• Nenhum resultado encontrado

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No documento allanameirellesvieira (páginas 195-200)

“A nossa participação nas coisas públicas geralmente não é mais do que filisteia”. A sentença de Goethe – citada por Adorno, ao final do texto “Televisão, consciência e indústria cultural”, e relacionada aos “serviços públicos que as instituições da indústria cultural alegam desempenhar” (ADORNO, 1963, p.354) – revela bem a perspectiva pessimista do sociólogo alemão em relação à Indústria Cultural bem como em relação à possibilidade de participação na esfera pública.

Embora não se exclua a possibilidade de que essa sentença se verifique na prática e, mais do que isso, entenda-se que, de fato, a promoção da participação é tornada um recurso retórico na defesa de interesses comerciais da Indústria Cultural, opta-se, neste trabalho, por uma perspectiva menos determinista. Nesse sentido, assume-se as ideias de Gramsci sobre hegemonia e sociedade civil, entendendo que, embora haja predominância da dominação e reprodução capitalistas, as contradições do sistema abrem brechas para disputas e contestações da ordem vigente. Além disso, compreende-se a hegemonia, tal qual analisada por Williams, como sendo constantemente transformada, abrindo-se, assim, a possibilidade de influência de forças alternativas. A partir dessa concepção, esta pesquisa se desenvolveu na busca por analisar e refletir sobre as possibilidades de um modelo de televisão com autonomia relativa e espaço para participação, abrindo-se, consequentemente, para a disputa por hegemonia.

Em contraposição aos determinismos de base econômica ou tecnológica, como Williams defendeu, adotou-se aqui a relevância da disputa de sentidos e a possibilidade de usos alternativos dos meios de comunicação. A partir desses pressupostos, buscou-se analisar em que medida o modelo público de radiodifusão e, mais especificamente a forma como ele se constitui no Brasil, abre possibilidades para essas disputas e de que maneira elas se concretizam.

Para além das determinações históricas da televisão na estrutura capitalista democrática, no Brasil, esse meio de comunicação se configurou como um forte instrumento de poder, influenciando direta ou indiretamente decisões políticas e a formação cultural do país. Com um histórico de políticas públicas baseado em práticas coronelistas e patriarcais, em benefício dos poderes políticos e econômicos, o sistema de comunicação no Brasil é marcado pela concentração dos meios em oligopólio, pela utilização de canais educativos como moedas de troca no Congresso Brasileiro, pela hegemonia dos canais comerciais, pela

apropriação de veículos de comunicação por políticos e igrejas, e pela desvalorização do modelo público de comunicação.

Nesse cenário, insere-se a Empresa Brasil de Comunicação, criada com a finalidade de complementar o sistema de comunicação brasileiro, o qual deveria se constituir pela existência de canais privados, públicos e estatais – segundo a Constituição Brasileira de 1988 –, sem, porém, uma definição clara desses termos. Diante do contexto internacional, o Brasil se coloca em atraso no que diz respeito à regulação midiática, em comparação, por exemplo, com Argentina e Uruguai, que aprovaram as leis de meios. Por outro lado, em relação à Europa, esses países se posicionam na contramão, já que no continente europeu a tendência é de desregulamentação.

Dada a hegemonia da mídia privada, o histórico da comunicação no Brasil e esse cenário internacional, a consolidação do sistema público de comunicação no país se configura como um desafio. A herança institucional, nesse sentido, afeta, em grande medida, a própria constituição da empresa pública. A partir da análise de suas formas de financiamento, gerência, vinculação e fiscalização, é possível observar as influências, não apenas governamental, como também comercial, no desenho institucional da EBC. Nesse caso, entende-se o conceito de Estado ampliado e, portanto, como algo além do governo. Ainda assim, a vinculação da EBC à Secretaria de Comunicação da Presidência da República, a indicação dos principais cargos por este órgão e a prestação de serviços da EBC ao poder Executivo prejudicam a autonomia relativa da empresa e, como foi demonstrado nas análises aqui empreendidas, refletem nas práticas jornalísticas cotidianas e nos conteúdos produzidos. O que se percebe, porém, a partir das observações empíricas e reflexões teóricas, é uma influência indireta do Governo Federal, exercida nas práticas cotidianas, muito mais por meio dos valores e regras introjetados e pela autocensura do que pela instrumentalização a partir de uma vontade do poder Executivo. Exemplo disso é o fato de que – como afirmado por uma funcionária da EBC – o convite para uma entrevista com a presidenta da República, Dilma Rousseff, após a vitória nas eleições de 2014, não foi atendido, enquanto ela concedera esse espaço a emissoras de televisão comerciais. Percebe-se, assim, até mesmo um descaso do poder Executivo em relação ao canal público.

