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Da Batalha de Seattle à morte em Gênova, Itália

5 RUAS: PROTESTOS EXPRESSIVOS NO MUNDO

5.6 Da Batalha de Seattle à morte em Gênova, Itália

O período dos protestos que vai de Seattle, por ocasião da reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) em 1999, até Gênova, onde realizado em 2011 um encontro da cúpula do G8, grupo dos países mais ricos do mundo juntamente com a Rússia, pode ser identificado como um ciclo, marcado por manifestações de rua e eventos contracúpulas, em um esquema que pode ser assim resumido: reunião de um organismo internacional protegida por forte aparato de segurança e projetado mundialmente de modo espetacular pelos meios de comunicação; encontro na mesma cidade de manifestantes para realizar protestos e fóruns paralelos de caráter igualmente espetacular; por fim, o controle do espaço público por autoridades isolando a reunião oficial desses protestos.

Em Seattle, a presença de quase cem mil pessoas de diferentes procedências e grupos resultou na realização de manifestações com a participação de sindicatos, ambientalistas, feministas, organizações estudantis e anarquistas, além de uma grande variedade de grupos de jovens, embora nem todos tenham participado de ações e confrontos nas ruas. É que embora seja reconhecido nesse ciclo um “movimento de movimentos”, é recorrente a distinção entre a posição altermundialista, sob o lema “outro mundo é possível”, que aceita a globalização como inevitável e defende sua regulamentação aproveitando o diálogo dos fóruns sociais, e uma corrente genuinamente antiglobalização, que nega o caráter inevitável desse processo e propõe barrá-lo ou transformá-lo com protestos nas ruas (AGUITON, 2002; BRINGEL et al., 2010; GIOVANNI, 2008).

Nesse contexto, um dos primeiros protestos foi uma marcha de aproximadamente duas mil pessoas no dia 29 de novembro, na maioria membros de sindicatos. Já as ações de bloqueio foram programadas para o dia 30, especialmente pela Direct Action Network (DAN), uma junção horizontal de diversas organizações formada com o objetivo de impedir por meio da ação direta não violenta o encontro, cuja abertura estava programada para esse mesmo dia. A data também coincidiu com o Dia da Ação Global, convocada pela Ação Global dos Povos – AGP, grupo de ajuda mútua surgido em fevereiro de 1998 que promove campanhas e ações diretas questionando a globalização. No planejamento dos bloqueios, grupos foram divididos para tarefas logísticas (atendimento médico, alimentação, arte e propaganda, treinamento, etc.) e para organizar as manifestações com uso de mapas, dividindo a cidade em zonas, calculando riscos e decidindo trajetos. Não havia previsão de barricadas nem revide à ação da polícia (GIOVANNI, 2008; ANDREOTI, 2009).

Assim, no dia 30 de novembro ou 30-N, uma dezena de marchas foi realizada pela manhã, com a maior concentração reunindo aproximadamente 20 mil pessoas. Grupos de manifestantes, em grande parte sem nenhum tipo de proteção, bloquearam cruzamentos e calçadas de acesso ao centro de convenções, além de hotéis próximos. A polícia interveio com gás lacrimogêneo, spray de pimenta, jatos d´água e balas de borracha. Foi decretado estado de emergência e toque de recolher para a região central da cidade no período noturno e a polícia atuou para expulsar da área manifestantes, que resistiram até tarde da noite. No dia seguinte, novas manifestações de rua com confrontos chegando à madrugada. No dia 3, muitos manifestantes dirigiram os protestos contra a prisão de cerca de 600 pessoas. A Batalha de Seattle, como foi chamado o episódio, recebeu uma significativa cobertura jornalística e fez aumentar o aparato policial especialmente contra a tática black block, responsável pelo fogo em latas de lixo, pelas barricadas e pela destruição de vitrines (GIOVANNI, 2008; ANDREOTI, 2009).

