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Estado, sociedade civil e disputa por hegemonia

No documento allanameirellesvieira (páginas 40-44)

2 TELEVISÃO: ENTRE DOMINAÇÕES E RESISTÊNCIAS

2.2 CONTRA-HEGEMONIA E AUTONOMIA RELATIVA NA BATALHA DE

2.2.1 Estado, sociedade civil e disputa por hegemonia

O filósofo italiano Antonio Gramsci, sem desconsiderar a centralidade das relações sociais de produção e, portanto, a importância da esfera econômica, se dedica a pensar a superestrutura, na qual se estabelecem as disputas entre as classes sociais. Para o autor marxista, essa superestrutura é responsável pela formação de uma hegemonia, necessária à manutenção e reprodução do sistema. Assim, ela seria composta por duas esferas: a “sociedade civil” e a “sociedade política”. A primeira corresponde aos “conjuntos de organismos chamados comumente de privados” – como Igreja, partidos políticos, sindicatos, imprensa, sistema escolar, instituições de caráter científico e artístico etc. – e tem o papel de construção de consensos na população, tidos muitas vezes como “espontâneos” (GRAMSCI, 1982, p.10-11). Já a sociedade política, refere-se aos organismos responsáveis pela coerção estatal que tem como fim manter o cumprimento das regras por parte daqueles que não “consentem” e agir nos momentos em que o “consenso espontâneo” não se realiza.

Nesse sentido, a sociedade política de Gramsci – ou o Estado em sentido estrito – aproxima-se da compreensão de Estado, presente em Marx, cuja função é conservar a divisão de classe e se baseia na “violência concentrada e organizada da sociedade” (MARX, 1996, p.370). Gramsci, porém, considera o Estado como ampliado, indo além da sociedade política e abrangendo também a sociedade civil. Como Coutinho explica, essa diferenciação entre a ideia de Estado de Marx para a de Gramsci se deve ao contexto histórico, já que o filósofo italiano pode vivenciar a “socialização da política”, com a conquista do sufrágio universal, a

criação de partidos políticos de massa e o aprofundamento da atuação dos sindicatos operários (COUTINHO, N., 2011, p.24). Assim, teríamos o “Estado = sociedade política + sociedade civil, isto é, hegemonia couraçada de coerção” (GRAMSCI, 2007, p.244). Entretanto, essa separação entre base e superestrutura e o posicionamento do Estado na segunda não é algo estanque, já que além de exercer a função de hegemonia e coerção, o Estado tem também outras atuações na reprodução do sistema, que correspondem à instância da infraestrutura. Cabe ressaltar, além disso, que essas distinções são consideradas, por Gramsci, em termos metodológicos e não como orgânicas.

A partir desses conceitos iniciais, a sociedade civil é considerada pelo filósofo italiano como uma arena da luta de classe, na qual emergem as contradições do sistema. Como Coutinho explica, a concepção gramsciana não compreende a sociedade civil para além das relações sociais, mas sim como parte do Estado e inserida no contexto mercadológico, contrapondo-se à visão de um “terceiro setor” independente do Estado e do mercado (COUTINHO, N., 2006, p.41). Nesse sentido, tanto a esfera da sociedade civil quanto a sociedade política atuariam na conservação e promoção de determinada base econômica, favorável à classe social dominante, segundo Coutinho (2006, p.26). Ainda assim, ele afirma que essa esfera seria “dotada de leis e funções relativamente autônomas e específicas, tanto em relação ao mundo da economia como em face dos aparelhos repressivos de Estado” (COUTINHO, N., 2006, p.33). Também nesse sentido, Daniel Campione afirma que:

A disputa de classe fica assim explicada como um fenômeno multívoco, cujas diversidade e complexidade aumentam com a diversidade e a complexidade das sociedades. Isso, porém, não justifica o “deslizamento” para uma interpretação do poder em chave liberal ou socialdemocrata, interpretação que – ao eludir as bases materiais, econômicas, da hegemonia – “desmaterializa” e “pacifica” o poder, deixando de lado a problemática da coerção, da violência, até mesmo do terror, que subjaz (e atua, de modo seletivo e mais ou menos orientado juridicamente) nas sociedades hegemônicas, democráticas (CAMPIONE, 2003, p.54).

