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Espanha: regulamentação, Corte Constitucional e ordem pública

2 TEXTOS: DIREITO DE REUNIÃO NO DIREITO ESTRANGEIRO

2.2 Espanha: regulamentação, Corte Constitucional e ordem pública

Igualmente à ordem jurídica portuguesa, na Espanha há regulamentação extensa do direito constitucional de reunião por meio da Lei Orgânica 9/83, que por disposição expressa detém caráter geral em relação a qualquer outra.

Na Constituição de 1978 (PIÑEIRO et al., 2010), o parágrafo primeiro do artigo 21 está assim redigido: “É reconhecido o direito de reunião pacífica e sem armas. O exercício desse direito não necessitará de autorização prévia”. Em seguida, o parágrafo segundo complementa e enuncia: “No caso de reuniões em locais de trânsito público e de manifestações será dada comunicação prévia à autoridade, que pode proibi-las apenas quando existam razões fundadas de perturbação da ordem pública com perigo para pessoas ou bens”. A redação do preceito tem influência das Constituições alemã e italiana e engloba reuniões ou meetings de caráter estático e manifestações de natureza dinâmica postas em marcha de várias formas (a pé, de veículos, com ou sem oradores) e que envolvem maior perigo para ordem pública (MARÍN, 1997, p. 270; MARQUEZ et al., 1986, p. 200).

De início, a lei delimita o âmbito de incidência considerando reunião o concurso concertado e temporário de mais de 20 pessoas com finalidade específica, excluindo da regulamentação expressamente encontros caseiros; em lugares públicos ou privados por motivo familiar ou de amizade; realizados por pessoas jurídicas em local fechado conforme fins próprios fins; entre profissionais e clientes em local fechado para objetivos profissionais; ou, conforme legislação específica, celebrados em estabelecimentos militares (MARIN, 1997; MARQUEZ et al., 1986; PIÑEIRO et al., 2010).

Reafirmando o texto constitucional, o diploma legislativo estabelece que nenhuma reunião dependerá de autorização prévia e impõe à autoridade o dever de protegê-la. Contudo, a lei, reforçando o caráter político, restringe a promoção ou convocação às pessoas em pleno

gozo de direitos políticos, que assumem a responsabilidade subsidiária pelo evento, sem prejuízo do direito de regresso, da responsabilidade individual de participantes e da isenção de responsabilidade quando demonstrada a adoção de medidas razoáveis para evitar danos. Noutro aspecto, a lei espanhola, da qual não há registro de declaração de inconstitucionalidade, autoriza, após prévia comunicação aos participantes, a suspensão e a dissolução quando considerada ilegal pela lei penal; quando ocorrer distúrbios públicos, colocando em risco pessoas ou bens; ou quando em uso uniformes paramilitares.

Em capítulo próprio, trata a lei da reunião em locais de trânsito público e de manifestação. Nessa hipótese, há necessidade de comunicação escrita com antecedência mínima de 10 e máxima de 30 dias, salvo razão que justifique a urgência, quando o mínimo é de 24 horas. Em qualquer caso, a comunicação deve conter os dados necessários à identificação do evento e medidas de segurança previstas ou solicitadas pelo organizador. Se a autoridade considerar que há fundada razão de perturbação da ordem pública com perigo para pessoas ou bens pode proibir ou propor alterações. Nesse caso, a decisão administrativa deve ser motivada, dando-se ciência ao interessado para que discordando possa impugnar judicialmente em 48 horas.