Após Seattle, várias contracúpulas foram promovidas pela AGP. Assim, na reunião do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) em Washington, em abril de 2000, conhecido como A-16, método de nomeação da AGP cuja letra indica o mês e o número indica o dia, as ações ficaram restritas à cidade. Novamente a atuação black block chamou atenção pelo aumento de adeptos e pelo objetivo de afastar a polícia de manifestantes não violentos. Em setembro de 2000, em Praga, o Dia de Ação Global S-26 foi escolhido para coincidir com uma nova reunião desses dois organismos internacionais, quando cerca de 10 mil pessoas participaram de atos públicos com o objetivo impedir a realização do encontro, encerrado um dia antes do previsto. Nessa ocasião, os manifestantes se dividiram em blocos

de cores: amarela para atos simbólicos; rosa para a marcha em torno do centro de conferências; e o azul para os mais radicais, com atuação black bloc e objetivo de ter acesso à conferência, atravessando linhas policiais. Outro Dia de Ação Global aconteceu em abril de 2001, na cidade de Quebec, na reunião para discutir o Acordo de Livre-Comércio das Américas (ALCA), alvo de cerca de 30 mil pessoas nas ruas divididos novamente por zonas de atuação e com tentativa de se chegar ao local da cúpula, resultando em confronto com a polícia (ANDREOTI, 2009).

Em Gênova em julho de 2001, antes mesmo da reunião do G8 programada para o dia 19, a ação policial já havia sido iniciada, com a cidade sendo dividida por zonas de cores com níveis de restrição de circulação, fechamento de aeroportos e blitzes policiais. Ainda assim, cerca de 200 mil ativistas chegaram à cidade, a maior participação no período. Na ocasião, o Fórum Social de Gênova (FSG), inspirado no Fórum Social Mundial (FSM) de Porto Alegre, estava sendo realizado e serviu de espaço de coordenação, comunicação, apoio logístico e legal, além de programar debates e agendas políticas, estando presentes cerca 700 organizações. O FSG foi encarregado de um centro de convergência, ponto de encontro amplo idealizado em Seattle, onde participantes recebiam informações, encontravam alimentação e alojamento, além de preparar e avaliar a ação direta (AGUITON, 2002; AMADO, 2001; GIOVANI, 2007).

A fim harmonizar a pluralidade dos grupos, foram organizadas novamente manifestações simultâneas distintas: cada uma dirigida a um ponto diferente no limite da zona vermelha, área de maior proteção policial, com o propósito de acolher os diferentes grupos e suas agendas. Porém, estava programado um dia de assédio à zona vermelha segundo a lógica de não considerar os manifestantes excluídos, mas, sim, os chefes de Estado cercados. O Bloco Desobediente, adepto da desobediência civil, anunciou publicamente a decisão de sem usar violência ofensiva não respeitar o limite da zona vermelha, protegida por 20 mil agentes policiais, preparando-se para resistir à ação policial com papelão, espuma e borracha de uso doméstico (GIOVANNI, 2008).

Novamente, a tática black bloc foi utilizada por manifestantes, atraindo a maior atenção da imprensa, sendo posteriormente verificada a infiltração policial e a presença de grupos neofascistas. Na oportunidade, alguns grupos chegaram a propor a exclusão dos adeptos da tática dos locais de ação não violenta e denúncia à polícia, pois usados como justificativa para a atuação policial contra o conjunto das manifestações. Organizações filiadas ao FSG, por sua vez, formaram grupos de segurança para mantê-los longe de suas marchas.

Já a formação de marchas por afinidades políticas e graus de confrontação a fim de acomodar formas diversas de contestação, potencializando umas às outras e tentando evitar a violência policial generalizada, não impediu o abuso policial nas ruas que culminou na invasão noturna da Escola Diaz, onde funcionavam o escritório do FSG e coletivos de comunicação, apoio e alojamentos. Também não impediu a morte de um manifestante, a primeira do período iniciado em Seattle, quando, após scendere in piazza, como se denomina em italiano o ato de ir à praça protestar, foi atingido por dois tiros, além de atropelado pela viatura da polícia, morrendo no local que hoje é batizado Piazza Carlo Giuliani. A praça, aliás, onde é realizada uma manifestação anual em sua memória e uma contramanifestação organizada por policiais.