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Considerações finais: repertório e violência

5 RUAS: PROTESTOS EXPRESSIVOS NO MUNDO

5.11 Considerações finais: repertório e violência

A literatura internacional descreve o itinerário dos modelos de intervenção policial nas manifestações nas ruas a partir da segunda metade do século XX da seguinte forma: na década de 1960, foi usada a técnica da força intensificada; substituída a partir de 1980 nos EUA e na

Europa pelo método de gestão negociada; seguindo-se a fase atual, a partir do ano 2000, com retorno a formas mais duras de monitoramento, centrado na incapacidade estratégica. Tais padrões de atuação são dominantes e não de aplicação exclusiva, porque podem coexistir em um mesmo momento, inclusive em único evento e país.

Conforme Blay (2013), o modelo de força intensificada trata a liberdade de reunião, manifestação e de expressão de modo irrelevante, sendo comum a proibição do ato, com reduzida tolerância e comunicação com os manifestantes. O recurso a prisões é frequente e sistemático mesmo sem qualquer infração, com violência destinada, às vezes, a excluir aqueles considerados agitadores não desejáveis. Assim, o uso da força tem nível alto, sendo a forma habitual de controle. A vigilância é moderada, com emprego frequente de informantes e agentes policiais infiltrados, coletando-se informação normalmente de caráter pessoal, usada para desacreditar pessoas ou grupos e com compartilhamento entre autoridades limitado. O controle do espaço é realizado de forma localizada e reativa, no aguardo do comportamento dos manifestantes.

No padrão de gestão negociada um dos principais objetivos da polícia, juntamente com a proteção das pessoas e bens, é precisamente salvaguardar o exercício da liberdade de reunião, sendo alto o grau de contemporização com as alterações no cotidiano urbano provocadas por manifestações de rua. A comunicação com manifestantes é elevada e necessária para a negociação. Detenções e uso da força constituem o último recurso, unicamente quando a lei é violada, tolerando-se a desobediência civil pacífica. Nesse modelo, são escassas a vigilância e a troca de informações entre autoridades, com dados colhidos diretamente dos manifestantes. O controle do espaço é localizado e proativo, pois acordado entre polícia e manifestantes, com uso de cordões para evitar desvios para zonas não incluídas. Como visto, no nível de proteção internacional dos direitos humanos, essa é a diretriz proposta pela ONU, como a mais condizente com a efetivação da liberdade de reunião pacífica (UNITED NATIONS, 2013), sendo referido ainda na jurisprudência da Corte Constitucional alemã como o mais compatível com os direitos fundamentais.

Porém, após a Batalha de Seattle, encontra-se muita em voga a técnica da incapacitação estratégica, utilizando-se diferentes formas de atuação policial conforme tipos de manifestação. Assim, nos protestos convencionais, ainda permanece a gestão negociada; em manifestações transgressivas, táticas mais duras de manutenção da ordem e de redução de riscos são aplicadas de forma prioritária e seletiva, em detrimento dos direitos dos manifestantes. Nessa técnica, a comunicação também é seletiva e unidirecional, com informação aos manifestantes sobre atividades permitidas em protestos convencionais,

diferentemente de atos transgressores, que rechaça a comunicação instrutiva. O uso de prisão também é seletivo, além de proativo, dirigido a neutralizar manifestantes transgressores às vezes de forma preventiva, antes da prática de delitos ou sem o propósito de investigação. Há ainda seletividade no uso da força, com emprego de armas não letais para anular aqueles considerados problemáticos ou manter manifestantes fora de zonas protegidas. A vigilância é intensiva e em tempo real, com câmeras de vigilância e filmagens para decisões no curso do ato, para instrução criminal e para compartilhamento com a imprensa no intuito de reforçar o discurso policial. No modelo, a troca de informação é expressiva entre autoridades e o controle do espaço seletivo, intenso e proativo, pois a polícia decide unilateralmente o lugar do protesto, que é dividido em zonas de exclusão, sujeitas a credenciamento e vedação a a manifestantes; em zonas de libertade de expressão, destinadas ao ato público e distantes do alvo do protesto; e em zonas intermediárias com acesso não permitido, cuja ultrapassagem é considerada transgressão automática (BLAY, 2013; FILEULLE et al., 2015).

Esse último modelo tem acompanhado o incremento do uso coletivo das ruas para reivindicações. Em 2013, a Universidade de Columbia dos Estados Unidos e a Fundação Friedrich-Ebert-Stiftung publicaram um estudo sobre 843 eventos de protesto ocorridos entre janeiro de 2006 e julho de 2013 em 84 países, abrangendo mais de 90% da população mundial e mapeando as principais reivindicações, causas, métodos utilizados, alvos e resultado dos protestos, usando 500 fontes de notícias locais e internacionais disponíveis na internet (ORTIZ et al., 2013).

