• Nenhum resultado encontrado

PARTE III – O ESTUDO DE CASO: REFLETINDO SOBRE GUINÉ E A CIÊNCIA

HI STÓRI A PODER 5.1.1 O que existia antes da Colonização

5.1.5 Guiné atual: Crises e instabilidades políticas A ordem dos organismos internacionais Desenvolvimento ou Pseudodesenvolvimento

A análise geral que se faz da realidade guineense formula um juízo pessimista: Guiné Bissau é um país em constantes crises políticas, um país instável economicamente, um país pobre, de analfabetos e subdesenvolvido. Expressões cheias de equívocos que utiliza terminologias científicas justificadas para situar o quadro do país na estrutura mundial às vezes ancorada em qualquer fatalismo histórico ou étnico, outras vezes justificadas pelo fenômeno da dominação colonial.

Um país que vem sofrendo muito com as convulsões dentro do governo, dos partidos políticos e tudo. O que não tem deixado o país andar. Então de certa maneiro isso me deixa muito triste, (...) na verdade nenhum governo chegou a cumprir seu mandato, nenhum presidente chegou a concluir seu mandato também, mas há a esperança do povo e isso nos anima bastante. Tudo isso tem uma representação muito grande para mim, esses momentos e acho que a minha volta e de outros pode somar aqueles que estão lá lutando para que Guine Bissau possa andar. Pesquisador Nº 2.

169 Os estudos do Banco Mundial sobre Guiné Bissau (e /ou demais países africanos) são bastante utilizados por Cá, Furtado, Monteiro e Djaló59 para evidenciar as categorias de pobreza e de subdesenvolvimento atual do país. Com um produto interno bruto per capita que não ultrapassa os 240 dólares (Em 2005), o país está entre os mais pobres do mundo (FURTADO, 2005), com 80% da população vivendo da agricultura (CÁ, 2005).

É um país eminentemente agrícola e a agricultura emprega cerca de 80% da força de trabalho guineense e tem como principais produtos de exportação a castanha de caju, que abastece 30% de orçamento do Estado, a madeira e o peixe. Concernente aos recursos naturais, há ainda a exploração de reservas de bauxita, fosfato e petróleo. (DJALÓ, 2014, p.100)

A grande maioria da população vive na zona rural, onde se concentra 84,5% dos pobres. Segundo dados revelados pelo ILAP (I) de 2002, mais de metade da população do país vive com menos de 2 dólares por dia. A pobreza extrema (menos de um dólar por dia) afeta 20.8% da população. (FURTADO, 2005, p. 214)

Furtado apresenta um quadro pessimista sobre a situação de Guiné nas décadas após a independência: A taxa de mortalidade infantil, a mortalidade materna, a taxa de analfabetismo adulto que acredito são é reflexo de uma série de fatores ligados ao processo histórico de exploração e colonização do continente, mas, sobretudo, reflexo de uma colonização epistêmica incutida em todas as instituições sociais que perpetua um modelo herdado, com ênfase na subaltemização (e na hierarquia) das formas de ser, de se relacionar, nos modos de agir, de pensar. Aqueles que utilizam talheres para a alimentação podem julgar que os que comem comas mãos o fazem por pobreza, mas isso não significa que de fato é. A casa feita de pedras e lama pode ser julgada como a precariedade e pobreza por aqueles que usam cimento e tijolos, mas isso não significa que de fato é.

Não quero dizer com isso que não se devam analisar as condições de vida de determinadas sociedades e povos. Quero chamar atenção para que essa análise não seja sempre em comparação com o Outro ou com parâmetros internacionais instituídos por bancos e agências financeiras, de fora para dentro. Devemos ter o discernimento de nos analisar de dentro, para fora, sem comparações.

59 DJALÓ, Mamadú tem inclusive uma tese específica sobre o tema: A interferência do Banco Mundial na Guiné-Bissau: A dimensão da educação básica – 1980-2005. Florianópolis, 2009. (Dissertação-UFSC).

170 A utilização do termo país pobre e subdesenvolvido, muitas vezes utilizadas nas teses e entrevistas, pode ser equivocada porque os valores científicos, filosóficos, da cultura africana antes do contato como europeu ainda não é largamente compreendido. Pobres em relação a que? Em comparação a que? Parece-me que qualquer comparação feita com relação aos modelos capitalistas elimina a possibilidade de ver qualquer riqueza no continente africano. Parece-me que sobreposição de conceitos criados na ótica imperialista para a realidade daqueles visto como objetos de exploração podem engessa-los em um quadro “inferior”.

