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PARTE III – O ESTUDO DE CASO: REFLETINDO SOBRE GUINÉ E A CIÊNCIA

TERRI TÓRI OS I DENTI TÁRI OS

6.1.2 O nativo e o Assimilado: ideia dos povos de segunda categoria

O nativo é considerado aquele nascido em território rural e atrelado a povos originais, tradicionais (que os europeus nomearam indígenas). E a assimilação era o meio que estes indivíduos, considerados incivilizados, podiam juntar-se às fileiras dos civilizados europeus. Os critérios criados pelo sistema colonial para ser considerados civilizados, são apontados por Cá, como os seguintes: 1) falar português; 2) ter rendimento suficiente para sustentar a si e a sua família: 3) ter bom caráter e posse das qualidades necessárias para o exercício dos direitos privados e públicos do cidadão português. Qualquer africano que satisfizesse a estes requisitos podia usufruir os direitos severamente reservados aos portugueses: “O que determinava, contudo, na escolha e/ou seleção formal de assimilação era o nível educacional, a que a população africana estava submetida. Na Guiné, os não civilizados eram, em 1950, 502.457 contra uma população civilizada de 1.498”. (CÁ, 2005, p.34)

185 O nível educacional que classificava o assimilado/civilizado corresponde a parâmetros do português e estes parâmetros quando compartilhamos sem uma cuidadosa crítica mantém intactas as verdades que os portugueses contaram. Não acredito que havia incivilizados nos países africanos. Eles nascem quando nasce a criação de categorias sociais de valor das quais não se quer ficar fora. E no que diz respeito aos civilizados, bem, sabe-se a que são categorias atreladas aos portugueses e que por isto não precisam justificar-se.

(...) no pós-independência, em que há uma tentativa para retomar e regressar a nossas raízes, mas é uma coisa muito vaga. É claro que isso acaba se refletindo um pouco na formação das pessoas e isso que causa uma certa ambiguidade, (...) portanto foi essa ambiguidade que atravessou quase toda a minha geração e se calhar até as gerações anteriores que aprenderam no ensino colonial, para depois mais tarde descobriram que de fato eles não eram portugueses ou se eram portugueses eram portugueses de segunda categoria. Isso tem certo reflexo, de tal maneira que aquelas pessoas que lutaram pela independência de nossos países, numa determinada fase da vida delas partiram para a recusa dessa assimilação colonial, desse processo de assimilação colonial. Pesquisador

Nº 1.

Para o pesquisador Furtado, as ideias ligadas as concepções dos povos nativos os denominavam como aqueles inferiores aos brancos e aos mestiços (assimilados, e/ou crioulos) e como duas realidades incompatíveis que necessitava de institucionais distintos e separados para seus desenvolvimentos individual e social. Mesmo que fontes históricas (epistemologicamente eurocêntricas já que não temos ainda o democratizado acesso a outras) situem a problemática do assimilado/mestiço no contexto da colonização elas não pautam o teor racista antiafricano que se desenvolveu a partir de então e que se manifesta implicitamente no imaginário do próprio guineense acerca de si mesmo como podemos ver na fala abaixo:

(em guiné) A gente não discutia africanidade nem na escola nem em lugar nenhum. O que a gente tinha para discutir era em relação ao mestiço. NÓS TEMOS RACISMOS. Nós não temos só tribalismo, não. A questão lá é tribalismo e racismo. Africanidade não está em pauta. Agora. Por que racismo? Os Mestiços, pessoas de pele clara, tiveram acesso a escola muito antes dos guineenses. São filhos de portugueses, tiveram herança muito boa, educação e... As melhores casas eram dos portugueses, pais deles, empresas. Tiveram acesso ao estudo, os outros não. Só quem tinha aliança com português que tinha acesso a escola. (...) Os melhores empregos hoje na Guine são dos mestiços, os mestiços tem os melhores empregos. Mestiço lá são as pessoas de peles claras. É isso ai, mestiços tem mais poder. Agora como hoje dia é democracia, mestiço não ganha eleição. Por que o negro tem raiva, não vota. Tudo que é de governo... o povo não gosta de mestiço. Mas se

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você for ver a administração, eu prefiro ter um chefe mestiço do que ter um chefe negro. Porque o mestiço é melhor para isso. Ele não trabalha com tribalismo. Aqueles comportamentos tribais, estranhos. Eu acho o mestiço melhor. Pesquisadora Nº 3

Para Furtado (2005) a divisão da população guineense pode ser feita em Três grupos sociais nítidos: O grupo dos indígenas (aborígenes), os grupos de influência árabe, o grupo dos assimilados. O primeiro grupo (que ele enfatiza como aborígenes) está representado por grupos com valores, organização e modo de produção próprio, que podem de tipo horizontal, “comunitária”; e do tipo de organização “tributária”. Uma sociedade tipicamente horizontal em que a autoridade máxima é o chefe da Tabanca. Este grupo seria representado pelos que praticam religiões africanas (designados genericamente por “animistas”, termo usado na antropologia da religião para descrever a relação dos povos indígenas com seus deuses).

