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Normas jurídicas internacionais de inspiração

CAPÍTULO II – Processo Tutelar Educativo

1.2 Normas jurídicas internacionais de inspiração

Tratar-se-á a seguir dos principais diplomas internacionais relativos aos direitos da criança na administração da justiça, por sua pertinência a este assunto. Entretanto, devido ao seu importante contributo ao direito da criança em geral, urge destacar as primeiras normas que a ele se referem a nível internacional, sendo a primeira delas a Declaração de Genebra de 192448, que determina a necessidade de proporcionar à criança uma proteção especial e a sua educação. A seguir, a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 194849, apela em seu artigo 25º ao “direito a cuidados e assistência especiais”. E a Declaração dos Direitos da Criança de 195950, por sua vez, estabelece um quadro global de proteção aos direitos da criança, apesar de não estipular quaisquer obrigações jurídicas.

Na mesma linha de pensamento, a Convenção Americana sobre os Direitos Humanos de 196951 preconiza que toda criança deve ter assegurada a proteção dos seus direitos, com

respeito à sua condição de menor.

A administração da justiça tutelar na Europa, entretanto, não teve até a década de 80 nenhuma regulamentação supranacional que pudesse contribuir para a discussão e implementação de novas propostas mais adequadas aos atuais contornos da realidade social, sendo assunto de competência única dos Estados.

Foi inicialmente com as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça da Infância e Juventude52 e com a Recomendação do Conselho da Europa de 1987 sobre "As Reações Sociais à Delinquência Juvenil"53 que surgiu uma nova fase, com a intensa produção de diplomas internacionais no âmbito da proteção das crianças e adolescentes e regulação da intervenção judiciária nessa área.

No que concerne ao estudo central do nosso trabalho, tais diplomas vieram a privilegiar, na regra 11.1 e no nº 2, respetivamente, o recurso a meios extrajudiciais na administração da justiça de menores, recomendando ainda que se previssem alternativas viáveis para substituir o processo normal da Justiça de menores, sobretudo quando a infração não é de natureza grave e quando a família, a escola ou outras instituições de controlo social informal já reagiram, ou

48 Adotada pela Sociedade das Nações, em 26 de Setembro.

49 Promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 10 de Dezembro. 50 Promulgada pela Assembleia Geral das Nações Unidas, em 20 de Novembro.

51 Conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, é um tratado internacional entre os países-membros da Organização dos Estados

Americanos.

52 Resolução 40/33 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 29 de Novembro de 1985, “Regras de Beijing” ou “Regras de Pequim”. 53 Recomendação nº R (87) 20, adotada em 17 de Setembro de 1987.

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estão em vias de reagir, de modo adequado e construtivo. Tudo isso de forma a evitar o formalismo da intervenção judiciária e as consequências negativas desta, especialmente a estigmatização do jovem. Realçam ainda o papel da comunidade na aplicação de medidas alternativas e de reeducação. A fim de viabilizar essas medidas, e ainda que atue o modelo tradicional de justiça, o primeiro diploma aduz na regras 18.1 e 18.2 que é necessário que o Estado intervenha nos diversos níveis, tais como familiar, educacional, social e profissional.

Em análise a tais diplomas, FABRIS aduz que os mesmos surgem como resposta “à crise evolutiva e de mudança de um sistema necessitado de superar seja as instâncias de tipo retributivo e institucional seja aquelas reveladas falidas, de carácter meramente terapêutico e assistencial” 54, pretendendo estimular a assunção de responsabilidade por parte do menor, de

forma que a medida aplicada seja efetivamente educativa.

Pouco depois, em 1989, foi adotado o diploma de maior importância no âmbito dos direitos da criança e dos jovens, constituindo-se no instrumento de direitos humanos mais aceite na história universal e o primeiro a conceder força jurídica internacional aos direitos da criança, a Convenção sobre os Direitos da Criança55. Introduz-se um sistema de proteção integrada da

criança, no qual ela é encarada como um sujeito de direitos, não apenas como um ser vulnerável e, por isso, carecido de proteção.

Entre outras matérias, consagra a CDC a necessidade de os Estados partes, sempre que possível e desejável, implementarem medidas relativas às crianças suspeitas, acusadas ou reconhecidas como tendo infringido a lei penal sem recurso ao processo judicial, nos termos do seu artigo 40º, nº 3. No nº 4, prevê também que um conjunto de disposições e de soluções alternativas às institucionais deverão ser adotadas de forma a assegurar-lhes um tratamento adequado ao seu bem-estar e proporcionado à sua situação e à infração.

Enquanto a Declaração dos Direitos da Criança, adotada 30 anos antes, impunha meras obrigações de carácter moral, a CDC torna os Estados Partes juridicamente responsáveis pela realização dos direitos neles previstos e por todas as ações tomadas em relação às crianças.