Enquanto instrumento de reprodução ideológica da hegemonia política e econômica, é possível considerar a mídia como um “aparelho privado de hegemonia” (GRAMSCI, 2007, p.254), ou seja, como parte da sociedade civil, estando, portanto, inserida em um contexto de disputas de sentido pelas classes sociais. Além disso, ela também se relaciona com a sociedade política e se constitui como empresa capitalista que visa à acumulação do capital. Como Gramsci não vivenciou o desenvolvimento da Indústria Cultural, ele não viu a mídia enquanto empresa capitalista.

Para Gramsci, a hegemonia é a direção político-ideológica, exercida a partir da força e do consenso, sendo que o equilíbrio entre um e outro é variado de modo que a força

não seja muito maior que o consenso. Ao contrário, a força necessita de um aparente apoio no “consenso da maioria”, demonstrado pelos “chamados órgãos de opinião pública”, como jornais e associações, “os quais, por isso, em certas situações, são artificialmente multiplicados”(2007, p.95). De acordo com o filósofo italiano:

A opinião pública é o conteúdo político da vontade política pública, que poderia ser discordante: por isto, existe luta pelo monopólio dos órgãos de opinião pública – jornais, partidos, Parlamento –, de modo que uma só força modele a opinião e, portanto, a vontade política nacional, desagregando os que discordam numa nuvem de poeira individual e inorgânica. (GRAMSCI, 2007, p.265).

Nessa disputa pelo monopólio dos órgãos de opinião pública – que pode, inclusive, ser observada empiricamente no Brasil, por exemplo –, o jornalismo e a mídia ocupam, contemporaneamente, um papel central. Além de citar a imprensa, Gramsci menciona o papel do rádio na constituição de uma opinião pública favorável à conquista de objetivos específicos – como em uma eleição, por exemplo (GRAMSCI, 2007, p.270). Nesse momento, entretanto, não se tinha ainda a constituição da Indústria Cultural, tal como Habermas, Adorno e Horkheimer puderam analisar.

Assim, embora a mídia e o jornalismo sejam entendidos também como um espaço de reprodução do sistema, a partir de seu caráter de classe, eles também podem se constituir enquanto instrumentos de luta política e disputa por hegemonia. Nesse sentido, não se estabelece um determinismo simplista dos meios, que exclui as possibilidades de apropriações alternativas ou contra-hegemônicas. Ao abordar o jornalismo, Gramsci afirma que “a repetição paciente e sistemática é um princípio metodológico fundamental”, mas que a forma como o convencimento se dá é, principalmente, pela “adaptação de cada conceito às diversas peculiaridades e tradições culturais” (GRAMSCI, 1982, p.174). O trabalho educativo- formativo, portanto, não se dá de modo abstrato, mas sim concreto, “com base no real e na experiência efetiva”, segundo o autor (1982, p.174).

Nesta mesma ordem de observações insere-se um critério mais geral: as modificações nos modos de pensar, nas crenças, nas opiniões, não ocorrem mediante “explosões” rápidas, simultâneas e generalizadas, mas sim, quase sempre, através de “combinações sucessivas”, de acordo com “fórmulas de autoridade” variadíssimas e incontroláveis. A ilusão “explosiva” nasce da ausência de espírito crítico. (...) Confunde-se a “explosão” de paixões políticas acumuladas num período de transformações técnicas, às quais não correspondem novas formas de organização jurídica adequada, mas sim imediatamente um certo grau de coerções diretas e indiretas, com as transformações culturais, que são lentas e graduais; e isto porque, se a paixão é impulsiva, a cultura é produto de uma complexa elaboração.” (GRAMSCI, 1982, p.175).

