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PARTE II – CONHECIMENTO, CIÊNCIA E PODER REFLEXÕES SOBRE O OCIDENTE

Capítulo 4 A partilha da terra, os movimentos de resistências negras e o legado científico e intelectual africano dos séculos XIX e

4.1 Os movimentos de resistências negras e o legado científico e intelectual africano dos séculos XIX e

Primeiro foi o tráfico que destruiu as instituições africanas e impediu seu crescimento e desenvolvimento, depois foi a partilha do continente entre os europeus que usurpou o poder e a soberania dos estados africanos. E em meio aos processos de violência aplicados por 500 anos ao povo africano e da diáspora, de caráter intencional, movimentos de resistência também existiram. E dentre estes movimentos, me interessa os que se destacaram pelo caráter científico e intelectual. Antes da partilha do continente africano, na segunda metade do século XIX, surge na África Sul-Saariana, segundo Devés-Valdés (2008), a intelectualidade que vai dar origem ao pensamento africano ao elaborar e sistematizar axiomas em termos de “África” em formas de comunicação modernas (europeias) constituindo-se como intelectualidade profissional. O pesquisador utiliza o termo intelectualidade periférica para referenciar o pensamento africano, americano, asiático no contexto da universidade europeia e norte- americana, e por considerar que essa terminologia reforça estigmas, não utilizarei. Contudo considero relevante mostrar o quadro onde ele sistematiza estes pensamentos:

127 Tabela 5 Pensamentos considerados periféricos

Fonte: Devés- Valdés ( 20 08)

Essa intelectualidade e esse pensamento são gerados principalmente na costa ocidental do continente com o franco-senegalês Pierre-David Boilat46, o nigeriano Samuel Ajayi Crowther47 (1806-1891), os leonêses James Johnson48 (1839/40-1917) e James Africanus Horton49. Mas também por figuras como o norte-americano Alexander Crummell50 (1819 - 1898), a sul-africana Olive Schreiner, e os sul-africanos Tiyo Soga (1829 –1871), Walter Rubusana (1858-1936), John T. Jabavu (1859 –1921), Stephanus Jacobus Du Toit (1847 – 1911). Este grupo de intelectuais africanos, pouco ou quase nunca referenciados nos centros acadêmicos dos países colonizados – estiveram ligados às instituições universitárias e/ou da igreja na Europa e/ou Estados Unidos e assumiram em seus discursos a problemática de ser como os Outros (os colonizadores) ou ser eles mesmos no contexto da existência do sistema

46 Wikipédia: David Boilat (1814-1901) é considerado um dos primeiros escritores senegaleses que poderia escrever sobre os hábitos e costumes de seu país. Por sua dupla cultura e conhecimento de Wolof e Serere, ele vai fazer um estudo sobre a história do Senegal através de seu livro ilustrado com seus próprios desenhos: Esquisses Sénégalaises.

47 Wikipédia: Foi o primeiro bispo negro da Igreja Anglicana e linguista nigeriano, o mais conhecido religioso cristão africano do século XIX. A ele se credita o primeiro livro africano sobre linguística, em 1843.

48 Clérigo nascido em Serra Leoa, trabalhou tanto em seu país como na Nigéria. Alcançou altos cargos na Igreja Anglicana. Devés-Valdés (2008).

49 Wikipédia: Africanus Horton (1835-1883), também conhecido como James Beale, era nacionalista escritor Africano e um médico cirurgião cientista , e soldado estimado no exército britânico que trabalhou para a independência Africano de um século antes que ocorresse. Além disso, ele escreveu uma série de livros e ensaios.

50 Wikipédia: Alexander Crummell foi um padre Episcopal nos Estados Unidos Abolicionista e um nacionalista acadêmico. Foi para a Inglaterra no final dos anos 1840 para arrecadar dinheiro para sua igreja e seu trabalho contra a escravidão americana. Estudou na Universidade de Cambridge , onde desenvolvido conceitos de pan-africanismo. Em 1853 Crummell mudou-se para a Libéria , onde trabalhou para converter os africanos nativos ao cristianismo e educá-los no modelo ocidental.

128 mundo. O traço mais característico do pensamento Sul-Saariano desse período Devés-Valdés (2008) atribui ao fato de os principais pensadores africanos conhecidos no Ocidente serem os clérigos.

