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PARTE III – O ESTUDO DE CASO: REFLETINDO SOBRE GUINÉ E A CIÊNCIA

TERRI TÓRI OS I DENTI TÁRI OS

6.1.3 A língua que divide, a língua que une

Como na maioria dos países africanos Guiné Bissau é um território em que a população negra tem uma grande variedade de línguas originais, de línguas herdadas dos colonizadores e de línguas construídas a partir da relação com eles. A maior parte dos países africanos adotou pelo menos uma das suas línguas europeias como língua oficial, em Guiné Bissau, o português, falada mais pela população urbana com uma escolaridade ocidental significativa (segundo pude observar nas mensagens). Como membro da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) tem o português com obrigatório nas instituições do Estado.

As línguas maternas (nativas ou autóctones) são naturais de uma determinada área e faladas por uma comunidade (as etnias) linguisticamente distinta, e que refletem as especificidades da cultura, atividades, hábitos, crenças, pensamentos e expressões como cantigas e literatura. Em Guiné Bissau, as línguas maternas são:

189 Tabela 8 Línguas maternas africanas em Guiné Bissa

Língua Materna Local onde é falada

Badjara Curva Nordeste do país

Bainouk – Gunyuño Sul do rio Casamança

Balanta-Kentohe No país

Basari Nordeste do país

Bayot Noroeste do país

Biafada Sul Central, Norte de Nalu

Bidyogo Roxa e I lhas Bijagós

Ejamat No país

Kasanga Sobrevive perto de Felupe, a Noroeste

Kobiana No país

Mandinka Centro-Norte, Centro e Nordeste

Mandjak Metade fala o dialeto central, 25% falam dialetos que são inerentemente inteligíveis com

o primeiro

Mankanya No país

Mansoanka No país

Nalu Sudoeste, perto da costa

Papel No país

Pulaar Centro Norte e Nordeste do país

Soninke No país

Fonte: https: / / pt.wikipedia.org/ wiki/ L% C3% ADnguas_da_Guin% C3% A9-Bissau# cite_note-B-4

A situação linguística da Guiné-Bissau parece complexa para os países onde a mesma língua abrange todo o território nacional, como Brasil e Portugal. Com efeito, num território de 36.125 km2, com um pouco mais de um milhão de habitantes, falam-se mais de 10 línguas nativas africanas, além do crioulo português como podemos ver na tabela 8. Em Guiné, como a língua oficial não corresponde a língua nacional, a língua portuguesa é falada, segundo Furtado, apenas por pouco mais de 12% da população que habita principalmente os centros urbanos. Talvez por essa razão, dentre outras, há ma tensão entre os guineenses devido a situação linguística vivida que é apontada pelo outro pesquisador Djaló em razão de cada individuo ter uma língua materna e precisar dominar outra língua comum ( nacional,como apontam alguns) ou oficial nas interações com as instituições sociais do Estado.

Na escola não é que é realmente português, é que o português é obrigatório e qualquer outra língua que não seja uma língua admitida pelo estado, se você falar outra língua que

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não é o francês ou o português, se você falar o crioulo ou sua língua materna você é suspenso. É proibido falar crioulo ou outras línguas nacionais na sala de aula ou no recinto escolar. Então isso de certa maneira vai na contramão daquilo que nossos heróis lutaram na luta pela libertação. Pesquisador Nº 2

O crioulo é a língua comum falada entre a maioria dos guineenses e considerada segunda língua, já que a primeira é a língua materna de cada etnia. Por essa razão, o movimento pela independência advogava que a África precisava unir-se e criar uma frente unificada através, também, da língua, que segundo Djaló, foi mecanismo estratégico de unificação e formação da nação guineense.

A língua crioula se expandiu durante as lutas de libertação e tem sua ressignificação no processo da expressão do nacionalismo. A mensagem política dos revolucionários era transmitida em crioulo; essa sua função emprestou-lhe a aura de língua da unidade nacional, de detentor sociolinguístico do conceito de independência e que, também, constituirá a identidade de guinendade. (DJALÓ, 2014, p. 78)

Semedo aborda três questões necessárias à abordagem do crioulo que foram desenvolvidas em sua tese: a primeira é o fato de o crioulo guineense ser a língua que emergiu do encontro com o português e com grupos guineenses distintos; a segunda é pelo fato do crioulo ser a língua de expressão de inúmeras cantigas de mandjuandadi - as cantigas de mulheres objeto de sua pesquisa; a terceira questão está ligada ao fato de ter se tornado a língua nacional, falada pelos membros das diversas etnias que compõem o mosaico linguístico guineense.

Por essa razão, o crioulo de base portuguesa é também a língua da tradição oral, responsável pela preservação da história, da cultura, das tradições, dos costumes, dos conhecimentos produzidos e da sabedoria dos ancestrais, através da fala. Por meio do crioulo o capital sociocultural dos povos que constituem a nação guineense compartilhou testemunhos transmitidos oralmente de uma geração para outra consolidando a identidade nacional. Contudo, diante da presença do português, cuja civilização escrita se impôs, a civilização oral desenvolveu uma série de ambiguidades subjetivas que veremos no decorrer no texto.

