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CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CAMPESINATO E DA AGRICULTURA FAMILIAR MODERNA

Foto 5 e 6 – Vista aérea da disposição das benfeitorias em algumas propriedades rurais.

3. A AGRICULTURA QUE PERSISTE NO INÍCIO DO SÉCULO

3.2 CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CAMPESINATO E DA AGRICULTURA FAMILIAR MODERNA

Os estudiosos das questões que dizem respeito à agricultura e aos espaços rurais têm demonstrado que, em decorrência das transformações que se processaram no campo brasileiro nas últimas décadas, os produtores familiares estão cada vez mais dependentes das inovações tecnológicas desenvolvidas pelo setor industrial (máquinas, equipamentos, fertilizantes, defensivos, rações, vacinas, etc.) e que, devido a aproximação com os núcleos urbanos, estes passaram a incorporar ao seu cotidiano comportamentos e ações que se desenvolvem nos demais setores econômicos da sociedade, muitos dos quais tiveram ampla repercussão nos sistemas produtivos agrários, implicando inclusive em mudanças no estilo de vida que até então levavam.

Entre as conseqüências advindas com a modernização tecnológica da agricultura, em pelo menos três aspectos a estrutura da pequena produção familiar foi afetada sensivelmente: na forma de produção, no destino final dado aos bens produzidos na propriedade e no uso da mão-de-obra familiar.

As novas tecnologias disponibilizadas pelo setor industrial proporcionaram o aumento da produtividade das atividades agropecuárias, favorecendo e induzindo à especialização do produtor rural em determinado ramo produtivo e, com isto, uma nova forma deste se relacionar com o mercado (seja como consumidor de insumos ou como fornecedor de bens intermediários para as agroindústrias) o que, em última análise, resultou no redirecionamento dos produtos explorados na propriedade.

Na medida em que foram especializando a atividade produtiva e se inserindo como consumidores no mercado de insumos industrializados, os produtores rurais passaram a fazer parte de um contexto socioeconômico mais

amplo, sendo que neste processo suas atividades também passaram a ser reguladas pelas relações de produção e de distribuição vigentes na economia como um todo. Com isto, as relações diretas que existiam entre produtores e consumidores tornaram-se cada vez mais raras e marginais, sendo que atualmente a entrega de produtos ao mercado é feita na sua ampla maioria através de intermediários, sejam pelas agroindústrias, Cooperativas, Centrais de Abastecimento S.A. (CEASAs), ou quaisquer outros segmentos da esfera mercantil ao qual estejam inseridos ou vinculados.

Sob outro aspecto, nos dias atuais é claramente perceptível que, em decorrência da inserção dos produtores rurais na cadeia mercantil, a mão-de-obra familiar cada vez mais está se distanciando da produção de valores de uso (ou seja, a produção de bens a serem utilizados pela família / autoconsumo) e tem sido empregada essencialmente na produção de valores de troca (isto é, os bens são produzidos com a pré-determinação de comercialização e não para o uso próprio). Assim, se outrora a prática agrícola era associada ao exercício de outras atividades desenvolvidas em bases artesanais pelo grupo familiar dentro de suas propriedades (tais como a fabricação de móveis, utensílios, ferramentas, tecidos, louças; produção de doces, queijos, conservas, defumados, etc.), nos dias atuais isto perdeu grande parte de sua importância e, em muitos casos, até já não ocorre mais. Hoje os frutos do trabalho da família agricultora cada vez menos são utilizados como fonte de autoconsumo, sendo que os membros desta têm que recorrer freqüentemente ao mercado para obterem os alimentos (muitos dos quais agora são processados pelas agroindústrias) necessários para a reposição da energia gasta em suas atividades. Com base nesta constatação, pode-se dizer que a maior parte (se não a totalidade) da produção agropecuária auferida pelos produtores familiares é constituída por produtos que têm por destino final a comercialização no mercado e não de produtos a serem consumidos por eles próprios.

No entanto, isto não significa dizer que estes ex-artesãos deixaram de consumir os alimentos ou utilizar os demais bens que antes eles mesmos produziam. Ao contrário, supomos que houve até um aumento no consumo de alguns gêneros, dado as amplas possibilidades de diversificação de um mesmo produto quando esse é processado em escala industrial. Tomando por exemplo apenas o trigo, o açúcar e o milho – itens que ocupam lugar de destaque no cardápio das famílias rurais –, poderíamos até elaborar um extenso rol de produtos

industrializados que utilizam estes alimentos como matéria prima em sua confecção e que agora são adquiridos pelos produtores rurais em estabelecimentos comerciais.