As primeiras redes de intelectuais africanas são chamadas pelo pesquisador chileno Devés-Valdés (2008) de redes continentais “Eurofalantes”, que estabeleceram mais contato com as metrópoles do que com as outras regiões da África. Sendo a rede anglófona oeste- africana a mais producente pela facilidade em manter relação com os países de língua inglesa, especialmente Estados Unidos e Caribe. Essa intelectualidade negra presentes nas redes coexistiu e, em algumas ocasiões, se articulou com uma intelectualidade branca ligada às Igrejas como a maioria dos nomes citados acima. A rede lusófona, por sua vez, funciona principalmente entre Angola e Portugal, ainda que existissem algumas conexões com Cabo Verde/Guiné e Moçambique. Acredito que mesmo que válidas as referencias são limitadas, por que existiram movimentos científicos em línguas africanas e/ou árabes.

Muitos temas como exploração, geografia, ciência, construções ideológicas provenientes da Europa e dos Estados Unidos foram explorados e discutidos por estes intelectuais, contudo a Civilização parece ter sido categoria-chave e preocupação nas tarefas da intelectualidade africana deste período, pois era forte a associação do que é civilizado e o que não ligado a ideia do cristianismo e da e da ciência e tecnologia ocidental.

O principal tema, ou o mais compartilhado pelos pensadores africanos da segunda metade do século XIX, é o da civilização. Sem dúvida, existem matizes, mas há um grande consenso entre os autores de que a civilização vem de fora da África Sul-Saariana, em especial do mundo cristão, em certos casos do mundo islâmico, e isso mesmo que alguns valorizem a trajetória cultural da África. (...)

O tema “civilização” faz com que alguns africanos falem como ocidentais e inclusive como britânicos, fazendo-se parte do cristianismo e até da necessidade de expandi-lo na África. Falam como participantes do centro e para um público do centro, não tendo como destinatários os próprios africanos. É o caso, por exemplo, de Crowther e de Horton. Não é o caso de outros como Boilat e Blyden, cujo destinatário é o leitor africano ou na África. (DEVÉS-VALDÉS, 2008, p.24)

Acredito que é consenso para os estudiosos do pensamento africano que problema da civilização ausente nos africanos tem a ver principalmente com os dispositivos de poder criados pelos europeus ao não reconhecer e não identificar científicamente a civilização

129 existente em outros moldes. Mas, além destes, esta ideia foi também assumida por cristãos africanos e afro-americanos “formados” nas metrópoles, aponta Devés-Valdés (2008), cujos argumentos institucionais desqualificam o africano e giravam em torno da incapacidade intelectual, da desorganização cultural, do atraso ou incompletude de suas naturezas humanas. Acreditava-se que o negro não possuía potencialidades desenvolvidas e, como era impossível civilizarem a si mesmo, propunha-se que deveriam continuar trazendo a civilização da Europa. Uma civilização com o propósito de ocidentalizar-se para se tornar semelhante ao que tem mais reconhecido valor.

Uma das tarefas mais importantes empreendidas pelos intelectuais africanos foi sua reivindicação a respeito destas desqualificações sofridas em decorrência de todo um aparato de poder utilizado pelos europeus. Os autores africanos do século XIX tomaram como matriz temas como a personalidade africana, a busca da civilização, da compreensão histórica dos povos originários, a grandeza da África ancestral, dentre outros que foram se desenvolvendo e se transformaram em tópicos recorrentes do pensamento africano no século XX.

Muitos outros povos e culturas foram “racistas” diante do outro, mas o que fez o Ocidente mais eficaz foi dar por meio de suas instituições religiosas e científicas maior contundência e caráter de verdade. No continente africano Sul-Saariano o que se estabelecia como educação seguia os padrões europeus e cristãos (às vezes árabe) e esta formação produziu um sentimento de alienação e desapreço por si mesmo e pela própria cultura. Blyden diz, segundo Devés-Valdés (2008) que essa educação com critérios “copiosos e imitadores”, era incompatível e destruidora do respeito do negro por si mesmo e por isso deveriam evitar a cópia do modo de ser dos europeus e achar um modelo próprio que expressasse uma identidade própria.

É importante, inserir nesse contexto a presença do intelectual do Caribe, que depois se nacionalizou liberiano, Edward Wilmot Blyden. Mais enfatizado por intelectuais de língua inglesa como a maior figura do pensamento Sul-Saariano do século XIX até o surgimento de K. Nkrumah, e mais desconhecido por intelectuais não-anglófonos. Apesar de Blyden ser considerado como um intelectual do século XX responsável pelo surgimento do Pan- africanismo, Devés-Valdés (2008) o situa como força do pensamento africano do século XIX.