Para Cá, a língua crioula não era hegemônica até a década de 70 e, também por não ser uma língua que contasse com código gráfico, ofereceu dificuldades para o trabalho

191 consistente e eficaz de alfabetização da população guineense. O pesquisador acredita que por ser o português a língua do colonizador, portanto, imposta de fora, a única língua que deve representar a união dos guineenses é o crioulo, uma vez que surgiu justamente da convergência das diversas línguas locais sob a confluência do português.

O crioulo é a única unanimidade nacional. Assim sendo, ele seria a única língua nacional. No entanto, há uma serie de problemas práticos que impedem que o crioulo tome-se uma língua de ensino. A questão prática mais imediata é que ele não tem gramática sistematizada, nem dicionário formalizado. (CÁ, 2005, p. 63)

Cá respaldado pela teoria de Paulo Freire, com quem dialoga, acredita que insistir no ensino do português significa impor à população um esforço inútil e difícil de ser alcançado. Esta imposição seria incoerente no quadro da reconstrução nacional, da criação de uma sociedade nova em que se elimine a exploração de uns por outros, de acordo com os ideais maiores que sempre guiaram o PAIGC.

Paulo Freire propôs que se criasse uma disciplina com caráter de urgência que viabilizaria, em termos concretos, o crioulo como língua nacional e oficial, e o português como língua estrangeira e, como tal, seria ensinado. Contudo, mesmo com o projeto de reconstrução nacional o português foi eleito para ser a língua da formação intelectual dos guineenses no sistema formal, o que para parte dos pesquisadores estabeleceu um corte social no país, privilegiando uma pequena minoria urbana com relação à maioria esmagadora da população.

A língua portuguesa terminaria por estabelecer um corte social no país, privilegiando uma pequena minoria urbana com relação à maioria esmagadora da população. Seria, sem dúvidas, mais fácil àquela minoria com acesso ao português por sua própria posição social, bem se avantajar à maioria na aquisição de certo tipo de conhecimento, bem como na expressão oral e escrita, com que satisfaz um dos requisitos para a sua promoção nos estudos, com inúmeras consequências que podem ser previstas. (CÁ, 2005, p. 63)

Quando acedem à escola os guineenses se veem forçados a abandonar a sua língua materna, as suas tradições para entrarem, de forma institucional, num ambiente totalmente adverso e absurdo onde a comunicação é feita numa língua estranha que nada tem a ver com os seus valores de referência, com a sua identidade: a língua do colonizador, em que está sistematizada toda uma produção de conhecimento ocidental.

192 Para Furtado, o limitado conhecimento da língua do ensino oficial – o português – por parte dos professores; o fraco domínio dos conteúdos programáticos por parte dos mesmos e a carência de suportes didáticos mínimos, na maioria das escolas, torna ainda difícil, senão mesmo impossível em muitos casos, a comunicação no processo ensino-aprendizagem: “A escola acaba por se transformar, na óptica das crianças e de muitos pais, num lugar inseguro e ameaçador do equilíbrio familiar das crianças. Esta situação é responsável pelas elevadas taxas de insucesso escolar, sobretudo nos primeiros quatro anos.” (FURTADO, 2005, p. 670)

O crioulo é a língua franca para as comunicações interétnicas, o que significa para o pesquisador Cá que o seu domínio tende a se ampliar dia pós dia: nas reuniões dos membros do governo, a língua usada em muitas das vezes é sempre o crioulo. Nas repartições publicas, no mercado, nos recintos escolares dos colégios-liceus é o crioulo que se usa.

Cá diz que enquanto líder Amilcar Cabral defendia a instrumentalidade do português porque via que o crioulo ainda não servia para a ciência. Ele deu exemplo dizendo: “como e que se diz aceleração da gravidade na nossa língua? Se a língua é um instrumento para nós, tanto faz usar português, como russo, francês, inglês, desde que nos sirva, como tanto faz usar tratores dos russos, dos ingleses, dos americanos”. Paulo Freire, que esteve na Guiné- Bissau tentando aplicar seu método de alfabetização, era radicalmente contra essa visão instrumental da língua. Eu não acredito no tanto faz, porque faz diferença toda e qualquer escolha. Se o Estado que busca se reconstrução nacional investe em uma ciência linguística por exemplo, para criação de uma gramática e o fortalecimento de sua língua, ele cria uma autonomia de pensamento ao dar a oportunidade de se criar uma intimidade com o processo de fazer ciência a partir de si (individuo e cultura) e não do outro E o português como língua estrangeira daria oportunidade de acesso ao acervo sistematizado do restante do mundo.

