• Nenhum resultado encontrado

“Jovens brigam em sala de aula com estilete e professor sai sem separá-las. Briga

aconteceu na unidade escolar Professor Pires de Castro em Teresina. Professor presencia agressões, mas deixa a sala sem fazer nada”.36 Essa manchete, publicada em uma influente agência de notícias da internet, era seguida por um vídeo amador, em que a cena descrita podia ser visualizada com extrema clareza. Apesar do alarmismo – muitas vezes descomedido -, proclamado pela mídia, tal cena realmente causa certo sobressalto por duas razões principais: o grau de hostilidade exibida pelas adolescentes e a postura do professor diante da seriedade do conflito presenciado dentro da sala de aula.

Partindo do panorama apresentado, algumas considerações importantes que sustentam o presente estudo podem ser inicialmente traçadas. A primeira: a interdependência entre as pessoas fomenta inevitáveis discordâncias, sendo, portanto, a escola, como importante agente socializador, um palco privilegiado para suas ocorrências. A segunda: o professor possui um papel fundamental no que se refere ao ambiente de aceitação, de segurança e de respeito vivenciado em uma classe. A terceira: o conflito interpessoal, como oposição de necessidades, desejos ou demandas, não deve ser considerado como algo positivo ou negativo por si só. São justamente as estratégias utilizadas que transformam o conflito em algo devastador para as relações ou em um desafio construtivo, em que há, inclusive, oportunidades de desenvolvimento. Aliás, compreender o conflito interpessoal como possibilidade de aprendizagem é o pressuposto que baliza a presente pesquisa.

Como, então, lidar com os conflitos entre os alunos para que efetivamente progridam, especialmente na habilidade de considerar e coordenar outros pontos de vista? Foi justamente essa questão que nos impulsionou a explorar o fenômeno, considerando, especialmente, a realidade dos sujeitos brasileiros. Como um microcosmo dos padrões gerais de interação interpessoal, o conflito possui características distintas e significados específicos ao longo do desenvolvimento. Assumimos, assim, que há uma estrutura no modo como a pessoa pensa sobre as relações sociais e essas concepções ficam mais complexas conforme as crianças crescem, movendo-se de uma visão egocêntrica do mundo para uma perspectiva mais social ou comunitária. Entender, portanto, como

36 http://g1.globo.com/pi/piaui/noticia/2014/11/jovens-brigam-em-sala-de-aula-com-estilete-e-professor-sai-sem-

182

se dá esse percurso de transformações desde a tenra infância até o início da adolescência, a fim de fundamentar intervenções efetivas em prol do desenvolvimento de competências sociais, foi o que balizou o planejamento de uma investigação maior, comparativa (3 a 6 anos, 8 e 9 anos, 11 e 12 anos, 13 e 14 anos), na qual o estudo aqui apresentado se insere.

Especificamente, tivemos como objetivos identificar, por meio de sessões de observação da rotina escolar e de entrevistas individuais com os alunos de 11 e 12 anos, quais são os motivos mais frequentes geradores de desavenças, quais são as principais estratégias de negociação interpessoal empregadas e quais são as finalizações dos conflitos. Pretendeu-se, também, comparar se há diferenças entre as maneiras como os alunos de 11 e 12 anos julgam resolver os conflitos e os modos como eles os resolvem na prática, bem como comparar as causas, as estratégias, as finalizações e os juízos entre alunos de 8 e 9 anos com os de 11 e 12 anos.

Mantém-se, contudo, a certeza de que alguns aspectos dos conflitos observados e dos relatos das entrevistas ainda permanecem encobertos, apesar da intensa dedicação sobre os dados. As possibilidades de análise, portanto, não se esgotaram, mas há um momento em que é preciso uma interrupção para, inclusive, poder desfrutar das descobertas até aqui encontradas.

