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Considerações sobre a conservação do centro histórico Segundo Carrión,

1 De cidade a centralidade: o centro histórico na dinâmica urbana

1.2 Processos reais e normativos: desafios ao uso habitacional

1.2.1 Considerações sobre a conservação do centro histórico Segundo Carrión,

Se partirmos da consideração de que os cidadãos têm direito à cidade, será possível construir uma aproximação universal deste direito a uma parte da cidade – o centro histórico – pelas conotações particulares que tem. Da construção deste direito

universal ao centro histórico, vem um dever frente a ele. Este é o exercício da

cidadania e seu sentido (CARRIÓN. 2001, p. 36)

Ao se referir ao centro histórico como um espaço público, o autor adverte que as considerações a respeito da sua conservação devem partir da compreensão de que os cidadãos têm o direito à preservação do seu bem patrimonial. Tal afirmação evidencia a incidência, sobre as edificações particulares do centro histórico, das demandas individuais de uso privado da edificação, e coletivas, de ter preservado o patrimônio edificado.

Dentro do conjunto urbano caracterizado como patrimônio coletivo, muitos dos imóveis que o compõem são de propriedade privada. Em termos gerais, caberia aos proprietários a conservação de seus bens. No entanto, ao considerar o significado coletivo desses centros históricos, o poder público, como representante dos interesses coletivos e guardião dos bens patrimoniais que garantem a memória social e o registro da história da cidade, em certa medida, poderia ser considerado um agente corresponsável pela sua manutenção.

No âmbito nacional, os sítios históricos passaram a ter o seu valor institucionalmente reconhecido a partir da primeira metade do século XX, quando começaram a ser inventariados, catalogados e protegidos por leis específicas. Desde 1970, em algumas cidades brasileiras, vêm-se sistematizando processos para a salvaguarda desses sítios, os quais, ainda hoje, se apresentam insuficientes para cessar ou reverter o processo de degradação.

Até o presente momento, os governos municipais, estaduais e federal não têm demonstrado possuir os meios técnicos e financeiros que lhes permitam assumir o papel de agente responsável e financiador da manutenção dos imóveis privados que compõem tal conjunto, o que torna essencial a participação de agentes privados na promoção da salvaguarda do patrimônio coletivo. A evasão habitacional e a desvalorização do centro como lugar de moradia por parte de uma população de maior faixa de renda representam, portanto, a perda de importantes “parceiros” no processo de salvaguarda do bem patrimonial.

Segundo Pickard e Thyse (apud VIEIRA, 2008), a fragilidade institucional, relacionada à instabilidade das estruturas de gestão urbana e ao desafio de articular os diversos níveis do poder público, somada à demanda crescente de instrumentos atualizados de proteção patrimonial e à inadequação de ferramentas de planejamento, representam uma dificuldade para a gestão do patrimônio edificado presente nos sítios históricos. Além disso, ao autores ressaltam “uma forte tendência ao financiamento através de parcerias público- privadas para o estabelecimento de programas bastante seletivos e que buscam o retorno rápido mais do que uma abordagem holística” no que se refere aos investimentos dispensados aos centros históricos (PICKARD e THYSE apud VIEIRA, 2008, p. 28).

Na busca de retorno financeiro, muitos dos programas destinados aos centros históricos tendem, ora a torná-los atraentes para empresas e iniciativas privadas mediante incentivos financeiros, ora a recuperá-los, preservando a “história, tradição e memória coletiva higienizada”, cultivando a nostalgia por meio do restauro de edificações para o turismo (HARVEY, 2006, p. 181).

Segundo Moreira,

O turismo, para grande parte das cidades do mundo, transformou-se em importante fonte de renda. Isso explica o fato de o patrimônio histórico passar a ocupar uma importante função econômica, de onde se desdobram inúmeras questões de caráter urbano, filosófico e político (MOREIRA, 2004, p. 58).