Para enfatizar a sua posição em relação ao português, Cabral afirmava que a única coisa que guineenses e cabo-verdianos deveriam agradecer aos portugueses era o fato de terem deixado sua língua e que o português deveria ser estudado por ser um instrumento de comunicação com estruturas já sistematizadas, portanto, mais acessível do que o crioulo e as línguas africanas. Portanto, os guineenses só teriam a ganhar aprendendo-o. Concordo que não se perde ao aprender um novo idioma, pois se amplia as possibilidades de leitura de mundo. Contudo para o cotidiano guineense, o desenvolvimento do crioulo com pesquisas e

193 investimentos poderia dar ao país um salto qualitativo. O uso do português como "língua de ensino" pode ser a maior causa dos problemas que sistema educacional vem sofrendo quanto ao acesso e a permanência do estudante, e quanto a apropriação e uso dos conhecimentos.

6.1.4 Expatriados

Expatriados é um substantivo ou adjetivo utilizado para nomear ou qualificar aquele que por obrigação ou decisão vive por longos períodos de tempo em outro país diferente do país que nasceu; também é comumente utilizado por aquele que se sente sem uma pátria específica, um apátrida, como se colocou o colaborador desta pesquisa na citação abaixo:

É uma pergunta difícil (Qual a sua identidade?). Para um expatriado, como é o meu caso, que já passou 32 anos em Portugal, é muito difícil... Você chega a um ponto que se calhar não tem propriamente uma pátria, sente-se um bocadinho apátrida. Embora... É um sentimento um pouco difuso porque na realidade a medida que nos afastamos, parece que as coisas funcionam dessa maneira, a medida que nos afastamos da nossa terra, da nossa identidade nós nos sentimos arraigados a essa identidade, (...) É essa perspectiva ... Quando falo com as pessoas, quando me perguntam qual é minha ligação com a Guiné, se me sinto guineense, se não me sinto guineense, quanto mais longe nos afastarmos de nossa identidade, das nossas raízes, mais próximos nos sentimos. E, portanto, eu me sinto muito próximo apesar de estar a muitos anos fora, com uma vida intensa fora do país, mas continuo a pensar que sou guineense. Aliás, mantenho minha nacionalidade, podia mudar amanha ou depois de amanha, se eu quisesse. Mas continuo a preservar minha nacionalidade, portanto, sinto-me mais guineense do que era quando lá estava. Pesquisador Nº 1.

Percebo na mensagem a presença de uma ideia de identidade guineense reforçada no distanciamento físico do território. À medida que ele se distancia amplia-se o horizonte visual perceptivo de quem ele é e a partir desse olhar ele ressignifica o ser guineense afirmando-se mais guineenses que quando vivia no país; a longa duração da sua experiência de expatriação, sem previsão de retorno, parece ter o colocado como expectador e torcedor do que acontece no país.

Alias como quase todos meus compatriotas que estão expatriados, não é? Continuamos sempre a ter relações com o país, acompanhar as notícias que vem, muitas vezes não são propriamente boas notícias, mas continuamos sempre com aquela expectativa de que as coisas vão melhorar, mas continuo a manter estreita relação com a GB. Pesquisador Nº 1

194 Não encontrei registros nas teses para esta categoria, exclusiva nas mensagens produzidas a partir da entrevista. Nas questões que levam os pesquisadores a falar acerca das razões de sair de Guiné, razões para não voltar e das motivações para permanecer fora de Guiné temos as seguintes falas:

Eu fiz tudo para morar lá, mas não consegui morar em Guiné. Por várias razões. O país... As pessoas do centro da cidade, colegas de infância, amigos, parentes, todo mundo fora. Não tenho aquela lembrança mais. Estudaram, muitos faleceram, muitos moram em Portugal, França Inglaterra, por conta da política. País não está bem politicamente, economicamente. Pesquisadora Nº 3

A nível político o pais deixa a desejar, não permite a gente sonhar. Eu estudei aqui e sempre tive a vontade do retorno, mas todo ano... Terminei a graduação, não, quero fazer mestrado. Terminei mestrado, quero voltar. Ai tem um golpe de estado. Deixa eu tentar o doutorado para ver. Ei eu faço o projeto, concorro e consigo. Faço o doutorado. Terminei o doutorado, dessa vez eu vou voltar. Fui a Guiné, fui pesquisar sentir o terreno antes de ir de uma vez para ver como é. Ai a expectativa é de uma normalidade, de uma eleição que vai restabelecer, outras pessoas, outras dirigentes, mas a dinâmica da sociedade ainda me estranha muito. Pesquisadora Nº 4

Então é essa Guiné de guerras, de brigas internas, de luta de poder que eu não quero fazer parte. Porque eu acho que eu mereço ter um pouco de paz, se é que é possível, no âmbito que você estudou, voce tem qualificação, você esta trabalhando porque você está ali por merecer. (...) Quando a Guiné melhorar e oferecer melhor condição eu serei muito mais útil em Guiné do que no Brasil. Pesquisadora Nº 4

Há inúmeras tentativas dos pesquisadores de voltar ao país para ficar e realizar os sonhos e projetos profissionais e familiares, contudo, alegam ser a instabilidade política a principal razão de continuarem na condição de expatriado.