Se a influência governamental se estabelece por meio da configuração institucional – resultando em uma cobertura, em geral, acrítica do Governo –, a dominação do mercado é ainda mais indireta, mas, talvez, também mais poderosa. Os valores da burguesia perpassam os princípios do jornalismo e são reproduzidos nas visões sobre a prática, já que o próprio projeto de jornalismo que se tem está vinculado, em certa medida, a essa classe; o

modo de produção televisiva, ainda que em uma empresa pública, é baseado em uma estrutura técnica e administrativa racionalizada, próprias do mercado – com hierarquias, metas a serem cumpridas, planos de trabalho, pressões orçamentárias etc.; a formação dos profissionais, inevitavelmente, se baseia no modelo comercial de televisão e jornalismo, seja pelos cursos superiores ou pelas experiências profissionais; o imaginário popular e o hábito de ver televisão, no Brasil, estão influenciados pelo “padrão Globo de qualidade”, embora com algumas aparentes contestações que se tornaram comuns na Internet; também os formatos, a linguagem, a construção da narrativa se baseiam no modelo estabelecido.

Dentre todas essas determinações, na estrutura da empresa, o Conselho Curador emerge como um espaço de possível disputa por novos sentidos e novas formas de construí- los. Relativamente autônomo, o Conselho se configura como uma força interna que busca transformar o campo, mais do que conservá-lo. Sua composição reflete uma crescente autonomia e efetividade de participação. A partir dos processos de consulta pública para indicação dos representantes da sociedade civil, o Conselho tem ampliado a presença de integrantes de movimentos sociais, reduzido a inserção de atores que já ocuparam cargos políticos, e tem se tornado, consequentemente, mais ativo e mais efetivo nas discussões consideradas decisivas para esta dissertação – àquelas relacionadas ao jornalismo e aos planos de trabalho. Para além da discussão sobre o conteúdo estritamente, há uma preocupação em relacioná-los com questões de ordem institucional – como orçamento, modelo institucional, condições de trabalho dos funcionários etc.

Embora permeado de dificuldades – como a relação com a Diretoria da empresa e a aceitação da participação, as limitações do processo de discussão e deliberação, as pressões financeiras e até mesmo a curta experiência –, o Conselho consegue afetar em alguma medida a prática jornalística, seja definindo as diretrizes editoriais, cobrando a pluralidade de atores, avaliando conteúdos, sugerindo pautas e promovendo a interlocução, ainda que mínima, com os movimentos sociais. Ainda assim, não se percebe uma inserção na produção cotidiana, dificultada pelos fatores logísticos, bem como devido ao volume de temas a ser debatido, o jornalismo não entra em discussão periodicamente nas reuniões do pleno do Conselho. Portanto, os debates sobre o jornalismo não são constantes e detalhados. A participação se exerce em maior medida no sentido prescritivo e a maior parte dos posicionamentos – embora possam ser resultados de discussões coletivas – é expressa individualmente. Além disso, dentre as poucas reuniões sobre o jornalismo, um número reduzido de intervenções é feito em relação ao telejornal Repórter Brasil, especificamente.