O certo é que, desestimulados pelo avanço tecnológico em produzir e/ou processar os alimentos destinados ao sustento da família, os produtores rurais vêm perdendo suas raízes históricas e com elas a capacidade de deixar para as gerações futuras o que certamente lhes é mais caro, e que em síntese é crucial para a sua própria reprodução social, qual seja, o domínio sobre o saber-fazer. Na pesquisa de campo, em muitos depoimentos ficou evidenciado que a transmissão das técnicas tradicionais de trabalho deixou de ser valorizada pelos agricultores. Na opinião de um dos entrevistados isto ocorre

Porque hoje em dia não compensa mais fazer certas coisas em casa. A gente até sabe que isto não é lá muito certo, porque é uma coisa que veio dos nossos antepassados, mas é muito mais fácil para nós. Por exemplo, o porco. Você não sabe o trabalho que dá matar um porco. Tá certo que a gente pode fazer muita coisa matando um porco. Mas, e o trabalhão que dá! Então se a gente pode comprar a parte do porco que a gente quer comer, porque então ter este trabalhão todo? A mesma coisa é o pão. A padaria traz o pão até nós. Então tudo isto a gente não faz mais. E eu acho que muitos jovens já não sabem mais fazer muitas coisas porque os pais hoje acham que não precisam mais ensinar estas coisas para eles. Os nossos filhos, a gente não ensina estas coisas porque não é mais preciso. Antigamente a gente tinha que se virar porque não tinha outro jeito mesmo. Mas hoje é diferente. Hoje tudo o que você precisa encontra no comércio. 235

Já no que diz respeito ao envolvimento da mão-de-obra familiar nas atividades desenvolvidas na propriedade, talvez o efeito mais contundente advindo da vinculação das populações agrícolas às novas tecnologias proporcionadas pelo capital industrial tenha sido o de gerar o sub-aproveitamento da capacidade produtiva do trabalhador rural (que a literatura designa como “ociosidade”).

Na busca de referenciais teóricos para subsidiar a elaboração deste trabalho, encontramos diversos estudos em que os acadêmicos defendem a tese de que a introdução de máquinas e demais instrumentos de trabalho motomecanizados no processo de produção agropecuário reduziu significativamente o tempo que os agricultores levavam para realizar suas atividades produtivas, tornando ociosa a mão-de-obra familiar e, no limite, eliminando os postos de trabalho na propriedade. Para alguns autores este foi, inclusive, o fator determinante para a individualização

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do processo produtivo nas pequenas propriedades agrícolas familiares onde, com o apoio em máquinas e demais implementos agrícolas, tornou-se rotina os agricultores realizarem individualmente cada uma das etapas do processo produtivo não sendo raros os casos em que um só trabalhador consegue manter a unidade em funcionamento. Também nos deparamos com diversas obras cujos autores apontam que o setor industrial conseguiu minar o trabalho artesanal desenvolvido pelas populações rurais, passando este a ser o fornecedor dos bens de consumo antes produzidos no interior das propriedades.

Mesmo tendo ressalvas quanto ao papel exercido pela modernização tecnológica enquanto vetor de direção única na eliminação dos postos de trabalho agrícolas 236 não há como negarmos que, com o avanço das relações capitalistas no campo, os agricultores foram se distanciando de um passado de características feudais (no qual o artesanato ocupava um lugar de destaque nas relações socioeconômicas) para se integrarem crescentemente a um mercado de produtos industrializados.

O interessante a notar é que o processo pelo qual os produtores familiares foram sendo impelidos a se vincularem ao mercado consumidor de produtos industrializados pouco difere, em sua essência, de uma região para outra. Variam os atores, as atividades e os locais em que se desenrolam as inter-relações socioeconômicas, mas o destino é um só: o crescente domínio do capital industrial sobre as formas tradicionais de produção agropecuária com o conseqüente afastamento do produtor rural das atividades agrárias voltadas ao autoconsumo.

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Julgamos que nem sempre a modernização das atividades agropecuárias tende a eliminar postos de trabalho. Se isto ocorre e é sentido com intensidade nos grandes latifúndios monocultores, em que um pequeno avanço tecnológico pode implicar na exclusão simultânea de milhares de postos de trabalho (em algumas culturas, tal como o algodão, o processo de colheita era tradicionalmente realizado de forma manual e dependiam de um grande número de indivíduos para realizar a tarefa. Uma vez que foram desenvolvidas máquinas para este fim, a mão-de-obra antes envolvida no processo de colheita foi dispensada.), nas pequenas propriedades rurais, ao contrário, em muitos casos a mecanização permite e até estimula a ampliação/diversificação das atividades até então desenvolvidas pelas famílias, fato que, longe de excluir, implica num maior envolvimento da mão-de- obra numa, ou mais fases do processo produtivo. Citamos como exemplo o caso do fumo, cujo plantio, colheita e seleção das folhas é feito essencialmente com uso da mão-de-obra familiar. (ver foto 7) O desenvolvimento de máquinas destinadas à costura das folhas a serem levadas para a estufa de secagem e de estufas elétricas (e não mais à base de lenha) proporcionou uma maior agilidade no processo produtivo e criou condições para o aumento da produção o que, consequentemente, se refletiu num maior envolvimento da mão-de-obra familiar nas diversas etapas do cultivo do fumo. Na pesquisa de campo encontramos famílias especializadas na produção deste produto e que investiram na implementação de tecnologia de ponta no processo produtivo, mas que estão encontrando dificuldades em permanecer na atividade em função de parte da mão-de-obra estar optando pelo trabalho assalariado por razões que nada tem haver com o ingresso de máquinas no setor produtivo.