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CAPÍTULO III Mediação Vítima-Agressor e os Interesses envolvidos

3.2 O consenso das partes

A mediação busca o fim do conflito, mas não por meio de um mero acordo de vontades, que seja por meio de um acordo que satisfaça as pretensões de ambos os mediados. É neste sentido que se alcança o consenso, que não se confunde com acordo porque, conforme adverte CRUZ186, ainda que este não seja alcançado durante o procedimento, pode-se chegar a um consenso entre as partes. Diz-se, por isso, que tem um objetivo mais ambicioso do que os outros métodos alternativos, especialmente dentre os meios consensuais.

Em consonância com o princípio da voluntariedade, expressamente adotado no ordenamento jurídico português (artigo 4º, da LM), entendemos que o processo de mediação só pode ser iniciado se houver consenso das partes a respeito. Ou seja, vítima e ofensor devem estar de acordo em procurar resolver o conflito por meio da mediação. Aliás, esta interpretação é conforme ao artigo 13º, da mesma lei, que considera iniciado o procedimento da mediação nos sistemas públicos na data “em que todas as partes tenham concordado com a realização da mediação”.

Em que pese a previsão legal de iniciativas como a do juiz e do Ministério Público vise a fomentar a utilização da mediação, entendemos que especialmente no âmbito penal esta

185 Vê-se que no país tem-se iniciado a prática dos círculos de sentença, que, assim como a mediação, são um importante instrumento de justiça

restaurativa. Entretanto, tendo em vista a prática já suficientemente consagrada da mediação na Europa e diante dos resultados positivos, acreditamos ser valorável a introdução também desta na prática brasileira, inclusive por viabilizar uma maior aplicação de processos restaurativos, já que envolve apenas vítima e agressor, e apenas eventualmente seus familiares ou outros prejudicados.

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medida merece atenção, devendo ser aplicada somente com o consentimento dos envolvidos, de nenhuma forma podendo considerar-se a realização obrigatória da mediação. De outro modo, o processo conduziria a uma vitimização secundária, por não considerar a vontade da vítima, bem como não alcançaria a finalidade de reeducação e responsabilização do menor, por fazê-lo participar da mediação sem sua convicção íntima.

Para além da necessidade de não estigmatização do menor, vê-se que há outros valores que o processo tutelar persegue, em prol do próprio superior interesse do jovem, que necessita de auxílio para conduzir-se em sociedade de forma mais construtiva e colaborativa. Este objetivo só será alcançado se o mesmo encontrar espaço de acolhimento e entendimento, para então sentir-se preparado e motivado para agir em concordância com os valores socialmente protegidos.

A Regra 11.3 das Regras de Beijing já exigia o consentimento da criança, ou dos seus pais ou tutor, antes do encaminhamento do menor para serviços comunitários ou outros serviços competentes. O consentimento da pessoa afetada pela medida extrajudicial é naturalmente essencial para o sucesso desta. A ideia subjacente à Regra é a de que é necessário minimizar as possibilidades de coação ou intimidação no recurso a meios extrajudiciais.

A Recomendação nº R (87) 20, por sua vez, prevê acerca da mediação em processos de menores que sejam tomadas as medidas necessárias para garantir que o consentimento do menor nas medidas em que a diversão seja condicional e, se necessário, a cooperação da sua família sejam assegurados. Prevê ainda que seja dada atenção apropriada aos direitos e interesses do menor tanto quanto aos da vítima.

Sendo a mediação aplicada no contexto da lei tutelar educativa, os fins do processo poderiam justificar a desconsideração do papel da vítima e das suas necessidades e interesses? Não nos parece que assim seja. A mediação é o meio ideal para que ambos os interesses, do infrator e da vítima, sejam atendidos. Além do mais, as normas internacionais enfatizam os direitos do menor no procedimento da mediação, conforme acima elencado, mas consideram igualmente os direitos da vítima, conforme se verifica, p. ex., na Decisão-Quadro do Conselho, nº 2001/220/JAI, relativa ao estatuto da vítima em processo penal, que determina que cada Estado-Membro tenha em conta quaisquer acordos entre a vítima e o autor da infração, obtidos através da mediação em processos penais.

Importante destacar também a Declaração relativa ao Estatuto da Vítima no Processo de Mediação, aprovado em Maio de 2004, pelo European Forum for Victim Services, uma das organizações europeias de colaboração em matéria de mediação penal e justiça restaurativa,

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que reconhece os méritos da mediação relativamente às vítimas, mas também algumas questões que merecem atenção. Sendo assim, indica alguns princípios a serem considerados na mediação, p. ex., que os interesses da vítima sejam plenamente considerados, que o recurso à mediação dependa do consentimento livre e informado de ambas as partes, e que o infrator assuma a responsabilidade pelo seu ato e reconheça as consequências danosas à vítima187. Elenca ainda os direitos fundamentais das vítimas no processo de mediação, como o reconhecimento de seu estatuto enquanto vítima e proteção da sua posição.

