• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO II – Processo Tutelar Educativo

1.1 O Modelo vigente até o ano de 2000

Atento à necessidade de prover a Justiça de tribunais específicos para apreciação das causas relativas à infância e juventude, bem como de lhes criar um direito material e processual próprio, face à sua especial condição de ser humano em desenvolvimento, no início do século XX o Estado Português instituiu a Lei de Proteção à Infância, que criou a justiça de menores39,

sendo o país um dos precursores na Europa, pois a ideia de proteção da infância era algo relativamente recente, remontando à segunda metade do século XIX40. Antes da lei, as crianças

tinham o mesmo tratamento jurídico e social destinado aos adultos, sendo inclusive punidas nos mesmos moldes caso fosse constatado seu discernimento durante a prática do ato infracional.

De um modelo de justiça, a intervenção estatal passou então a basear-se num modelo de proteção, intensificado na Organização Tutelar de Menores de 196241. Este modelo se fundamentava na ideia de que o menor era uma pessoa carecida de proteção e que os atos infracionais por ele praticados eram um sintoma de inadaptação. Sendo assim, não havia uma clara distinção entre as intervenções judiciárias nas situações de menores em perigo e nas situações de menores em delinquência. E, nestes casos, os atos infracionais eram relegados ao segundo plano e sequer precisavam ser provados com rigor, em um processo fortemente informal42.

39 Decreto-Lei de 27 de Maio de 1911.

40 Sobre a história da justiça de menores em Portugal vide MARIA JOÃO LEOTE DE CARVALHO, Entre as Malhas do Desvio, p. 47 e ss.;

RUI ASSIS, A Reforma do Direito dos Menores: do modelo de protecção ao modelo educativo, in SOTTOMAYOR, Maria Clara, Cuidar da

Justiça de Crianças e Jovens: A função dos juízes sociais: Actas do Encontro, p. 137 e ss.; e, SABRINA SMITH CHAVES e LEONOR

FURTADO, As Medidas Socio-Educativas e as Medidas Tutelares Educativas na Legislação Brasileira e Portuguesa: Breves notas, p. 15. Nesta obra, regista-se que as primeiras instituições especializadas na causa dos menores surgem nos Estados Unidos, na segunda metade do século XIX, quando os problemas de comportamento social começaram a tomar vulto especialmente pela quebra da estrutura familiar provocada pelo trabalho excessivo proveniente da explosão industrial.

41 Decreto-Lei nº 44.288, de 20 de Abril de 1962.

42 ELIANA GERSÃO, Ainda a Revisão da Organização Tutelar de Menores: Memória de um Processo de Reforma, in DIAS, Jorge de

Figueiredo (org.) et al, Estudos em Homenagem a Cunha Rodrigues, p. 453, explica que o modelo de proteção maximalista foi introduzido pela OTM de 1962 e que a legislação anterior, a Lei de Proteção à Infância de 1911 e suas alterações, era mais próxima de um modelo híbrido, “as crianças em risco (‘em perigo moral’, como se dizia) e as ‘delinquentes’ não eram equiparadas, estavam salvaguardadas algumas garantias

38

Em que pese a louvável intenção de não traumatizar o menor, como forma a priorizar o seu interesse, ao desvalorizar a prática de atos ilícitos, negando a possibilidade de prova e a necessidade de uma intervenção diferenciada, esse modelo potenciava no infrator a atitude desviante ao incutir um sentimento de desresponsabilização43. Por outro lado, possibilitava a ofensa de alguns de seus direitos fundamentais por não separar nos estabelecimentos de internamento os menores em perigo e os menores em situação de delinquência, cuja convivência era de fato alarmante, não atendendo assim às problemáticas específicas de cada um. Para além disso, eram-lhes denegadas certas garantias processuais de natureza constitucional, como a presunção de inocência, contraditório, direito ao silêncio e defesa por meio de advogado constituído, ficando a análise de cada caso sujeita à discricionariedade por parte das entidades oficiais, tendo o juiz poderes quase ilimitados na aplicação, modificação e cessação das medidas

44.

