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PARTE III – O ESTUDO DE CASO: REFLETINDO SOBRE GUINÉ E A CIÊNCIA

FORMAÇÃO 6.2.1 Educação Tradicional Guineense

6.2.2 Sistema Educativo Colonial - Escola para assimilados, não para Doutores 6.2.3 A Herança de um modelo Ocidental como referência

195 6.2.4 Educação Militante / Escolas Pilotos

6.2.5 O Ensino Superior fora de Guiné Bissau

Esta categoria reúne o conteúdo manifestado acerca da formação educacional básica, acadêmica e profissional e cientifica dos guineenses entrevistados, mas, sobretudo, reúne o pensamento manifestado sobre aspectos históricos, político e social da educação no país. Especificamente Djaló62, Cá63 e Furtado64 têm teses em que discutem os problemas referentes ao conjunto de dispositivos que sustentam o sistema educacional e os processos de educação pelos quais passam e se formam o sujeito guineense, pontuando em perspectivas diferentes o papel da educação escolar e acadêmica na formação da sociedade guineense. Os pesquisadores acreditam que o comprometimento do Estado com a transformação social deve estar vinculado as instituições e devem promover o pensamento mais elaborado (com base no acumulo do acervo eurocêntrico) para o desenvolvimento cognitivo do indivíduo, mas principalmente coletiva, social e política.

Se a educação e a formação são na actualidade ferramentas indispensáveis para a sobrevivência e desenvolvimento das nações, torna- se então urgente reunir forças e competências para definir e fazer funcionar uma administração compatível que contribua eficazmente para o pleno alcance dos objectivos educacionais. (FURTADO, 2005, p. 4)

6.2.1 Educação Tradicional Guineense

Compreendo que a tradição de determinada cultura/sociedade/população reúne conhecimentos que se adquirem através da observação e da imitação de posturas, de atitudes, de regras, hábitos, crenças, valores, ritos, mitos, e etc. É na experiência que a tradição dá sentido e confere legitimidade aos discursos e às ações espontâneas da vida quotidiana das pessoas e da sua comunidade de pertencimento. Um conceito elaborado no desenvolvimento deste trabalho acerca da educação tradicional africana que objetiva em cada tradição uma formação específica da criança, dos jovens, do homem, da mulher, dos idosos de sua comunidade, assim como de todos da comunidade.

62 Relações Sul-Sul: A Cooperação Brasil – Guiné-Bissau Na Educação Superior No Período De 1990 – 2011. 63 Perspectiva Histórica Da Organização Do Sistema Educacional Da Guiné Bissau.

196 Nas mensagens analisadas as menções a educação tradicional não é algo descritivo e explícito com objetividade. Está diluída nas críticas ao sistema colonial ou na ênfase aos valores adquiridos nas relações familiares ou comunitárias:

Eu aprendi muito mais com a minha família que na escola. Na escola se fala português, em casa a gente fala criolo. Na escola você ia lá aprender a ler, a escrever e saber matemática e formação militante. Agora as atividades a gente fazia em casa, porque em casa tinha os políticos, meu irmão era político. Mais em casa eu aprendi que na escola. Na escola eu só aprendi ler e escrever. Pesquisadora Nº 3

Nesse sentido eu acho que muitas pessoas não entendem as sociedades africanas quando eles criam o estigma a partir do que o ocidente escreve. Eu percebo muito isso na academia. Tudo que minha avó me deu em termos da socialização primeira de uma educação informal eu vi isso escrito na escola, no livro, então eu falo minha avó também é uma intelectual apesar de não saber ler. Nós temos uma outra concepção do que é ser intelectual. Pesquisadora Nº 4

Segundo Cá, não havia quem ensinassem na sociedade africana tradicional um ensino formalizado como na sociedade ocidental, nem havia um lugar privilegiado para a transmissão do conhecimento. A forma de educar baseava-se no exemplo do comportamento e do trabalho de cada aprendiz. Cada adulto era, de certa forma um professor. A educação não se separava em campo e especialização de atividades humanas. Ninguém se educava apenas por um determinado período, aprendia-se com a vida e com os conhecimentos ao longo do tempo. (CÁ, 2005, p. 25)

Essa educação espontânea possibilitava uma aprendizagem direta da realidade social, através de dinâmicas em que a comunidade aparece preocupada e envolvida. Essa dinâmica eu chamaria de ritos, como aprendi com Sobonfu Somé, em O Espírito da Intimidade - Ensinamentos Ancestrais Africanos, quando ela descreve como acontecem os processos dentro das tradições. As comunidades africanas no geral tem uma dinâmica social primada por ritos de conhecimento (filósofos, científicos, religiosos, psicológicos, sociais) que demarcam fases,etapas e processos no desenvolvimento da pessoa e de sua atividade dentro da comunidade.

Antes da dominação colonial, na sociedade guineense tradicional não havia instituição escolar tal como existe hoje. Porém, a educação consistia em aquisição de certos

197 conhecimentos e normas de comportamento como em qualquer sociedade. Essa dinâmica é citada na tese do pesquisador Lourenço Cá:

(I) As pessoas aprendiam pela participação na vida do grupo familiar e da comunidade integrando-se nos trabalhos de campos, escutando histórias dos velhos e assistindo às cerimônias conjuntas. As crianças e os jovens adquiriam paulatinamente, ao longo dos anos, os conhecimentos necessários à sua integração na comunidade; aprendiam as habilidades de produção e como sobreviver, adotando as regras de comportamento e os valores imprescindíveis à vida.

(II) Esta é uma educação informal. Paralelamente a esta, havia uma educação não-formal, em que, durante certos períodos, os aprendizes tinham que se especializar em alguma profissão, como por exemplo: caça, pesca, ferraria, tecelagem, extração de vinho de palmeira e/ou óleo de dendê, confecção de arado, construção de canoas, tocador de instrumentos nos funerais (bombolom), construção de instrumentos musicais, musicologia, contador de histórias entre outras.