Não é apenas no processo penal clássico que o papel da vítima é negligenciado. Especialmente no processo relativo à delinquência juvenil descuida-se da necessidade de recuperar as necessidades da vítima, cujo papel nesse âmbito é particularmente sacrificado, porque os projetos de mediação são frequentemente concebidos e postos em prática a partir da problemática do autor188.

Do ponto de vista da vítima, esta pode muitas vezes sentir-se intimidada a participar da mediação, ou o encontro com o ofensor pode acrescer-lhe emoções negativas, ao invés da pretensa transformação positiva que o processo restaurativo visa alcançar. Portanto, é essencial sua participação livre e consentida, da mesma forma que ao menor deve ser-lhe assegurada.

O impacto da decisão da vítima sobre o infrator também não deve ser um meio de neglicenciar o consenso da vítima, afinal devem ser previstos outros meios, como p. ex. a prestação de trabalho a favor da comunidade, que não envolvam a vítima e que, do mesmo modo, possam evitar a estigmatização do menor infrator ou que atendam às finalidades desejadas pelo processo.

As autoridades judiciárias, ou mesmo outros serviços juvenis competentes para remeter o caso aos serviços de mediação, podem desempenhar, por sua vez, importante papel no sentido de informar os envolvidos sobre as possíveis vantagens da mediação, sem contudo assumir o poder de decisão ou implícita coação para que o procedimento seja realizado. Essa é a forma de realmente dar voz às necessidades e interesses da vítima e do ofensor, fazendo-os protagonistas da resolução do problema do início ao fim, facilitando uma nova perspetiva do conflito e do papel dos envolvidos em relação à sua transformação.

Há hipóteses legais em que é promovida uma sessão de pré-mediação antes de obtido o consentimento das partes, a exemplo da mediação nos Julgados de Paz em Portugal, exatamente

187 Para maior aprofundamento vide FREDERICO MOYANO MARQUES e JOÃO LÁZARO, ob. cit., pp. 28-29. 188 Vide IVO AERTSEN e TONY PETERS, ob. cit., p. 43.

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com o fim de obter a anuência para o início efetivo da mediação. Entretanto, as partes podem recusar a sessão de pré-mediação189, pelo que a voluntariedade estaria salvaguardada. Também esta solução não nos parece adequada no âmbito da justiça penal e da justiça tutelar de menores, pelas particulares características dos conflitos criminais e por entender ser o consenso das partes o meio que melhor se adequa à voluntariedade, adesão e responsabilização das mesmas na condução da solução do conflito.

No âmbito penal, em Portugal, há previsão da iniciativa do Ministério Público, oficialmente ou por requerimento das partes, em designar um mediador e remeter-lhe as informações que entender necessárias sobre as partes e o objeto do processo. Entretanto, em que pese a iniciativa do Ministério Público, a lei de mediação penal prevê expressamente que o processo de mediação só se inicia se os envolvidos consentirem livre e esclarecidamente em participar, após serem contatados pelo mediador designado para o caso (art. 3º da LMP).

Entendemos que esse procedimento é o mais adequado, pois evita que agressor e vítima se confrontem pessoalmente sem que tenham espontaneamente desejado encontrarem-se. Enfim, havendo o consenso em iniciar-se a mediação, mesmo para a realização da pré- mediação, maior será a adesão e disposição dos envolvidos de abrirem-se a um diálogo mais construtivo.

Ainda no âmbito da mediação penal poder-se-ia questionar a existência de uma obrigatoriedade “velada”, afinal as partes podem se sentir pressionadas a aceitar a realização da mediação, já que houve por parte do Ministério Público a intenção de que a mesma fosse iniciada. Mas esse aspeto pode ser evitado se forem devidamente esclarecidas sobre o procedimento e sobre sua total liberdade em consentir dele participar ou não, não lhe sendo infligida qualquer penalidade, ou sequer juízo de valor negativo.

Por outro lado, poder-se-ia argumentar no âmbito da justiça de menores que mesmo o consentimento do menor em participar da mediação pode não ser de todo livre, afinal pode temer o início ou a retomada do processo e, consequentemente, utilizar-se da mediação para fins utilitaristas, sem que tome consciência da sua própria responsabilidade. Entretanto, também aqui entendemos que, se corretamente desempenhada, a mediação permite superar esse obstáculo, educando o menor para o direito e contribuindo para sua responsabilização e reinserção social, constituindo assim uma resposta adequada ao superior interesse do menor.

189 Vide artigo 49º, nº 1, da Lei dos Julgados de Paz c/c artigo 12º do Regulamento dos Serviços de Mediação nos Julgados de Paz, aprovado

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Importante destacar que, havendo inviabilidade da mediação por falta de consenso de uma ou de ambas as partes, a comunicação ao juiz não deve conter informações aptas a identificar quem não quis aderir ao procedimento ou à proposta.

Esperamos que a mediação continue a expandir-se e obtenha a visibilidade devida, especialmente pelas boas práticas e consolidação de um meio mais humano que se volte a todos os envolvidos e às suas mais profundas necessidades e interesses, contribuindo assim para a restauração da paz interior, que propiciará uma maior restauração da harmonia social.