Mesmo quando apresentam sinais de degradação, os sítios históricos são porções da cidade que mantiveram sua materialidade relativamente preservada ao longo do tempo, testemunhando (i) mudanças na sociedade, (ii) alterações dos hábitos domésticos e dos arranjos produtivos e (iii) o surgimento de novas tecnologias e de normas construtivas.

A materialidade preservada, que faz com que os sítios históricos tenham seu valor reconhecido como bem patrimonial, certamente está entre os interesses turísticos que dão valor econômico ao patrimônio histórico. Paradoxalmente, em algumas cidades brasileiras, apesar do reconhecimento do centro histórico como bem patrimonial, têm sido promovidas intervenções urbanas descontextualizadas que acarretam uma progressiva diminuição da qualidade urbana, dos espaços públicos e das edificações dessas áreas, caracterizando situações em que nem mesmo a materialidade - objeto principal das políticas de preservação - é levada em consideração. Algumas dessas intervenções parecem, também, desconsiderar a explícita vinculação entre a materialidade e as dinâmicas social, econômica e funcional,

O discurso preservacionista [...] não parecia comprometido com os modos de vida na cidade vinculados às formas urbanas que se deseja preservar. Parecia apenas restrito à conservação de “cascas” de tijolo, argamassa e ferro fundido, às vezes de forma demasiadamente rígida, num compromisso com a materialidade da cidade (MOREIRA, 2004, p. 14).

Moreira destaca que “os arquitetos e urbanistas estiveram demasiadamente concentrados na perda de materialidade” no que se refere à degradação e à descaracterização do estoque edificado e dos espaços públicos, enquanto a dinâmica urbana, “os modos de vida” e as possibilidades que eles representam para a vida urbana não parecem incluídos na ideia de “patrimônio histórico”. Ressalta, ainda, que a preocupação preponderante com a materialidade da cidade pode motivar a criação de estratégias preservacionistas, em que “a preservação da materialidade da cidade é seguida da destruição de modos de vida a ela vinculados”.

A idéia de preservação, como conhecemos, é, a cada dia, mais vinculada a uma lógica de tábula rasa: para preservar o que se considera patrimônio histórico, dentro do modelo econômico capitalista, muitas vezes é necessário suprimir usos e população e inserir novos usos e público economicamente mais valorizados (MOREIRA, 2004, p. 61).

A autora adverte que tal postura “é um caso de tábula rasa operacionalizando a preservação da forma urbana”, que arrasa ou desconsidera uma preexistência social para instalar a novidade.

Com isso desvinculam-se modo de vida e forma urbana: o chamado patrimônio histórico é esvaziado de sua urbanidade e reapropriado por atividades como shopping centers, lojas, centros culturais, museus e habitação de melhor padrão econômico (op. cit.).

Intervenções pautadas no “rápido retorno financeiro das parcerias público-privadas” citadas por Pickard e Thyse, ou na higienização da história, tradição e memória coletiva, a que se refere Harvey, que desconsiderem a preexistência social estariam em desacordo com um dos princípios da Declaração de Amsterdam, ao indicar que “a recuperação de áreas urbanas degradadas deve ser realizada sem modificações substanciais da composição social dos residentes nas áreas reabilitadas”.

A necessidade de se arregimentarem parceiros e de se garantir o retorno financeiro dos investimentos promovidos por esses tem norteado muitas das intervenções nos centros históricos brasileiros. Nesses casos, são priorizadas as atividades produtivas e aquelas voltadas ao turismo e ao lazer. O uso habitacional e a preexistência social, portanto, não foram a prioridade em algumas intervenções recentes nos centros históricos.

Paralelamente, as políticas habitacionais de maior abrangência, salvo algumas exceções, estão voltadas primordialmente para a construção de novas moradias em detrimento do estoque edificado parcialmente ocioso e passível de um melhor aproveitamento habitacional, conforme aborda o tópico seguinte.