De um modo geral, encontramos que as principais causas geradoras dos conflitos entre os adolescentes dessa faixa etária são, em essência, a provocação ao outro e a reação a algum comportamento perturbador (categoria praticamente inexistente tanto na literatura nacional, como na internacional). Os conflitos vivenciados nesse período são prioritariamente verbais, intersexuais e marcados por uma busca por controle/poder sobre o outro. O aparecimento da provocação com intenção de flerte demarca a influência crescente da sexualidade nas relações intersexuais estabelecidas. Os adolescentes demonstram já serem capazes de considerar os aspectos mais subjetivos envolvidos em um conflito, embora ainda fiquem muito centrados em seus próprios interesses e necessidades, o que leva a certo grau de intolerância e impaciência ao outro.

Já, as estratégias de negociação interpessoal mais utilizadas foram as que envolvem, principalmente, a coerção como uma maneira de afirmar o poder, o controle e a satisfação a si mesmo, porém cada vez mais distantes de uma perspectiva física, impulsiva e momentânea. Características como a proximidade e a estabilidade do relacionamento interferem fortemente no comportamento diante do conflito entre os adolescentes. Em função do interesse na manutenção do relacionamento, os conflitos entre amigos mais próximos, por exemplo, são marcados pelo favorecimento de estratégias mais evoluídas de negociação, de reciprocidade e de compromisso,

183

principalmente nas relações entre as meninas. As meninas, aliás, como um todo, apresentaram menor agressividade aparente em seus conflitos e maior intimidade em relações mais restritas do que os meninos.

Com relação às finalizações do emprego dessas estratégias, encontramos que a maior parte dos episódios de conflitos são, simplesmente, abandonados ou descartados pelos envolvidos, especificamente aqueles marcados por um maior nível de coerção na relação. Considerando o grau de intimidade e de sensibilidade próprio das relações que envolvem as meninas, o abandono do conflito é mais presente nos conflitos em que os meninos estão presentes.

Ao comparar as estratégias empregadas pelos alunos, com as verbalizadas por meio de

histórias fictícias, concluímos, diferentemente do que era previsto, que eles conseguem pensar em

ações mais aprimoradas ao analisar as histórias contadas, do que conseguem efetivamente agir em situações de conflitos nas quais estão envolvidos, indicando um avanço no processo de desenvolvimento da conceituação e ressaltando, também, a força da influência de elementos de ordem contextual, relacional e emocional presentes em uma situação real de conflito.

Vale destacar, ainda, algumas distinções marcantes entre a presente pesquisa e os estudos anteriores com os alunos de 3 a 6 anos e com os alunos de 8 e 9 anos (LICCIARDI, 2010 e SILVA, 2015). De uma forma geral, percebemos que, embora a condição de busca de satisfação dos próprios interesses esteja presente em todos os grupos etários estudados – indicando, ainda, uma limitação na capacidade de coordenação e tomada de perspectiva -, claras conquistas puderam ser identificadas. A busca pelo controle do espaço físico transforma-se, com o desenvolvimento, em uma crescente motivação para o controle do espaço social (dominar por meio da imposição de uma ideia). O egocentrismo, próprio das crianças menores, decai, influenciando, diretamente, o aumento na competência de inferir a intenção da ação alheia. Há uma crescente integração de vários domínios do desenvolvimento, incluindo a regulação dos impulsos, o processamento cognitivo e linguístico, a orientação moral e as habilidades de negociação interpessoal. Os conflitos se conservam por mais tempo – especialmente entre as meninas -, e as estratégias de resolução utilizadas ficam mais variadas, embora o predomínio da coerção sobre o outro perdure. Embora haja alterações quanto ao conteúdo e à forma de manifestação – cada vez mais verbais e com mais marcas de insinuações e de humor -, a provocação, em especial, configura-se como uma das causas de maior predominância entre os menores e, também, como a de maior frequência, tanto entre os alunos de 8 e 9 anos, como entre os de 11 e 12 anos. Os relacionamentos com grupos mistos