A participação dos movimentos sociais, no âmbito do Conselho Curador, embora seja crescente – com as indicações por consulta pública e, portanto, com a ampliação dos integrantes de organizações da sociedade civil –, não é direta. Nas reuniões analisadas, houve poucas falas em nome de movimentos. Certamente, muitas posições foram construídas a partir da inserção dessas pessoas nas organizações, ainda assim, isso não fica claro na maior parte das declarações dos conselheiros. Além disso, essa relação ainda seria de representação e não de participação direta. Cabe ressaltar, porém, que o Conselho promove periodicamente outras formas de interlocução com os movimentos sociais, seja via audiências públicas ou eventos, como o “Seminário Modelo Institucional da EBC”, do qual a autora participou em agosto de 2015. Quanto às menções aos movimentos sociais, embora não haja um número elevado nas reuniões analisadas, a abordagem de reivindicações e assuntos relacionados a eles é frequente. Por outro lado, a esfera jornalística da emissora possui uma autonomia relativamente menor, no sentido de ser mais hierarquizado, permeado de constrangimentos – sejam eles operacionais, organizacionais, valorativos ou culturais – e relações de poder. Se, por um lado, os profissionais concursados, devido à segurança do emprego, possuem uma autonomia relativamente maior – ainda que também se exerçam, sobre eles, pressões, como os baixos salários, os desvios de função, as repreensões etc. –, por outro, todos os cargos de chefia da produção do Repórter Brasil são ocupados por funcionários de cargo comissionado, os quais têm os mais altos salários, porém menor autonomia. Além disso, percebe-se, a partir dos questionários aplicados, um engajamento e uma preocupação maior em construir um novo jornalismo entre os profissionais concursados. Ainda assim, em ambos os grupos – porém, em maior grau, entre as chefias –, valores jornalísticos tradicionais e posicionamentos típicos das empresas comerciais puderam ser observados. Dentre os questionários, destacou-se a postura crítica e até mesmo contrária aos movimentos sociais e à participação do Conselho Curador, por uma das entrevistadas, sendo ela ocupante de cargo de confiança e, mais do que isso, de um espaço decisivo para o conteúdo. Embora se perceba uma abertura à participação, no geral, essa participação é considerada de forma minimalista, instrumentalizada, controlada e utilitária. Ou seja, ao ser questionada sobre as formas de participação recomendáveis aos movimentos sociais no telejornal, a maior parte dos entrevistados mencionou a sugestão de pauta e a atuação enquanto fonte. Poucos profissionais abordaram a participação nas decisões e na produção do conteúdo. Da mesma forma, a intervenção do Conselho Curador é vista, por alguns, com estranhamento. Nesse ponto, cabe enfatizar a reduzida atenção dada ao quadro “Outro Olhar”, evidenciada pela presença de apenas três vídeos nas semanas analisadas.

A profissionalização do jornalismo e a valorização técnica, nesses casos, podem ser vistas como limitadoras da participação. Nesse sentido, a atuação de outros atores nos momentos de decisão e produção é considerada como um prejuízo à atividade, no sentido de que esses atores não seriam devidamente qualificados e não conseguiriam se afastar, como idealmente os jornalistas se afastariam, de suas posições políticas. Desse modo, a profissão, mesmo no campo público, é permeada de mitos. O ideal de “objetividade”, mesmo que expresso em outros termos, ainda é buscado pelos profissionais. Da mesma maneira, é possível observar, nas reuniões do Conselho Curador, posicionamentos tradicionais e defesas conservadoras.

Por outro lado, tanto na esfera de produção jornalística quanto no Conselho, há disputas e não um aparente consenso estabelecido. Assim, emergem, em diversos momentos, perspectivas progressistas, no sentido de defesa da ampliação e aprofundamento da participação. Em geral, esses posicionamentos se relacionam com a defesa da ampliação da democracia, sem, necessariamente, serem acompanhados de um questionamento da ordem econômica e política vigente. Da mesma forma, os movimentos sociais, na contemporaneidade, relacionam-se mais com questões individuais e de grupos, do que com projetos – ainda que pretensamente – universais. Cabe ressaltar que, com isso, não se estabelece, neste trabalho, necessariamente uma crítica, mas sim uma reflexão sobre a possibilidade efetiva de uma contra-hegemonia em relação ao sistema como um todo. Além disso, observa-se o processo de participação como um aprendizado, já que com a experiência, ela se amplia e se efetiva. Esse fenômeno foi verificado tanto no interior do Conselho quanto no crescente envolvimento dos funcionários da EBC, constatado pelas entrevistas e observações empíricas.