54 ELISABETTA PALERMO FABRIS, Evoluzione Storica e Recenti Tendenze del Sistema Penale Minorile, in FABRIS, Elisabetta Palermo

e PRESUTTI, Adonela (a cura di), Trattato di Diritto di Famiglia. Volume Quinto. Diritto e Procedura Penale Minorile, p. 31.

55 Adotada pela Assembleia Geral nas Nações Unidas, em 20 de Novembro de 1989, e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, foi

igualmente ratificada por outros 192 países. Vide: http://www.unicef.org/brazil/pt/resources_10120.htm, acesso em 03/07/2015; e

http://www.gddc.pt/direitos-humanos/onu-proteccao-dh/orgaos-onu-estudos-ca-dc.html#IA, acesso em 03/07/2015. Estabelece a CDC, em seu artigo 1.º que, para os seus efeitos, “criança é todo o ser humano menor de 18 anos, salvo se, nos termos da lei que lhe for aplicável, atingir a maioridade mais cedo”. Quanto à idade de imputabilidade penal, entretanto, não fixa qualquer limite, ficando a cargo de cada Estado Parte. Sobre a preocupação decorrente dessa liberdade conferida aos Estados, veja-se

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A seguir, no intervalo de apenas um ano, três novos documentos são elaborados: as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Elaboração de Medidas não Privativas de Liberdade56, as Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil57 e as Regras das Nações Unidas para a Proteção dos Menores Privados de Liberdade58.

O primeiro diploma tem carácter geral, aplicando-se a todos os delinquentes, independentemente da idade, assim incluindo também os menores, e contém princípios básicos para o favorecimento do uso de medidas não privativas de liberdade em oposição às medidas detentivas, de colocação ou institucionais.

Os diplomas seguintes já são dirigidos especificamente aos menores infratores. As Diretrizes, por exemplo, indicam que o pessoal de administração da justiça e outro pessoal relevante deve usar, tanto quanto possível, programas e possibilidades alternativas que permitam subtrair os jovens ao sistema judiciário59. Ainda sublinham a importância de implementação de medidas de prevenção da delinquência e de medidas que evitem criminalizar e penalizar um jovem por um comportamento que não cause danos sérios ao seu desenvolvimento ou prejudique os outros, tudo isso por considerar a peculiar situação do jovem, cujo comportamento contrário às normas e valores sociais gerais “faz muitas vezes parte do processo de maturação e crescimento e tende a desaparecer espontaneamente na maior parte dos indivíduos na transição para a vida adulta”60.

As Regras de Havana, por sua vez, sob o fundamento de constituir a prisão medida de

ultima ratio, decretada pelo período mínimo necessário e limitada a casos excecionais, elencam

regras limitadoras da normas regulamentares dos estabelecimentos tutelares, trazendo com a definição de privação de liberdade enorme contributo para o debate no direito tutelar de menores em Portugal, posto que limita sua utilização em casos excecionais, tendo em vista combater os efeitos negativos de qualquer tipo de detenção e promover a integração na sociedade. É que o modelo da OTM então vigente em Portugal, com o fundamento de proteger o menor inadaptado, permitia inúmeros casos de detenção por mera carência social e familiar, fechando os olhos para os efeitos nocivos dessa prática, enquanto as Regras de Havana determinam que quaisquer medidas e processos disciplinares devem ser compatíveis com o respeito pela inerente dignidade do menor (ponto 66. dos Processos Disciplinares), tendo como

56 Resolução 45/110 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de Dezembro de 1990, “Regras de Tóquio”. 57 Resolução 45/112 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de Dezembro de 1990, “Diretrizes de Riade”. 58 Resolução 45/113 da Assembleia Geral das Nações Unidas, de 14 de Dezembro de 1990, “Regras de Havana”. 59 Vide ponto 58, da Legislação e Administração da Justiça de Menores.

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perspetiva fundamental não discriminar o jovem quanto à raça, cor, sexo, idade, língua, religião, nacionalidade, opiniões políticas ou outras, crenças ou práticas culturais, situação económica, nascimento ou situação familiar, origem étnica ou social e incapacidade (ponto 4. das Perspetivas Fundamentais).

Importante contributo para facilitar aos Estados Partes a aplicação da CDC e dos instrumentos conexos, e para a prossecução dos objetivos nela enunciados, relativamente à administração da justiça aos jovens, são as Diretrizes para a Ação sobre Crianças no Sistema de Justiça Penal61. Aduzem, dentre outros aspetos, a que sejam promovidas respostas participadas e baseadas em medidas preventivas e corretivas eficazes, partindo do princípio de que incumbe aos Estados Partes a responsabilidade pela aplicação da CDC. Além disso, incita a que sejam utilizados mecanismos para a resolução informal de litígios, incluindo mediação e práticas de justiça restaurativa, particularmente nos processos que envolvem vítimas, tendo especialmente em conta a importância de garantir o respeito pelas garantias processuais na aplicação de tais medidas e o princípio da intervenção mínima. É o empurrão final para uma tão esperada reforma no direito tutelar educativo no Estado Português.