130 Em 1896, o educador, escritor, diplomata e político Blyden escreveu que, ao estudar na Europa, o africano aliena-se de si mesmo e de seus compatriotas quando aceita a ideia de África como “bárbara e selvagem” e se submete a subversão da sua verdadeira personalidade. Devés-Valdés (2008) diz que foram escritos por Boilat e Blyden dois importantes textos que propõe a criação de colégios nos estados africanos. O primeiro baseia sua ideia na educação associada à regeneração, à civilização e à superação do período do tráfico. Já Blyden, com um discurso mais elaborado, situa seu discurso em torno de objetivos e métodos de uma Educação africana para os africanos em conexão com a personalidade africana, a recuperação da cultura, a busca de instituições próprias que convergissem ou fossem parte de um conjunto de reflexões no qual estivesse inserido o tema da educação.

Blyden argumenta: “Sua primeira dívida é serem vocês mesmos”, admitir que são africanos e não que são europeus, para contribuir com o completo desenvolvimento e bem- estar da humanidade. Ele desenvolve essa ideia assinalando que, “nos assentamentos europeus da costa, eram visíveis os melancólicos efeitos do fatal contágio de uma mímica européia espúria”. E.W. Blyden (1892) apud Nascimento (2008, p.165) esboçou algumas de suas preocupações com a educação:

Em todos os países de fala inglesa, a mente da criança negra inteligente se revolta contra as descrições do negro encontradas nos textos primários das escolas - geografias, viagens e histórias. […] Tendo abraçado, ou ao menos assentido, essas falsidades sobre a si mesma, ela conclui que sua única esperança de se elevar na escola da humanidade respeitável é esforçar-se na direção de tudo aquilo que é distinto de si e mais estranho às suas preferências peculiares.

As ideias sobre a criação de instituições africanas como solução para superar o quadro imposto aos negros da África e da diáspora foi forte nos discursos dos intelectuais africanos a partir de 1870 em diante. E Blyden levanta a necessidade de uma escola organizada com professores africanos, não conforme os padrões europeus, mas sim de acordo com a natureza do povo e do país para juventude africana. O colégio seria orientado não apenas para fins intelectuais, mas também para propósitos sociais, obrigações religiosas, objetivos patrióticos e desenvolvimento racial (civilização).

A melhor época do pensamento africano tem sido evidenciada por diversos intelectuais e é para Devés-Valdés (2008) em termos de criatividade, de grandes figuras,

131 de impacto ou projeção para além da região, a época de meados do século XX quando o pan- africanismo, do movimento negritude e do “socialismo africano” representam o amadurecimento de ideias que levam a ações que modificam as dinâmicas no contexto africano.

Não encontro concordância sobre a origem do pan-africanismo. Para Almeida (2007) a fundamentação teórica do pan-africanismo é iniciada por Alexander Crummell que manifesta em seus textos a ideia da existência de um povo negro que por sua vez constituía uma unidade que teria no continente africano o seu lugar. Ele defendia, baseando-se na ideia de civilização presente no século XIX, a adoção da língua inglesa como a língua a ser empregada na construção de um estado negro africano. Para Knight, Talib e Curtin (2010) Henry Sylvester Williams podem ter iniciado o pan-africanismo com a criação da Pan-African Association e por ter sido ele a utilizar o termo pela primeira vez na por ocasião do primeiro congresso pan-africanista em Londres, em 1900.

Em 1897, Henry Sylvester Williams, jurista nascido em Trinidad e habitante de Londres, fundou a Pan-African Association, cujos membros posteriormente teriam entre si: George Padmore, Kwame Nkrumah e C. L. R. James. No curso dos anos 1920, Marcus Garvey fundou a Universal Negro Improvement Association cujo objetivo consistia em promover a descolonização da África e unir os africanos de todo o mundo. A organização de Garvey possuía antenas no Canadá, nos Estados Unidos da América do Norte, nas Antilhas, na América Latina e na África. Quando esta associação pereceu, em 1927, a África, muito particularmente em referencia a questão etíope, já começava a desempenhar um papel de primeira grandeza nas questões mundiais. (KNIGHT, TALIB e CURTIN, 2010, p. 904)

Frente às discordâncias sobre a origem do movimento pan-africanista, veremos abaixo alguns aspectos da força do pensamento daqueles que colocaram a África como sujeito na história e nas ciências.