Soma-se às limitações apontadas, a influência da reduzida “cultura da participação”. Dado o recente período histórico ditatorial e as formas como se estabeleceu a redemocratização do país – assunto que não cabe aprofundar neste trabalho –, bem como a outros aspectos sociais, tem-se um afastamento das pessoas em relação àquilo que é “público”, associado em geral ao que é governamental e à ineficiência. O desenho do sistema midiático brasileiro – concentrado, hierarquizado, com uma valorização do aspecto técnico em detrimento do político (ainda que isso sirva para ocultar interesses estabelecidos), comercial – e o próprio desconhecimento da população sobre o que é uma emissora pública de televisão e sobre a existência da TV Brasil também limitam o interesse em relação à emissora. Além disso, como abordado no primeiro capítulo deste trabalho, o sistema capitalista afasta,

em grande medida, a classe trabalhadora da participação, já que a exploração de sua força de trabalho limita a sua disponibilidade e seu envolvimento com a política.

Empiricamente, é possível observar essa baixa “cultura da participação”, entendida aqui da forma maximalista, pelas entrevistas realizadas, nas quais, as pessoas entrevistadas afirmaram a existência de espaços para a participação no interior da EBC, porém, de espaços com pouca adesão, mesmo dos movimentos sociais. Nesse sentido, tanto a então Diretora de Jornalismo, Nereide Beirão, quanto a então presidenta do Conselho Curador, Ana Luiza Fleck, apontaram para as tentativas de se estabelecer parcerias e diálogos com a sociedade civil organizada, obtendo, porém, pouco engajamento por parte do público- alvo. Assim, mesmo os movimentos sociais, que seriam, em tese, os organismos mais participativos, por já terem uma experiência e um conhecimento desses processos, não se apropriam efetivamente desse espaço – embora estejam presentes na indicação de membros para o Conselho, por exemplo –, que acaba ficando limitado, em geral, às organizações ligadas à comunicação social. Com o intuito de fomentar esse engajamento foi, inclusive, lançada uma Cartilha de Participação da Sociedade na EBC54, em 2015, a partir de uma proposta do Conselho. Portanto, os fatores que influenciam no nível de participação vão além do desenho institucional e da configuração do campo interno, abrangendo o contexto histórico e político do Brasil, a estrutura socioeconômica e as características do sistema midiático no país.

Todas essas questões estruturais, tanto no Conselho quanto no campo jornalístico, refletem-se de alguma maneira no conteúdo produzido. A partir das análises do material audiovisual, foi possível observar uma relação entre estrutura institucional, dinâmicas de decisão e produção e conteúdo produzido. O telejornal da emissora pública de fato se diferencia do comercial, ao abordar com mais frequência e ênfase os movimentos sociais e as manifestações. Os enquadramentos do Repórter Brasil são mais ligados aos direitos e às reivindicações dos movimentos do que ao transtorno, por exemplo. Relativamente, o RB também dá mais voz a esses grupos e suas reivindicações, apresentando uma maior diversidade. Enquanto no JN, o tema é pouco abordado, os representantes dos movimentos não são entrevistados em nenhuma matéria e os trabalhadores aparecem apenas como prejudicados pelos atos de sindicatos e não como atores reivindicantes.

Seguindo essa mesma linha, percebe-se uma defesa clara, por parte do JN, tanto pelas diretrizes editoriais quanto pelas análises das matérias, dos valores burgueses e da

54A Cartilha de Participação da Sociedade na EBC está disponível no seguinte endereço eletrônico: http://www.ebc.com.br/participacao.

No documento allanameirellesvieira (páginas 195-200)