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Conhecer o continente africano antigo e moderno como lugar do conhecimento Desde a Antiguidade Clássica aqueles que produzem o conhecimento apresentaram a

PARTE II – CONHECIMENTO, CIÊNCIA E PODER REFLEXÕES SOBRE O OCIDENTE

Capítulo 2 A produção histórica do conhecimento sistematicamente produzido pela Ciência Ocidental

3.1 Conhecer o continente africano antigo e moderno como lugar do conhecimento Desde a Antiguidade Clássica aqueles que produzem o conhecimento apresentaram a

cor da pele, a língua, a cultura, o corpo, as características geográficas da região dos povos africanos com grande estranhamento. É legítimo o impacto que as diferenças, principalmente a fenotípica, entre os europeus e os africanos causavam entre si, contudo com uma invenção da África mediada por moralismos, achismos, ceticismos e intencionalidades de poder passou pela esmagadora desqualificação dos elementos que causavam estranhamento e criou imagens que tem início na Antiguidade e termina nos dias atuais com negros amarrados em postes e ainda comparados a animais.

O relato de uma amiga do doutorado pode ilustrar os efeitos desses valores no imaginário social construído em uma fala de denuncia e desabado: Aprendi a ter medo dos negros com minha avó. Quando uma pessoa negra passava na calçada de nossa casa ela mandava todos entrarem e dizia coisas horríveis sobre eles e mandava que nunca chegássemos perto. Quando eu vi um africano aqui na universidade fiquei tão assustada que entrei em choque e não conseguia para de olhar. Alguém saberia dar uma explicação lógica para o medo desta avó?

As teorias racistas que foram ganhando consistência ao longo dos séculos apesar de terem perdido suas validades científicas na contemporaneidade continuam tendo um fortíssimo efeito na sociedade e na mente das pessoas da sociedade, a ponto de criar modelos mentais e ideias de mundo que se propagam por meio do discurso e da ideologia veiculados

111 pelas instituições sociais (principalmente educacionais, familiares e igrejas) como instrumento de poder. Se essa minha amiga não for cuidadosa, os conhecimentos que ela produzir como cientista sofrerão influência das teorias racistas que ela incorporou sem saber.

É um problema para as ciências na América do Sul e no continente africano sermos intelectualmente formados com os currículos epistemologicamente eurocêntricos e esta afirmação é reforçada pelo antropólogo brasileiro Cláudio Costa Pinheiro (2014), em entrevista à Ciência Hoje36, ao analisar a dominação cultural da Europa e dos Estados Unidos sobre outros países como o Brasil:

As agendas de pensamento estão muito profundamente ancoradas em conjuntos de teorias, temas, categorias de análise e agendas de financiamento à produção científica que se referem a uma experiência histórica particular, que é a do Atlântico Norte – tanto europeia, quanto norte-americana. É nessas experiências que nós, da periferia, acabamos baseando nosso discurso intelectual sociológico, antropológico, político e historiográfico.

A sistematização de conteúdos e de conhecimentos dado primeiramente como mérito de Aristóteles fixou para o pensamento ocidental campos de investigação da Filosofia como a totalidade do saber humano. Contudo, antes desta houve outras sistematizações nas civilizações babilônias, egípcias, chinesas que são também contribuição relevante para a construção do conhecimento universal e para o fortalecimento de uma ciência criativa.

Como mostra Cunha (2010), o Egito possuía uma ciência na astronomia, na arquitetura, na engenharia, na matemática, na navegação e possuía uma ciência médica e farmacológica sistematizada em que capacidade de promover cirurgias como as cerebrais, de catarata ou o engessamento de membros com ossos quebrados, conhecer substâncias cicatrizantes e anestésicos foram demonstradas em documentos encontrados. Essas conquistas da medicina egípcia estão registradas em “papiros médicos” que descreviam com detalhes procedimentos complexos.

Para Carlos Eduardo Dias Machado, e um artigo no Phortetv, os africanos produziram grandes avanços que precisam imediatamente ser revistos e compartilhado nas comunidades acadêmicas.