Sendo decisivo para a intervenção estatal a personalidade do menor e as suas condições familiares e de vida, e não exatamente os fatos por ele praticados, entendia-se desnecessário proporcionar-lhe meios de defesa contra aquilo que se pretendia apenas beneficiá-lo, esquecendo-se, entretanto, que esta intervenção restringia importantes direitos tanto do menor quanto dos genitores45, e que deveria basear-se essencialmente em fatos comprovados.

Ao priorizar um modelo excessivamente protecionista, o sistema atingiu de modo quase exclusivo os menores que se encontravam em situação de vulnerabilidade social, segundo as estatísticas oficiais da justiça tutelar, trazendo consequências negativas a nível individual e social, “por intervir o aparelho judiciário onde deveria, primordialmente, estar o aparelho de apoio/protecção social acabando tal por se traduzir num provável acumular de graves efeitos para a futura (re)inserção social destas crianças e jovens”46. As crianças de classes mais

favorecidas, por sua vez, praticamente não se submetiam a uma intervenção judiciária, ainda que tivessem cometido infrações graves.

básicas de defesa ao longo do processo, as medidas previstas, mais do que a proteção, visavam o ‘melhoramento e correcção’; além disso os factos praticados tinham algum reflexo sobre o tipo e a duração da medida aplicada e eram fixados por lei alguns limites quanto à duração das medidas e à sua possibilidade de revisão”.

43 Vide MARIA JOÃO LEOTE DE CARVALHO, ob. cit., p. 75.

44 Vide ELIANA GERSÃO, ob. cit., pp. 448/450; JOSÉ ADRIANO SOUTO DE MOURA, A Tutela Educativa: Factores de legitimação e

objectivos, in OLIVEIRA, Guilherme de (coord.), Direito Tutelar de Menores: O sistema em mudança, pp. 108/111; MARIA JOÃO LEOTE de CARVALHO, ob. cit., p. 5.

45 Além dos direitos materiais e processuais do menor, esparsos pelo texto, eram desrespeitados os direitos dos genitores como os direitos de

guarda e educação, manutenção e convívio com os filhos, sem um adequado processo tutelar fundado em garantias.

39

Certamente na perspetiva do menor não delinquente o modelo também era bastante inadequado, pois o mesmo se submetia à estigmatização e a um convívio conturbado resultante da colocação num único tipo de instituição, junto daqueles jovens ligados à prática de atos infracionais, e, por falta de uma intervenção específica, tornavam-se novamente vítimas da sociedade.

Não tendo sido capaz de satisfazer as expectativas comunitárias, face ao aumento da delinquência juvenil e de suas múltiplas formas, a exemplo da utilização de menores inimputáveis no crime organizado, a sociedade clamava por um modelo mais repressivo, um "modelo de justiça".

O desafio se punha, pois não se podia fechar os olhos ao fato de que o sistema de justiça tutelar de menores não estava a resolver mas antes poderia agravar no jovem sua tendência à prática delituosa, agravando consequentemente o problema da segurança pública. Nas palavras de MOURA, "mostra-se tão irrealista considerar o menor irresponsável pelos seus actos, como ignorar o facto de a sua personalidade estar em formação"47.

Inúmeras reformas legais foram sucessivamente feitas, a fim de encontrar o modelo mais adequado às novas realidades sociais. Em meio a esse cenário, mas na esfera do direito aplicável aos jovens imputáveis, ou seja, aqueles de 16 a 21 anos incompletos, importante passo é dado com a promulgação do Decreto-Lei nº 401/82, de 23 de Setembro, que, fugindo à rigidez do sistema para infratores adultos, insere um regime penal especial para jovens delinquentes, fundado em um direito mais reeducador que sancionador. Sua inspiração, porém, vai além da perceção de que o jovem imputável merece um tratamento penal especializado, mas funda-se na capacidade de ressocialização do infrator, especialmente por estar em fase de desenvolvimento psicossocial, pelo que propõe a esses jovens um modelo no qual a prisão é a

ultima ratio, havendo ainda uma atenuação especial da pena de prisão eventualmente aplicada.

Trata-se de importante avanço em plano nacional nesse processo de mudança do paradigma de reação social à delinquência juvenil, e em que pese as críticas de aplicação inadequada dos postulados nele inseridos, foi um importante marco nesse processo de adequação aos princípios de proteção à criança e adolescente internacionalmente defendidos. Faltava então a implementação da devida reforma também na esfera da administração da justiça aos menores delinquentes.

40