Na Guiné eram considerados indígenas todos os indivíduos da raça negra ou dela descendentes que NÃO reunissem as seguintes condições61: 1) Falar, ler e escrever a língua portuguesa; 2) Possuir bens de que se mantenham ou exercer profissão, arte ou ofício de que aufiram rendimento necessário para sustento próprio (alimentação, vestuário e habitação) e, sendo casados para suas famílias; 3) Ter bom comportamento e praticar usos e costumes do comum da sua raça; 4) Haver cumprido os deveres militares que, nos termos das leis sobre recrutamento, lhes tenha cabido.

Os grupos de influência árabe, os Fulas, foram organizações que mais impressionaram os colonialistas, segundo Furtado, porque dominavam uma escrita com caracteres árabes. São grupos de religião muçulmana e as suas sociedades funcionam com base nos princípios do Alcorão. Para Furtado esses grupos representam sociedades organizadas e hierarquizadas com base em princípios familiares, político-religiosos e profissionais. Chamo atenção para o fato de as produções em árabe existirem, mas não serem de fácil acesso em função das traduções não existirem em português.

O terceiro grupo, dos assimilados, foi aquele constituído por funcionários superiores, médios, assalariados, pequenos funcionários, empregados de comércio e pequenos proprietários agrícolas, resulta de influências dos europeus, sobretudo portugueses, e representa uma minoria, localizada fundamentalmente na zona urbana, Bissau. Praticam a

187 religião cristã, utilizam a escrita e a língua portuguesa. Furtado diz que foi no seio desse pequeno grupo que nasceu o movimento para a libertação nacional, organizado e conduzido por Amílcar Cabral.

Este que tive formação educacional, científica, intelectual na Europa. Parece-me que os intelectuais africanos a frente da luta pela independência são identificados pelos próprios guineenses como os mestiços ou assimilados que posteriormente gerou uma serie de conflitos raciais mesmo levando em conta, como aponta Djaló, que os mestiços, os filhos resultantes de relações maritais entre brancos e mulheres africanas, forneceram aos movimentos nacionalistas os seus melhores quadros, e utilizava a sua posição privilegiada para defender sua comunidade, de onde provinha e, para dar expressão aos ideais políticos;

Os poucos guineenses que tinham acesso ao ensino colonial deveriam em princípio ser aculturados, isto é, «transformados» em «portugueses» pelo menos em teoria; visto que em termos práticos, não passavam aparentemente de assimilados, ou seja, de cidadãos de terceira. Como o resultado desta pratica colonial na Guiné, o colonialismo português não conseguiu mais do que produzir homens aculturados, ou seja, nem incorporados inteiramente na cultura portuguesa, nem mesmo em condições de se sentirem culturalmente autênticos guineenses. (AMPAGATUBO, 2008, p. 116)

Para Cá, não havia nativos de raça branca, nenhum colono tinha de provar que era bom caráter para ascender à “cidadania portuguesa” ou passar por critério educacional, já que havia colonos analfabetos. Sendo “analfabeto’ e/ou “semi-alfabetizado”, o colono branco simbolizava a civilização, dai, portanto, o tratamento diferenciado em relação ao guineense em igual situação. A citação a seguir reflete bem este pensamento:

No sentido de reforçar a política de assimilação, o Patriarca de Lisboa, Cardeal Manuel Gonçalves Cerejeira afirmava na mensagem de Natal em 1960: Precisamos de escolas em África, mas de escolas onde indiquemos ao nativo o caminho para a dignidade do homem e a glória da Nação que o protege... Queremos ensinar os nativos a ler, escrever e contar, mas não fazê-los doutores (FERREIRA, 1977: 139 apud CÀ, 2005, p.35).

O discurso proferido acima evidencia a intencionalidade do colonizador português frente às instituições sociais em Guiné Bissau: Igreja para mostrar o caminho da civilidade portuguesa e branca, Escola para mostrar o caminho da civilidade portuguesa e branca, Estado para mostrar o caminho da civilidade portuguesa e branca. E nesse caminho foram se

188 constituindo as relações de poder onde os pressupostos científicos de civilização, estado, etnia, nação, povo favoreceu o sistema de dominação e opressão contra a população negra. Há muitos de nós que internalizaram ideia de que nunca seremos doutores e civilizados.