184

(meninos e meninas) se intensificam entre os jovens, aumentando, assim, a quantidade dos conflitos interssexuais, e, também, a quantidade de conflitos entre grupos rivais, já fortemente permeados, na adolescência, pela dimensão da sexualidade. Ademais, os conflitos passam a incluir, mais frequentemente, a presença de outros participantes (“terceiros”), que interferem em um episódio já iniciado, para defender uma das partes envolvidas. Em todas as faixas etárias, a maior parte dos conflitos são, simplesmente, abandonados. Contudo, percebemos uma relação positiva entre o progresso dos alunos na tomada de perspectiva social com o avançar da idade (estratégias mais cooperativas) e a finalização de conflito com maior nível de satisfação a todos os envolvidos. As crianças de 3 a 6 anos apresentam estratégias mais evoluídas em termos de coordenação e tomada de perspectiva na ação do que no juízo, ordem essa que se inverte já nas crianças de 8 e 9 anos, confirmando a premissa da construção do conhecimento afirmado por toda a teoria piagetiana: com o avançar do desenvolvimento, a conceituação liberta-se progressivamente dos limites das ações concretas. As crescentes diferenças entre os gêneros nos relacionamentos entre pares também merecem destaque. Embora não tenha sido tão evidente nas crianças de 3 a 6 anos, no estudo com os alunos de 8 e 9 e com os de 11 e 12, os meninos apresentam significativamente maior envolvimento nos episódios de conflitos observados, sendo esses, no entanto, mais momentâneos, com agressões mais aparentes e com menor carga afetiva do que os vivenciados pelas meninas. A literatura na área é vasta e tem documentado diferenças importantes entre os gêneros no que se refere ao processo de socialização em geral. No entanto, novos estudos relacionando, especificamente, as causas, as estratégias e as finalizações dos conflitos entre pares com o gênero dos envolvidos são, ainda, necessários para maior aprofundamento sobre o tema. Por fim, embora tenham sido encontrados traços de evolução no desenvolvimento quando comparado às idades anteriores, a baixa frequência das estratégias cooperativas vislumbradas nos alunos de 11 e 12 anos não se aproxima do que a literatura que baliza a presente pesquisa promulga. De forma geral, os estudos indicam que os adolescentes favorecem a negociação e a cooperação em suas estratégias de resolução de conflito, mais do que a coerção, por exemplo, o que não foi presenciado em nossos participantes.

Todas essas considerações descritas, contudo, não são insensíveis às influências do meio social. Sabemos que são, privilegiadamente, as interações simétricas e recíprocas que encorajam a cooperação e que provêm a fundação para o desenvolvimento do respeito mútuo e da tolerância, que, por fim, levam a práticas de maior equidade e de maior satisfação mútua. Os resultados

185

encontrados reforçam, assim, a suposição de que, nos ambientes em que esses indivíduos convivem, tal possibilidade de interação não esteja suficientemente ajustada na direção da promoção dos avanços esperados nas competências sociais.

Como, então, a presente pesquisa pode colaborar para esse ajustamento? Que oportunidades podemos efetivamente proporcionar para que uma visão autocentrada do mundo mova-se para uma dimensão que cada vez mais considera e coordena o ponto de vista do outro?

Em primeiro lugar, consideramos que não há transformação de uma realidade, se não houver conhecimento sobre ela. O estudo, aqui apresentado, complementa uma descrição minuciosa sobre como se dá a convivência entre os pares na escola nas diferentes etapas do desenvolvimento. Tal conhecimento, por sua vez, ajuda a adequar as intervenções propostas a cada faixa etária, para que se configurem como situações desafiadoras que realmente favoreçam os desequilíbrios cognitivos necessários à construção de novas concepções.

O foco recai na importância da interação social para o desenvolvimento em direção à descentração do próprio ponto de vista e na importância da reflexão sobre a ação para a elaboração gradativa de conceitos que ajudem os sujeitos a exercitar o controle sobre si mesmos, planejando suas ações antes da execução.

