão do sujeito ganha espaço, uma vez que é quando os homens utilizam-se da sua capacidade de alterar os gêneros discursivos.

Sírio Possenti (1993) apresenta três possibilidades ao discorrer sobre estilo. Ele inicia seu texto afirmando que existe uma idiossincrasia pessoal do escritor – logo o estilo ali se encontra; depois, o estilo pode ser visto como uma mera técnica expressiva. A última é a perspectiva totalizante, que vê estilo em todo lugar. Tentar uma definição una e permanente de estilo é buscar enquadrar algo que é, desde logo, impossível de se enquadrar. Por isso, ressalta o autor, a categoria que mais tem adeptos é aquela que considera estilo como algo fora do normal (quando não é considerado erro); já um segundo entendimento, menos aceito, é a estilística como concepção de mundo. No entanto, para Possenti, estilo é definido pela multiplicidade dos códigos. No momento em que o sujeito escolhe uma maneira de dizer algo, ele irá se utilizar da língua, a fim de estabelecer um discurso. Estilo seria então a possibilidade de se "trabalhar" dentro de uma estrutura dada, onde são escolhidas algumas opções, sejam sons, sintaxes ou processos morfológicos, e assim obter um repertório para produzir um discurso – em um jogo entre forma e conteúdo.

Já no excerto O autor e o herói na atividade estética, Bakhtin avança na visão totalizadora sobre estilo. Para ele, estilo faz parte do acabamento da obra, tendo ao seu lado a forma e o tema (como veremos adiante). A diferença é que Bakhtin não para por aqui e prossegue: primeiro ele coloca como necessária a suposição do contexto, com os seus valores de mundo e vida. Por isso é que ele se questiona sobre a relação entre estilo e subjetividade, bem como estilo e conteúdo (BAKHTIN, 2003, p.186). A réplica para tantos questionamentos é a conclusão de que estilo é a unidade de exterioridade do mundo, sendo um olhar unívoco deste, constituindo uma sociedade formada pela relação eu-outro. Logo, o estilo é reciclável, dependendo do momento humano em relação à luta com o pensamento alheio – mas sem deixar de lado as formas de expressão do pensamento próprio (apud BRAIT, 2005, p.94). Como é possível notar, existe sempre um movimento orgânico no pensamento de Bakhtin, em que a separação e isolamento conceitual não são captados – e por isso, talvez, haja tamanha dificuldade em entender o autor sem abstrair em um relativismo.

Assim, chegamos a um segundo momento, relacionado ao tema do enunciado. Assumir que os gêneros dos discursos comportam uma temática é dizer que existe uma embocadura dada pelo enunciador. Dissemos que os gêneros discursivos são tão

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variados quanto as atividades humanas – e dentro de cada diálogo possível existe uma possibilidade temática, um acabamento relativo, o que Bakhtin chama de intuito discursivo ou querer dizer relativo ao enunciado (1997, p.300). Desde o nascimento passamos a viver em interação e comunicação constante. Utilizamo-nos das diversas formas de linguagem para indicar este intuito para o nosso outro. Cabe entender que é uma indicação no sentido aberto – quantas vezes uma pergunta ou resposta foi dada, mesmo em uma conversa a dois, em alto e bom som, e o interlocutor simplesmente "não entendeu"? Fato é que ele não entendeu da maneira como o sujeito primeiro da cadeia buscou indicar, mas entendeu algo (alguma resposta gerou) e interpretou distintamente, pois teve dificuldades na compreensão total.

O intuito, o elemento subjetivo do enunciado, entra em combinação com o objeto do sentido – objetivo – para formar uma unidade indissolúvel, que ele limita, vincula à situação concreta (única) da comunicação verbal, marcada pelas circunstâncias individuais, pelos parceiros individualizados e suas intervenções anteriores: seus enunciados (BAKHTIN, 1997, p.300).

Miotello (2002, p.5) diz que é na questão do tema que aparecem os índices de valor dos signos. Ao atribuirmos valores é que iremos individualizar e dar concretude para os signos. Só que não é individualizar no sentido clássico da palavra: “Donde se vê que o valor não é atribuição individual, mas 'significação interindividual” (MIOTELLO, 2002, p.5). Como já deu para perceber, um parâmetro de Bakhtin é que o indivíduo nunca está independente do social: a imersão se dá na consciência e, por meio de um processo que Miotello denominou de esquecimento e adonamento, o indivíduo vai tomar os signos sociais enquanto seus para depois jogá-los novamente no social (refletindo e refratando as posições autorais) – por meio de uma temática específica. Podemos dizer, fazendo uso de uma paródia bem humorada para os signos: "do social viestes e para o social voltarás". Portanto, signo ideológico sofre influência da interpretação do Eu e da forte presença do diálogo com Outro fortalecendo tal compreensão.