A disciplina da Lei Orgânica 9/83 é complementada pela Lei Orgânica 1/92, que trata da proteção à segurança cidadã. Nesta, há previsão de sanções administrativas escalonadas para organizadores e participantes quando houver descumprimento das regras previstas na Lei Orgânica 9/83, bem como de medidas policiais para manter ou restabelecer a ordem pública (AMNISTÍA INTERNACIONAL, 2014, p. 17-19). Além disso, a legislação eleitoral espanhola proíbe atos públicos de campanha eleitoral após o seu término. Daí a vedação para celebrar reuniões com fins eleitorais no dia anterior, chamado de dia da reflexão, e no próprio dia das eleições, o que é objeto de controle das Juntas Eleitorais. Ademais, leis específicas proíbem membros das Forças Armadas, do Poder Judiciário e do Ministério Público, enquanto tais, de participarem de reuniões ou manifestações públicas, sendo permitido assistir na condição de cidadãos (MARIN, 1997, p. 273-274).

Na doutrina espanhola é corrente identificar os sujeitos, o objeto, o conteúdo e os limites do direito constitucional de reunião. Assim, Muro (1991) estende o direito aos estrangeiros, incluindo a dispensa de autorização prévia decidida pelo Tribunal máximo espanhol na Sentença do Tribunal Constitucional (STC) 115/1987, que declarou tal exigência inconstitucional. No tocante ao objeto, menciona que da regulamentação da Lei Orgânica 9/1983 faz surgir uma concepção de reunião vinculada à realização pública, transcendente do círculo privado das pessoas, e que haja vontade de reunir-se, o que afasta encontros casuais ou

momentâneos. Para Muro, o conteúdo do direito de assembleia está presente na plena realização sem embaraços ou obstáculos da possibilidade de agrupar-se de comum acordo para concretizar uma finalidade determinada., elencando como limites ou requisitos ser a reunião pacífica e sem armas, comunicada previamente e sem conflito com outros direitos.

Para Viadel (1994), como direito individual exercido coletivamente, é considerado pelos liberais exaltados entre os direitos naturais, absolutos e não legisláveis, e relacionado aos períodos mais progressistas do constitucionalismo espanhol, pelo suporte ao exercício de outros direitos, entre os quais o de associação, de expressão e de informação, com acentuada projeção e repercussão social diante do poder do Estado e do caráter plural da sociedade. Para ele, a inclusão de um conceito amplo da liberdade de reunião nos textos impõe uma interpretação favor libertatis e uma proteção judicial rápida que impeça a sua ineficácia na prática, como o amparo constitucional dirigido contra a violação dos artigos 14 a 29 da Constituição espanhola pelo poder público e por particulares (LUÑO, 2013).

Nesse contexto, Linera (2013), mencionando diversos precedentes do TEDH e do Tribunal Constitucional espanhol, considera protegidos constitucionalmente os escraches, reuniões realizadas durante a crise imobiliária na Espanha pela Plataforma de Afetados por la Hipoteca (PAR) em frente a residências de dirigentes de partido político, bem com em frente a sedes, em protesto contra a posição contrária a propostas de aluguel social, suspensão de despejos e dação em pagamento. Entende que tais eventos, per si, não resultam em alteração da ordem pública e tem natureza política, porque dirigidos contra o despejo de milhares de pessoas e contra a atuação de autoridades, sujeitas à fiscalização e crítica ampla, dando publicidade à situação.

Em matéria eleitoral, o Tribunal Constitucional desenvolveu jurisprudência que autoriza a Junta Eleitoral a negar o exercício do direito de reunião quando presente a finalidade de captação de sufrágios observando o principio favor libertatis, o que implica exigir fundadas e imperativas razões de caráter eleitoral, sendo insuficiente a mera possibilidade de atingir o eleitorado (NETZAI, 2013, p. 104).

Há ainda uma farta jurisprudência do Tribunal Constitucional com uma variada perspectiva do direito constitucional de reunião, entre as quais: conteúdo e significado (STC 284/2005), elementos essenciais (STC 85/1988), requisitos para o exercício (STC 55/1988), local da manifestação e exercício por policiais (STC 91/83), descumprimento do prazo de comunicação prévia (STC 36/1982), vinculação de particulares (STC 18/81), motivação do ato administrativo que trata do direito fundamental (STC 37/2009), princípio da proporcionalidade (STC 66/1995), proibição de exercício (STC 90/2006), direito de greve

(STC 137/1997) e exercício no interior das prisões (STC 71/2008) (MARÍN, 1997; PIÑEIRO et al., 2010; VIADEL, 1994).