(...) existe homem africano, sociedades que não entram nessas categorias do FMI e do Banco Mundial, que não são pobres, vivem bem, não conhecem o dólar, não vivem com um dólar, não vivem nem nas trevas, nem na pobreza, nada disso, estão lá vivendo com seus escambos, vivendo do que cultivam, não conhecem uma moeda, mas existem, estão lá, vivem mais de 100 anos, não passam fome. Pesquisador Nº 2

Essa situação me faz lembrar uma cena em um documentário que infelizmente não consigo recordar os detalhes técnicos. Um homem africano está sentado na porta de sua casa e é entrevistado por um repórter europeu sobre o interesse de “homens brancos” em comprar suas terras. Ele diz que não pode vender, pois a terra é de todos. E depois discorre sobre algo que não esqueci: Não entendo porque querem dar dinheiro por essa terra. Eu penso que se eles oferecem o dinheiro deles pelo que é nosso, é sinal que esse chão de terra vale muito mais que o dinheiro deles. Então, penso que se cria uma ideia de pobreza nas mídias e ciências sobre a África e as populações negras e africanas em oposição a supervalorização da riqueza daqueles que criaram a ideia de pobreza. Claro, que não se podem ignorar as condições de qualidade de vida e saúde que todos merecem ter. A questão para mim é não criar modelos, pois quando se cria condições para orientar um leão a ser e viver como tubarão os resultados para o futuro das alcateias pode ser desastroso. Outra questão é conhecer a fundo que a ideia de pobreza que se cria está diretamente relacionada a histórica exploração.

Guiné Bissau é um dos países mais abastados quando se trata de recursos naturais, por exemplo.

Nós brasileiros, guineenses, angolanos, moçambicanos, cabo-verdianos, colonizados pelos portugueses, temos uma riqueza apropriada há cinco séculos que não conhecemos. Acredito que sem a colonização nosso progresso poderia ter se processado de maneira muito

171 diversa porque a terra tem riquezas que vale o império das potências imperialistas europeias. Como nos apropriar de nossas riquezas e da consciência de nossa história e valor é um caminho que acredito que devemos fazer através das ciências. Tenho dúvidas, assim como o pesquisador Nº 2 sobre se os conceitos de desenvolvimento e riqueza devem ser utilizados para os países que historicamente sofreram a exploração colonial:

E hoje eu faço um questionamento. Que desenvolvimento estamos a falar? Será que existe desenvolvimento? Nas próprias línguas africanas Ki-Zerbo chama atenção sobre... Segundo ele não existe nenhum termo ou sinônimo de desenvolvimento nas línguas africanas. O que se pode encontrar mais próximo é a prosperidade. Pesquisador Nº 2

Na década de 1980, após as inúmeras conquistas das independências os países do continente africano precisaram redefinir políticas, governos, instituições, educação e a austeridade excessiva na região gerou, segundo Cá, grande desemprego, dentre outros grandes problemas estruturais que sem uma rede adequada de segurança econômica levou a sérios conflitos entre os governos, os militares e a sociedade civil.

A Guiné-Bissau que se viu nascer, hoje está assombrada pela instabilidade política proveniente dos sucessivos golpes de Estado. Os sinais de subdesenvolvimento retardam o país que almeja a melhoria dos índices de desenvolvimento humano (IDH). (MONTEIRO, 2013, p. 258) Uma dívida externa colocou Guiné-Bissau numa situação vulnerável e dependente economicamente, e nesta situação o Estado nacional não assegurou sua sobrevivência sem uma intervenção externa dos programas de reformas estruturais chanceladas por organismos internacionais citadas por Furtado, Ampagatubo, Monteiro, Djaló e Cá.

Em 1985, a gravidade da situação levou o país a adotar o ideário neoliberal com adesão ao FMI e ao Banco Mundial e tentar combater a deterioração econômica. O peso insustentável da dívida levou a adesão ao Programa de Ajustamento Estrutural - PAE, lançado pelo Banco Mundial que obrigavam os países beneficiários a empreenderem reformas macroeconômicas que atendessem aos interesses internacionais e não local. Segundo Furtado, o programa teve na maioria desses países impactos negativos sobre a política econômica, o setor social em geral e da educação em particular: “Todo o dirigismo do Estado guineense foi desmantelado em virtude do PAE (Programa de Ajustamento Estrutural) implantado para

172 renegociar a dívida externa em 1986 em face à crise econômica que inaugurou a década de 80. Entretanto ele não a atenuou”. (CÁ, 2005, p.132)

Parece-me então que a estratégia de desenvolvimento de Guiné-Bissau fundou-se no ajustamento estrutural às políticas internacionais que é, portanto, claramente, uma visão demasiado estreita e exclusivamente economicista do desenvolvimento que não leva em consideração outros fatores extremamente importantes.