Especificamente direcionado à faixa etária de 11 e 12 anos, propomos, essencialmente, o incremento do diálogo entre os alunos, do trabalho coletivo promotor de relações de cooperação, bem como da transversalidade entre as diversas disciplinas ministradas, tendo como fundamento a convivência como valor, e não o conflito. De forma específica, recomendamos espaços institucionais planejados e sistematizados – distantes da mera transmissão de conhecimentos -, que incentivem:

- o autoconhecimento e o conhecimento/integração grupal;

- a discussão com base em dilemas morais, em filmes, em conflitos interpessoais hipotéticos, ou em outros materiais relacionados à resolução de conflitos e à coordenação de perspectiva, bem como a reflexão acerca dos problemas de convivência, por meio das assembleias e dos círculos restaurativos.

A provocação e a reação ao comportamento perturbador, como causas mais frequentes dos conflitos encontrados nessa idade, devem permear o conteúdo das intervenções propostas, levando- se em consideração, sempre, as nuances encontradas nas vivências dos conflitos entre os meninos e as meninas e, também, entre os diferentes tipos de relacionamentos (amigos, colegas, parceiros

186

românticos). Formas de expressão verbal menos impositivas e mais argumentativas devem ser exploradas entre os envolvidos nas desavenças, assim como o estímulo à busca de possibilidades de resoluções de conflitos que não levem em consideração somente a satisfação dos próprios interesses.

O clima escolar - como percepção, pelos membros de uma escola, das qualidades de vida e de comunicação -, é outra variável relevante que tem efeito sobre o comportamento dos alunos frente aos conflitos interpessoais. Particularmente para os adolescentes, o tédio decorrente do trabalho precário com o conhecimento e o excesso de propostas individuais colaboram para o uso de estratégias pouco evoluídas em termos de coordenação e tomada de perspectiva nas situações de conflito. Já o investimento de tempo e de recursos significativos na construção coletiva das regras de convivência, na execução de sanções que levem os alunos a se responsabilizar por suas ações e na promoção de relações de confiança e de respeito entre professor e aluno, é extremamente benéfico para a promoção da consciência social e do desenvolvimento socioemocional.

Alguns méritos, limitações e sugestões para futuros estudos devem, ainda, ser mencionados. O uso combinado da técnica de observação sistemática dos comportamentos dos alunos em situação natural e da proposta de entrevista utilizando casos de conflitos hipotéticos, além de trazer grande confiabilidade aos dados encontrados, é um procedimento raro, tanto em pesquisas nacionais, como internacionais acerca do relacionamento entre pares. Uma limitação do estudo, contudo, diz respeito ao pequeno número de sujeitos que esse método permite investigar. Outra limitação refere-se ao fato da comparação entre o juízo e a ação ter sido feita a partir do total de respostas, não considerando, portanto, sujeito por sujeito. Outras análises comparativas, mais aprofundadas, poderiam ter sido feitas se tivéssemos comparado o que determinado indivíduo respondeu nos conflitos hipotéticos e qual foi seu padrão efetivo de respostas nos conflitos reais. A partir dos resultados encontrados quanto à forte influência dos tipos de relacionamento entre os pares nas estratégias utilizadas pelos adolescentes, vale a sugestão de pesquisas mais específicas com essa faixa etária, diferenciando, por exemplo, as causas, as estratégias e as finalizações a partir do grau de intimidade entre os envolvidos nos conflitos.

Por fim, a partir de todas as discussões aqui realizadas, parece razoável acreditar que, ao invés de perpetuar os hábitos indevidos do passado ou os modelos impotentes do presente, é possível aprender novas formas de pensar os conflitos interpessoais na escola. Aliás, uma vez que as pessoas estão, de fato, e cada vez mais, interdependentes e significativamente interligadas, nunca

187

é tarde para tal mudança de paradigma, afinal, trata-se de uma transformação que tem uma grande influência no desenvolvimento e na formação das nossas crianças e jovens. A reconstrução de algumas práticas nas escolas – momento após momento, dia após dia, por todos os envolvidos -, oferece esperança de que o futuro será caracterizado por uma melhora na experiência de ser verdadeiramente humano. Para todos.