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PARTE II – CONHECIMENTO, CIÊNCIA E PODER REFLEXÕES SOBRE O OCIDENTE

Capítulo 2 A produção histórica do conhecimento sistematicamente produzido pela Ciência Ocidental

2.5 O poder arbitrário das ciências

A Ciência é arbitraria e esta arbitrariedade pode ser compreendida nos modos como tem operado nas diversas sociedades ocidentais. Abaixo reuni apenas quatro episódios em que podemos ilustrar situações de como opera o poder na hegemonia de currículos, bibliografias, métodos que são definidas pelo tempo histórico (a partir dos gregos) e pelo acervo (eurocêntrico), mas, sobretudo pelo poder de alguma autoridade (acadêmica, intelectual, institucional) como a voz que consagra o que é e o que não é a ciência. Meramente uma questão de autoridade. Atualmente, ainda são os detentores do poder de uma sociedade que normalmente inventam os exemplares e definem um autor ou uma teoria que seja válida para a formação intelectual do país. Por sorte, há sempre notáveis exceções como Clovis Moura ou

95 Lima Barreto, escritor, negro, netos de pessoas escravizadas, que se recusou a jogar o jogo do poder. No que acredito? E que as exceções merecessem ser a regra.

2.5.1 Episódio um – Sua tese não é uma ciência

Em 1950 Frantz Fanon, médico, especialista em psiquiatria, filósofo e intelectual da Martinica, escreve o texto que seria a sua tese de doutorado em psiquiatria, mas a tese foi recusada pela comissão julgadora que exigiu que ele escrevesse outra tese cuja temática deveria ser de problemas mentais e síndromes psiquiátricas e não sobre a relação entre o colonizador (branco) e o colonizado (negro), a psicologia do colonizado, e a desmistificação do complexo de inferioridade. A tese em questão se transformou no livro Peles Negras, Máscaras Brancas, depois que Jean Paul Sartre a validou. Neste livro Fanon discute os impactos do racismo e do colonialismo na psique (de colonizadores e colonizados) e mostra o quanto as alienações coloniais são incorporadas pelos colonizados. Quando li este livro senti minha mente quebrar uma série de correntes a que a as instituições sociais por onde passei criaram e me ajudaram a criar. Um livro que me ajudou a perceber força do racismo e da opressão etnicorracial.

2.5.2 Episódio dois – O que você diz sobre a obra tem mais valor que a obra em si Charles Kiefer, premiado escritor brasileiro, publica em 2012, em um jornal e em seu blog34, uma provocação às normas acadêmicas brasileiras, assim como a mentalidade científica: Por que, no currículo Lattes, um romance que demanda cinco anos de trabalho, tem menos valor do que um ensaio de poucas páginas sobre ele? Se um aluno faz um ensaio de algumas páginas sobre o meu romance e publica suas considerações numa Revista de Qualis A, ele recebe uma pontuação maior que a minha em termos de produção acadêmica. . (KIEFER, 2012, s/n). O escritor reivindica mudanças de valor para produção artística, para fins de pontuação no Lattes, e reintera que esta mudança estaria alicerçada em uma nova posição política. As produções de conhecimento no Brasil estão alicerçadas a um sistema de

96 controle que nos limita afazer mais do mesmo. Crivando a originalidade e a criatividade no modo de construir e descobrir o novo.

2.5.3 Episódio três – A falta de conhecimento faz a gente não gostar das coisas! No filme O Lixo Extraordinário a história sobre o trabalho do artista plástico Vik Muniz com os catadores de material reciclado do Jardim Gramacho – Rio de Janeiro sensibilizou-me por algumas questões sociais, humanas e científicas. Em um lixão ele se aproxima dos trabalhadores explica o seu objetivo ali e estabelece troca de interesses, que a meu ver, estão mais conscientes para ele do que para os trabalhadores do aterro. Quando já estamos envolvidos e sensibilizados com a narrativa das personagens reais, com vidas que destoam dos modelos de prosperidade, de conforto, de beleza, de saúde e qualidade que conhecemos, começo a me sentir incomodada com a exploração da vida de cada um pelo artista em função de projeto cujas obras são milionárias. Escolhi um momento de diálogo entre Muniz, o artista, e Tião Silva (o coletor) em que ele tenta trazer à consciência de Tião para o valor da arte, mas que podemos estender para a relação entre o conhecimento e a consciência, o conhecimento e experiência empírica. A ciência cria parâmetros de valor e esse parâmetro é definido pelo conhecimento instituído pela ciência. No Lixão, os trabalhadores tem um conhecimento empírico sobre a situação. Vejamos a conversa entre os dois:

Vik Muniz - O que tu pensavas sobre arte moderna até você ir à casa do leilão e conhecer?

Tião Silva - Eu achava meio escroto. Tem umas coisas que eu acho que não é arte não

Vik Muniz - Por que tu achas que não é arte? Porque tu não entende? Tião Silva - Porque eu não entendo e porque eu acho que não tem significado nenhum.

Vik Muniz - Mas você acha que tem que entender pra ser arte?

Tião Silva - Eu acho que tem que passar alguma coisa para as pessoas. Por exemplo, depois que você me contou a história do Jean-Michel Basquiat. Eu passei a gostar mais das coisas que ele fazia, eu passei a entender aquelas coisas mais cavernosa, meio acriançada, meio monstro também. Eu comecei a entender e ai eu gostei.

Vik Muniz - Mas ai se você está admitindo que você entendeu um pouco mais, viu um pouco mais, gostou mais, então de repente é falta de conhecimento que faz a gente não gostar das coisas.

Tião Silva - Isso ai sem dúvidas. Você pode não gostar de uma coisa que você nunca experimentou. Por exemplo, você cansava de me contar o que

97 vocês iam fazer e eu não conseguia entender. Eu só entendi quando você me mostrou. Agora eu entendi o que esses caras ai malucos.

Vik Muniz - Maluco é quem compra, né? (risos)

Tião Silva - Não. Mas é por que é bonito, pô. Ai eu comprava também. Eu vou comprar meu quadro de volta. (risos) - (quadro de Tião Silva foi vendido por £28.000)

2.5.4 Episódio quatro – Nobel pode ser racista e machista

Um ganhador do premio Nobel fez antes e depois de prêmio, uma série de declarações racistas e sexistas. Em 2007, James Watson, sai em manchetes em muitos jornais do mundo ocidental com a seguinte declaração: “Africano é menos inteligente”. E descreve pesquisas onde pode constatar sua afirmação. Na época, eu com 26 anos, cursando Pedagogia em uma universidade estadual pensei indignada: Como esse cara pode dizer o que quer e se justificar através da ciência? Hoje eu penso que uma premiação como essa, de empoderamento a uma classe científica, não poderia premiar alguém com esse discurso e caso suas declarações viessem à tona depois do prêmio, o premio deveria ser cancelado. Não se trata apenas de uma opinião sobre negros e mulheres. Trata-se de uma justificativa de poder sobre negros e mulheres em um mundo onde há muitas violações de direito e liberdade a eles.