Assim, Gramsci considera, para além das diferentes formas de atuação ideológica e interpretação do conteúdo jornalístico, o possível papel contestador dessa prática, tendo, inclusive, atuado em jornais comunistas e de esquerda. Nesse aspecto, porém, não se tem uma visão idealista do jornalismo como serviço público, no sentido universal, mas sim como arena de disputa de sentidos, na qual, poderiam emergir jornais sindicais e de partidos políticos de trabalhadores, por exemplo.

A partir disso, é possível pensar as disputas que ocorrem no sistema como um todo, mas também as próprias lutas internas de cada veículo. No primeiro caso, tem-se, por exemplo, as pressões pela democratização do sistema, indo além da quantidade de veículos disponíveis e considerando as diferenças qualitativas do conteúdo oferecido por cada um, com a criação de possibilidades de que contestações à ordem dominante ganhem destaque. Já em relação às lutas internas, pode-se considerar a presença ou ausência de espaços de emergência de vozes divergentes dentro da estrutura da empresa pública – como, por exemplo, a partir do espaço dado à participação dos movimentos sociais.

No que concerne à disputa por hegemonia no âmbito da sociedade civil ou da superestrutura, de acordo com Campione, estudioso de Gramsci, há uma confusão nas interpretações feitas sobre os escritos do intelectual italiano.

Os componentes de hegemonia e de coerção coexistem no tempo e no espaço, como componentes da “supremacia” de uma classe que passa a ser dirigente sem deixar de ser “dominante” (isto é, dotada de poder coercitivo) e exerce seu poder sobre um espaço social mais amplo que o dos aparatos estatais formalmente reconhecidos como tais, dando lugar à configuração de uma sociedade em que, como disse o próprio Gramsci, há democracia na relação de alguns setores sociais e ditadura em face de outros. (CAMPIONE, 2003, p.52).

Sobre a hegemonia ideológica, Campione ressalta que ela não é conquistada pelo grupo dominante simplesmente por meio da manipulação. Segundo ele, há grupos sociais em torno daqueles que estão no poder que compartilham uma “visão de mundo” e contribuem para legitimar essas relações de dominância – sendo estes, os intelectuais, tal como Gramsci caracterizou. Além disso, Gramsci afirma que, para conquistar esta “hegemonia”, tem-se a necessidade de se levar em consideração os interesses e as tendências daqueles que são dominados. Para isso, ele explica que o grupo dirigente precisa fazer concessões de “ordem econômico-corporativa”, mas que essas concessões não podem envolver o “essencial” (GRAMSCI, 2007, p.48).

Coutinho explica a teoria de Gramsci sobre as estratégias políticas, segundo a qual, nos países em que se tem uma sociedade civil bem-desenvolvida – chamados de

“Ocidentais” –, a disputa se dá a partir de uma “guerra de posições”, referente à “conquista paulatina de espaços no seio e através da sociedade civil” (COUTINHO, N., 2006, p.28). Nessa, a hegemonia deve ser conquistada antes do poder, sendo que a classe dirigente se constitui antes mesmo de se tornar dominante. Já nas sociedades “orientais”, as quais não têm uma sociedade civil forte e articulada, trava-se a “guerra de movimento”, voltada para a conquista e manutenção do Estado stricto sensu (COUTINHO, N., 2006, p.28). Assim, a partir desses conceitos, pode-se propor que os meios de comunicação se constituem-se também como espaços para a “guerra de posições”.

Por fim, a partir da interpretação gramsciana sobre a sociedade civil como parte do Estado e do mercado, não se considera a possibilidade de se ter um sistema de comunicação que paire sobre as relações sociais, políticas e econômicas, como a concepção de um quarto poder imparcial, responsável por fiscalizar e “moralizar” todas as outras instâncias da sociedade. Porém, é possível pensar em condições objetivas favoráveis ou não à emergência de forças contra-hegemônicas. Dito de outra maneira, tem-se a possibilidade de se refletir sobre como o sistema de comunicação se enraíza nas relações de dominância, a ponto de limitar a manifestação de vozes divergentes, embora nesses espaços haja também disputas de sentido em busca de hegemonia e uma autonomia relativa.

No documento allanameirellesvieira (páginas 40-44)