(CÁ, 2005, p. 01)

No primeiro ponto o pesquisador descreve a forma como compreende que aconteceu a educação tradicional em Guiné, já na sequencia utiliza a categorização de Afonso (1989) e Simson (2001) – em grifo - para lançar luz na compreensão dos processos educacionais em Guiné Bissau. Contudo, acredito que são categorizações impróprias se considerarmos que as terminologias que ele cita são de realidades ocidentais que coloca na informalidade (aquilo com ausência de formalidade ou ausência de cerimônia) as dinâmicas de outra realidade distinta. Havia um modelo próprio para os processos educacionais africanos que vieram a ser sobrepostos pelos modelos portugueses e, sobretudo, cristãos. E nesta medida, criou-se, acredito, a ideia que é apenas com o domínio da formalidade do ensino português que se adquire o status de ser formal, educado, erudito, superior.

Na verdade desde sempre, desde sempre. Alias quando lembro-me da tradição do nosso país quando você levava muitos livros no braço as pessoas diziam: olha o estudante de Coimbra! Nós crescemos naquele ambiente de Coimbra e curiosamente acabou por me formar na universidade de Coimbra. Portanto penso que desde sempre pensei em fazer um curso superior. Pesquisador Nº 1.

As mulheres são as referências! Então eu, por exemplo, fui educada por uma mulher. (...) Muitas pessoas me questionam: menina você pegou atrás da escola não teve filho não teve marido. Só que a educação que eu fui dada é que a mulher precisa ser independente, o

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primeiro marido da mulher é a sua escola. Então eu incorporei isso e levei isso como lema para minha vida então eu fui conduzindo e fui estudando. Fui ganhando minha independência. Pesquisadora Nº 4

6.2.2 Sistema Educativo Colonial - Escola para assimilados, não para doutores A educação é enfatizada por quase todos os pesquisadores consultados como o caminho que capacitará os cidadãos e a sociedade guineense em geral para o desenvolvimento do país. E nesse caminho as visões sobre a educação colonial, como aquela que sistematizou os processos educacionais formais é percebida como um sistema educativo tóxico à realidade da Guiné além de não responder às necessidades de desenvolvimento socioeconômico. Outro ponto que emerge nas teses é sobre a escola colonial ser altamente seletiva, negando o acesso à formação (portuguesa) a maioria da população. Cá acredita que está neste fato uma das razões do subdesenvolvimento, da ignorância e do analfabetismo das grandes massas da população guineenses. O colonialismo foi o grande fator externo de ruptura e de deslocamento do equilíbrio da sociedade tradicional: “Com a introdução do sistema de ensino formalizado pelo colonialista português, em que as escolas funcionavam fechadas em si mesmas, longe da vida comunitária e social das populações indígenas”. (CÁ, 2005, p.28)

A educação colonial com caráter marcadamente cristão65 religiosa foi propagada e justificada como uma contribuição portuguesa para o progresso da humanidade guineense. Foi política de Portugal encaminhar jovens guineenses à metrópole para formação “educacional”: cristã e em língua portuguesa e latim. Em virtude dessa obrigatoriedade, havia sacerdotes negros em pequenos números que tinham sido educados em Lisboa. Cá diz que havia padres que nem cumpriam suas funções missionárias, davam-se mais ao tráfico.

Normalmente temos uma vivência escolar muito complexa (...) Naquela altura as escolas particulares eram muito violentas. Mesmo o ensino público, as pessoas levavam

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palmatória se não soubesse a lição. E essa vivência das palmatórias, o método do padre J, (risos), naturalmente que aquilo tem algumas implicações psicológicas nos estudantes, que é engraçado..., porque acabamos por incutir em nossa cabeça que de fato se não nos esforçarmos minimamente temos que levar umas palmatoadas e portanto, para evitar isso era preciso estudar muito. Pesquisador 1

Portugal registrava que a população africana nas colônias assimilava de boa vontade a civilização portuguesa para fim de mascarar as resistências que havia contra os interesses econômicos e políticos. Cá afirma que Portugal nunca permitiu que a educação fosse além de um nível mínimo muito baixo. E para apenas uma pequeníssima elite era dada a chance de ser “educada” com uma única finalidade: apoiar a hegemonia portuguesa e servir de intermediária entre a administração colonial e a população autóctone. No ensino colonial a Igreja Católica desempenhou papel fundamental no projeto de “civilização” dos guineenses. Para o Estado português, civilização significava ser culturalmente português e religiosamente católico- apostólico- romano. A Igreja não só ajudou na implantação da política educacional colonial, como também participou na legitimação do colonialismo português, sancionando e santificando a missão civilizadora e a função histórica de Portugal.

O regime colonial português havia-se associado novamente à Igreja Católica no seu dever colonizador para dar a educação às populações coloniais dentro dos moldes particulares da cultura portuguesa. Era, então, necessário um mínimo de europeização para impor uma ordem social. (CÁ, 2005, p.33)

Chama atenção estas colocações de Cá quando vemos o quadro percentual de adesão religiosa no país. Pois a maioria guineense é Mulçumana e não Católica. Parece, pelo que leio nas pesquisas, que o projeto das missões católicas foram efetivadas mais no plano educacional (e cultural?) e não no religioso.

Durante os vários séculos de presença e dominação colonial portuguesa, a grande maioria dos guineenses, os indígenas, encontrava-se fora do sistema educativo (e sem direito a ele), alguns entregues à educação missionária, e, apenas uma minoria, os civilizados, tinha o privilégio de aceder a uma instrução primária elementar. (FURTADO, 2005, p. 247)