Vamos atentar agora à questão da construção composicional, como terceira e última parte dos gêneros dos discursos. Uma vez mais, ressaltamos que o todo é o importante para não ter uma visão errônea do processo complexo da comunicação verbal. Bakhtin nega veementemente a separação em funções, como ouvinte, locutor e receptor.

80 A compreensão de uma fala viva, de um enunciado vivo é sempre acompanhada de uma atitude responsiva ativa (conquanto o grau dessa atividade seja muito variável); toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor. A compreensão passiva das significações do discurso ouvido é apenas o elemento abstrato de um fato real que é o todo constituído pela compreensão responsiva ativa e que se materializa no ato real da resposta fônica subsequente (BAKHTIN, 1997, p.290).

Somos, portanto, eternos respondentes. A parte da estrutura composicional é basicamente a forma como decidimos enunciar algo. Primeiro há a própria noção de entendimento, ou seja, ambos os sujeitos devem compartilhar do mesmo código linguístico. A partir daí, é preciso que sejam explicitamente entendíveis dentro deste código para se unir na infindável réplica do enunciado. Para tanto, acionamos estratégias do dizer relacionadas ao nosso interlocutor, o outro em questão. Conta-nos Bakhtin que isto tudo providenciará (em uma abstração de pensamento) um acabamento específico da posição do locutor. Bakhtin não leva em conta a oração indefinida, como Saussure faz. O jogo é entender a oração dentro de um contexto imediatamente relacionável. Por isso que, em um diálogo, até as pausas (a Análise do Discurso chamaria teoricamente de silêncio ou não dito) fazem parte do todo do diálogo. Para tanto, a oração tem que vir a se tornar um enunciado completo – cuja característica mor é a alternância de sujeitos. Ignora-se assim que as pessoas troquem orações, no sentido de unidade de língua. As pessoas constroem diálogos que emulam sentidos diversos.

Primeiro Bakhtin diz que todos os gêneros possuem uma forma padrão e que o ser humano utiliza uma gama de gêneros diariamente como repertório linguístico, sendo que é com eles que iremos até mesmo aprender as estruturas da língua materna. Obviamente que, no cotidiano, a maleabilidade e criatividade imperam; uma vez mais, olhar para as formas do gênero do enunciado não significa que estamos abandonando o todo do diálogo – aliás, longe disso. Tema, estilo e estrutura composicional se agregam e transmutam-se nos gêneros do discurso, variáveis de acordo com as situações sócio- históricas concretas e ligadas pelo elo da relação com o outro – pressupondo sempre um diálogo tanto no devir (existem discursos anteriores) e no porvir (a respostas que nascerão daquele discurso). Esta é a gênese dos gêneros discursivos.

Conforme expusemos, existem gêneros que são mais estabilizados e outros que comportam uma menor padronização. E é a ignorância em relação aos gêneros que faz o homem ficar mais ou menos à vontade em determinadas situações sociais. Para Bakhtin, quando indivíduo está em uma situação em que ele não domina o gênero (seja oral ou verbal), acaba ficando inapto para moldar as respostas com a velocidade de pensamento

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necessário dentro da estilística e composição que o gênero em questão requer. Então, recebemos a língua como forma prescritiva, gramaticalmente falando, e aprendemos a "nos virar" no dia a dia, com manifestações diversas que fogem à regra. Por isso, é tão importante a variedade linguística e saber se portar com suas munições.

Com o intuito de fechar esta exposição sobre gênero do discurso, vale anotar que Bakhtin admite que o signo se porta como uma ponte entre a língua sistêmica e a realidade imediata. A diferença é que ele faz uma espécie de encruzilhada tripartite e inseparável, seja na sua parte material (som somado à grafia), seja na parte do ponto de vista do eu (a escolha de uma ou de outra) ou na parte da materialidade sócio-histórica (GEGE, 2009, p.93). Todo signo pode ser utilizado e reutilizado, posto ele ser dono de uma espécie de bagagem. Ele é novo e velho ao mesmo tempo – impregnado de um sentido único entendível por todos e, concomitantemente, também saturado de um sentido total que só pode ser lido em um contexto dado. Nestes sentidos é que podemos entender a capacidade do discurso ser polifônico (ter várias vozes ecoando dentro dele) e interdiscursivo (capacidade de dialogar com gêneros discursivos e gêneros alheios).