36 CIÊNCIAHOJE | 312| VOL. 52, 2014, p.06.

112 Nós não teríamos construído a civilização no Egito, Etiópia, Congo e no Benin, assim como as artes e as ciências, sem o processo científico. É necessário ensinar nas escolas e universidades a matriz civilizatória dos povos africanos e afrodescendentes para a ciência, tecnologia e inovação ao invés de privilegiar uma “história única” que coloca a ciência em geral como um atributo essencialmente branco europeu, desconsiderando o fato de que, assim como a humanidade, as primeiras civilizações, os primeiros passos da ciência, foram dados no continente africano, ou seja, no Egito e não na Grécia, conforme atestou o próprio “pai da História”, o grego Heródoto que ao visitar o Egito Antigo nos legou duas informações que contrariam os eurocêntricos: os egípcios tiveram a primazia da ciência e eles eram negros. (MACHADO, 215, s/p)

Segundo Tcherno Djaló (2009), a contribuição da civilização africana para a história da humanidade deve ser reconhecida no seu justo valor, uma contribuição específica entre outras, nem superior, nem inferior. No domínio da organização política, os africanos conheceram no passado variadíssimas formas de Estado, indo do mais absoluto tipo de monarquia às formas de organização diametralmente opostas, sociedades cuja ausência de identificáveis aristocracias ou de claras hierarquias de autoridade não seriam de fácil compreensão para aqueles antropólogos no passado que estabeleceram comparações com os modelos que conheciam, passando a considerá-las como sociedades «acéfalas».

Cheik Anta Diop diz que é preciso aprender a historia dos outros, mas é preciso primeiro conhecer a si mesmo. Por que se não o povo que perde sua memória histórica se torna um povo fraco. Um povo sem união. É a consciência histórica que nos permite ser um povo forte. É por isso que mesmo na diáspora essa consciência deve ser vivificada e que esta ligação continue existindo onde quer que estejamos. Quando perguntaram a ele do porque da história do Egito antigo ser tão crucial para o povo negro, ele respondeu:

É porque, como eu digo sempre, a civilização do Egito antigo, (...) desempenhou o mesmo papel em relação a África que a civilização Greco-romana desempenhou em relação ao Ocidente. Se queremos recriar um corpo de ciências humanas na África é necessário começar pelo Egito. Ligadas a história do Egito antigo. É a única maneira, como eu digo sempre, de reconciliar a civilização africana com a História. (YouTube. "dr. cheik anta diop pt1” no Canal: AritHeru23. Enviado em 16 de jul de 2008)

Os antigos egípcios eram negros como todos os outros naturais da África e essa é uma referência necessária para os currículos acadêmicos brasileiros, que tem um patrimônio ligado ao continente africano. Nos países onde há afrodescendentes e nos países do continente

113 africano a situação de suas populações que não atingem autonomia e emancipação deve-se, principalmente, às particularidades dos seus processos históricos como temos discutido e culturais e não ao grau de inteligência ou aptidão científica. Impor nas ciências somente o acúmulo e o domínio do conhecimento sistematizado da Europa, ou a partir dela, é um contrassenso em sociedades que precisam criar outros caminhos para atender aos níveis de complexidade de suas sociedades e suas patologias, como por exemplo, o racismo antinegro.

Como mulher negra, e olhando para minha formação escolar e acadêmica, sinto o quanto a negligencia desses saberes afetam nosso empoderamento. Lembro-me de inúmeras vezes que os conteúdos apresentados me levaram para fora dos livros e da apreensão mas significativa. A ciência egípcia é tão rica e complexa quanto a que ciência grega. E o Egito deve ser constituído como uma referência para a ciência e assim dissiparmos do imaginário coletivo o corpo (científico, social) de crenças racistas a respeito da suposta inferioridade de determinados grupos humanos em relação a outros no que se refere à capacidade de criar respostas para nossos problemas.

Se o filósofo é aquele que dedica seu tempo ao pensamento, a reflexão e a sistematização de ambos, sobre questões fundamentais da vida humana e do universo físico, porque quando se trata de antiguidade somente aos gregos é dado o crédito de filósofos? Não seria possível afirmar que a filosofia existiu também na África, na Ásia? A ascensão do pensamento filosófico ao pensamento científico definiu certo tipo de estrutura que negou a ontologia, a metafísica, as epistemologias, a psicologia, as éticas, a religiosidade, a racionalidade africana. Sendo que deste continente, que nasceu a humanidade, também nasceu uma originalidade do pensamento que para compreendê-lo precisamos evitar as comparações.