No âmbito político, foram adotados os sistemas de regimes ocidentais de governação que não encetaram e terminaram em fracassos. Exemplo é a crise permanente vivida pelos Estados africanos, tanto econômicos como políticas e a sequência de golpes de estado que resultou nas falências das instituições estatais no continente. (DJALÓ, 2014, p.39)

Entre seus principais parceiros internacionais estão o Banco Mundial (BM), Fundo Monetário Internacional (FMI), União Europeia (UE), UNESCO, UNICEF, Organização Mundial do Comércio (OMC), Organização Internacional do Trabalho (OIT), União Econômica Monetária Oeste Africana (UEMOA), União Monetária Oeste Africana (UMOA) e Banco do Desenvolvimento Africano (BAD) entre outros. (DJALÓ, 2014, p.101)

Após a independência o partido PAIGC herdou o país numa situação difícil de construção do Estado. Reconstruir o seu desenvolvimento econômico sobre a base principal do auxilio externo, foi um pseudodesenvolvimento calcado na dependência que pode ser confirmado pelos valores da dívida. A dívida externa do país correspondente a 37,3 milhões de dólares na década de 90, em dez anos quadruplicou.

Além da dívida externa, Djaló enfatiza, dentro de uma perspectiva eurocêntrica, que Portugal deixou de herança a ignorância, o subdesenvolvimento, nenhuma universidade e interesses mascarados e travestidos de proteção e de tutela. Para Cá Guiné-Bissau não recusou de certa forma, a cultura e os valores ocidentais e também nunca adotou de livre vontade a ciência e a tecnologia do ocidente ou do leste. O que em minha análise pode ter gerado grandes ambiguidades no processo de reconstrução nacional.

Continuamos a ter uma guerra interna e uma guerra contra o ocidente que nos impõe muitas políticas econômicas e etc. que não são negociadas, que levam alguns pensamentos, os livros, os filmes, então sempre ficar atento a todas essas armadilhas.

173 O processo democrático guineense vem suscitando inúmeras crises políticas e instabilidades. Contudo, Djaló acredita que é a democracia nos moldes em que está sendo implantada, apesar de fomentar a marginalização social, um regime adequado ao país. Há um debate no continente africano sobre os Estados serem ou não pautados pela democracia como melhor forma de governação. Ao me deparar com a reflexão do angolano Augusto Báfua em matéria sobre Modelo de governação para África60 liguei o alerta sobre a necessidade de se questionar pontos as vezes tão óbvios. Será que existe uma possível inadequação dos sistemas de governo moderno ocidental à realidade africana, assim como a inadequação das teorias, conceitos, respostas que não funcionam, não se enquadram?

Há uma grande preocupação comum de nossos pesquisadores que Guiné-Bissau seja um Estado soberano com soluções para as grandes crises. Contudo sobre como seria esta soberania há discordâncias. Alguns acreditam que o fracasso está na tentativa da implementação de um modelo importado, outros na ideologia incorporada do desenvolvimento econômico (comercial, industrial, financeiro), outros na dificuldade do próprio governo na administração. Os pesquisadores entrevistados e as teses registram uma grande preocupação com os caminhos que o país vem seguindo à ordem dos organismos internacionais como FMI, Banco Mundial. Outra preocupação mencionada por quase a maioria dos pesquisadores é a preocupação com o recorte étnico que as crises políticas vem assumindo, como mostra a fala abaixo:

Guiné Bissau representa uma grande preocupação. Não só aquele amor à pátria, daquele lugar que eu tenho necessidade agora de ir todo ano pra poder reestabelecer os laços, (...) Bem, Guiné Bissau de 1998 para cá se tornou um pais diferente do que a gente almejou, do que a gente projetava. Um país de instabilidade política. Uma instabilidade política que hoje tem recorte étnico, que é muito perigoso, onde os próprios candidatos, os nossos dirigentes demarcam essas fronteiras étnicas e levantam esses signos de pertença étnica como valorativo, como acesso ao poder, acho que isso é perigoso em um país de 30 e poucas etnias. Pesquisadora Nº 4

A pesquisadora Nº 3, assim como os demais entrevistados, relata a evasão de guineenses para outros países em decorrência das crises e instabilidades políticas.

60 Fonte: Club-K Notícias imparciais de Angola - http://www.club-

k.net/index.php?option=com_content&view=article&id=21248:modelo-de-governacao-para-africa-augusto- bafuabafua&catid=17:opiniao&lang=pt&Itemid=1067 Acessado em Set/2016.

174

A minha mãe trabalhava na embaixada de França, a minha tia era diretora da casa de cultura, a que era casada com Amilcar Cabral, e a outra tia trabalhava na embaixada da Suécia, a outra tia é médica também... Depois do golpe de estado todo mundo (saiu do país)... Minha tia que era médica foi para Portugal... a esposa de Amilcar Cabral foi para Cabo Verde... Pesquisadora Nº 3

Os pesquisadores guineenses mostram atenção e preocupação com o país e não dissociam, nas teses e entrevistas, a existência própria a existência do continente africano. Tecem reflexões e críticas ao processo histórico colonial e pós-colonial com aparente necessidade de encontrar respostas para os porquês da insatisfação dos guineenses com o país: denunciam a ausência de projetos de Estado que atendam principalmente as necessidades de educação e trabalho. E procuram dar soluções em suas pesquisas, mesmo que ancoradas na ciência Ocidental, aos problemas do país.