Um caso emblemático, que merece ser detalhado, diz respeito a STC 59/1990 (ESPAÑA, 1990), quando a Corte, densificando o conceito de ordem pública como perigo para pessoas e bens, revogou condenação criminal pela participação em um ato contra o desemprego organizado por uma associação de trabalhadores em 1984 (BRITO, 2014). Apesar do caráter pacífico, com suspensão do bloqueio da rodovia para motoristas que alegavam urgência e desocupação após solicitação policial, manifestantes foram condenados pela prática do art. 246 do Código Penal espanhol, que tipifica a atuação em grupo com o fim de perturbar a ordem e a paz públicas obstruindo vias.

O Tribunal Constitucional afirmou inicialmente que a disposição havia sido introduzida em 1971 com tipo penal aberto de terrorismo nos crimes contra a segurança interna do Estado, exigindo uma valoração do conceito de ordem e paz públicas conforme a Constituição democrática de 1978, diverso de um sistema político autoritário não mais vigente. Neste sentido, invocando precedentes, considerou que os conceitos legais haviam adquirido uma nova dimensão, pois a liberdade de reunião e de manifestação fundamentam a ordem política e a paz social e o princípio geral da liberdade exige que as limitações não ofendam o âmbito de proteção constitucional.

Citando o caso Plattform Ärzte fur das Leben x Áustria, declarou, então, que o art. 21 da Constituição espanhola estabelece os dois limites ou requisitos da manifestação em via pública: a reunião deve ser pacífica e com prévio anúncio à autoridade. O primeiro foi considerado insuperável porque a reunião constitucionalmente protegida é aquela não violenta e sem armas, caso contrário, configurada juntamente com a violação da ordem pública razão para a proibição. Nesse ponto, qualquer manifestação exercida com violência física ou violência moral intimidatória excede, para a Corte, os limites do direito e não goza de proteção constitucional, estando sujeita a sanções. Já o dever de comunicação prévia à autoridade é apenas exigível constitucionalmente em lugares de trânsito público e não se confunde com autorização, além de servir ao planejamento do exercício livre pelos manifestantes em conjunto com a proteção dos direitos e bens de terceiros. Nessa tarefa, a autoridade pode modificar as condições de exercício e mesmo vedar a realização, observando a proporcionalidade, a natureza extrema de tal medida e a presença do único fundamento para sacrifício do direito de reunião: fundadas razões para divisar perturbação da ordem pública com perigo para pessoas ou bens, sem prejuízo da revisão judicial.

Em seguida, o Tribunal analisou o episódio na perspectiva de paz pública, tida por violada com a ocupação da estrada e o bloqueio ao pleno exercício da livre circulação. Declarou, porém, inexistir a violação, embora tenha reconhecido a possibilidade em tese de restrições quando necessárias a uma sociedade democrática e com o fim de proteger os direitos e liberdades de outrem, invocando o artigo 11 da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Nesse ponto, o Tribunal interpretou que a proteção exclusiva da circulação era insuficiente para negar o livre exercício da reunião pacífica e que a restrição havida no caso não alcançava o nível de intensidade bastante para o sacrifício de direito previsto no artigo 21 da Constituição. Para a decisão, a assembleia em vias de trânsito importa naturalmente limitação à liberdade de circulação de não manifestantes, exigindo-se algo mais para a proibição da reunião: fundadas razões de ocorrência de perturbação da ordem pública com perigo para pessoas ou bens, inexistentes na hipótese, pois o bloqueio foi realizado de forma segura, não era total e absoluto e não houve notícia de resistência à passagem dos usuários da via, que permaneceram passivos, presumindo a aceitação voluntária.