A pesquisa concluiu que há uma tendência de aumento dos protestos e apontou como principal causa um conjunto de demandas contra a injustiça econômica, envolvendo serviços públicos e pensões; criação de empregos e melhores condições de trabalho; justiça fiscal; desigualdade; baixo padrão de vida; reforma agrária; e preços de alimentos, energia e habitação, além de queixas contra a representação política formal em favor de uma democracia efetiva, não dominada por elites e interesses privados. Em outra constatação, a pesquisa registrou que além de passeatas e comícios as manifestações incluíram atos de desobediência civil e outras ações diretas, a exemplo de bloqueio de estradas, ocupações de ruas e praças para elevar a conscientização das demandas, revelando como alvo da maioria das manifestações o governo do país onde elas ocorrem, além de denunciar o sistema político e econômico internacional, a influência das grandes empresas e o privilégio das elites econômicas.

Acerca desse estudo, embora Burke (2014), uma das autoras, registre que as demandas de justiça econômica que dominaram os protestos mundiais não tenham sido formuladas em

linguagem jurídica, chegando mesmo a duvidar do caráter transformador dos direitos humanos, é fato que a pauta das reivindicações está estreitamente relacionado às gerações ou dimensões desses direitos (direitos civis, políticos, ambientais, sociais, econômicos, trabalhistas e culturais), sobretudo diante da natureza indivisível e interdependente e da presença pródiga em declaração em tratados internacionais com vasta adesão dos países.

Além disso, é evidente a vinculação entre a expansão internacional do poder econômico e financeiro desregulado e a redução dos direitos sociais, com reformas em várias Constituições dirigentes para diminuir a intervenção estatal, o Welfare State e o nível do dever de proteção (FILEULLE et. al., 2015). Ainda nesse aspecto, e mais importante, o uso pacífico e sem armas das ruas, incluindo aí as praças, para reivindicação coincide com o exercício de um direito, seja na dimensão interna de direito fundamental, seja na dimensão internacional de direitos humanos, o direito à liberdade de reunião.

Sob tal perspectiva, a dinâmica dos protestos nas ruas, como visto, indica uma repetição do repertório de ação coletiva e, portanto, no tempo, lugar e modo de efetividade da liberdade de assembleia, que realmente tem adotado um caráter instrumental para exercício da liberdade de expressão, do direito de petição, da liberdade de associação e da liberdade religiosa. Cacerolazos argentinos viraram uma revolução nas ruas da isolada Islândia. Na Alemanha, a atuação de piqueteros em cortes de ruta bloqueavam ruas contra a corrida armamentista e a energia nuclear já na década de 70 e 80. As acampadas espanholas foram durante um tempo práticas comuns na década de 60, em campi e parques dos Estados Unidos. O maio francês também ocorreu no México, com mais violência. A pauta feminista das suffragettes, até revolucionária à época, usou intensamente as ruas já no século XIX, invocando atos simbólicos que lembram a tática alemã Schwarzer Bloc, incluindo o uso de papelão para se proteger. Os precarizados portugueses e espanhóis pertencem à mesma península, que, afinal, é a mesma do Ocuppy Wall Street e da Primavera Árabe, esta que é particularizada e potencializado pela falta até de democracia representativa nos países. A performance da periferia inglesa nas ruas é similar à francesa, ambas evocando, novamente, a década de 60. Os Indignados espanhóis repetiram o grito dos piqueteros argentinos uma década depois: "Que se vayan todos!". Também anterior, a reivindicação coletiva e pública das avós e mães da Plaza de Mayo em relação às mães mexicanas do Massacre de Iguala: verdade, memória e responsabilização estatal.

Na atualidade, o uso das TICs nos protestos também é uma constante, desde a convocação, a preparação e a repercussão, antes, durante e após os eventos, sendo sintomático o bloqueio no Egito da internet durante a Primavera Árabe e o anúncio do primeiro-ministro

inglês acerca de estudos no mesmo sentido, após os Tumultos de 2011, revelando na a importância do espaço público híbrido.

Os episódios históricos atestam ainda que o alto número de participantes não coincide necessariamente com manifestações tumultuárias mesmo em megaeventos. Assim, a Marcha sobre Washington em 1963, a despeito da expectativa contrária, as manifestações da Geração à rasca em Portugal em 2011 e a Marcha Republicana em Paris em 2015 podem ser apontados como exemplo de uso pacífico das ruas por multidões, a indicar que não raro as manifestações se desvirtua em violência pela intervenção do Estado, cujas autoridades adotam a decisão política de negar efetividade à liberdade de reunião manifestações de rua lhe são contrárias, dada a capacidade de auxiliarem intensamente a remoção de governantes.

Nesse ponto, o elenco de fatos demonstra outra faceta da efetividade do direito de reunião: a presença da violência. Sintomática a lembrança de determinadas manifestações de rua como batalhas ou massacres, mesmo em países democráticos, a remeter claramente a uma circunstância de guerra, onde a morte é uma constante até hoje, contrastando com dever jurídico estatal de assegurar a liberdade pacífica. Desse modo, os fatos demonstram uma dimensão que é ausente do discurso jurídico em torno dos textos normativos, pois se é certo que a liberdade de reunião está relacionada ao direito de petição, de livre expressão, de liberdade religiosa e de associação, além da vinculação com a autonomia individual, como é comum ser lembrado, a realidade do exercício do direito demonstra - com muito mais relevância - o atrelamento ao direito à integridade física e mesmo à vida, especialmente dos manifestantes, inegavelmente vítimas em número maior de baixas.