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Evasão sazonal, suburbanização e fixação no centro

4 Construção e desconstrução da habitabilidade no centro histórico do Recife

4.2 O uso habitacional e a evolução urbana da Boa Vista

4.2.3 Evasão sazonal, suburbanização e fixação no centro

Seguindo os preceitos europeus do bem-morar, que seriam fortalecidos com as políticas sanitaristas no século seguinte, já no século XIX os recifenses buscavam o campo, os arrabaldes e os banhos de rio como refúgio para os males da “cidade grande”.

Diz Evaldo Cabral de Mello (Apud PARAÍSO, 2004):

O movimento tem inicialmente um caráter sazonal: trata-se de abandonar a vila nos meses de verão para fugir às doenças ou para beneficiar-se das virtudes curativas e dos deleites edênicos dos banhos de rio. [...] Depois, veio a democratização do subúrbio. [...] Os banhos de mar, e a irritação que o sal promovia, não impediam que parte menos afortunada da população os escolhesse. Desertavam o centro.

do centro em direção às novas povoações nos subúrbios ou arrabaldes. O poder público, por meio da construção de estradas, mercados, postos de saúde e grupos escolares, deu respaldo à essa expansão, enquanto a iniciativa privada providenciou em sistema de transporte, abastecimento e, segundo depoimentos, providenciou ainda a entrega semanal de feira de verduras e a entrega diária de pão fresco e jornal.

O Projecto de Melhoramentos do Saneamento de Recife, (Figura 28), desenvolvido por Saturnino de Brito em 1917, mostra os subúrbios para onde se haviam deslocado a aristocracia agrária e a burguesia urbana pernambucana no século XIX, sendo possível perceber, já nessa época, bairros consolidados, tanto na margem direita do Rio Capibaribe, como Afogados, Madalena e Torre, quanto na margem esquerda, como Derby, Capunga, Aflitos, Espinheiro, Encruzilhada, Tamarineira, Parnamirim, Casa Forte e Casa Amarela.

Figura 27 – Projecto de Melhoramentos do Saneamento de Recife por Saturnino de Brito, em 1917. Fonte: Secretaria de Saneamento do Recife.

O núcleo inicial da povoação do Recife, apesar dos investimentos feitos no entorno, continuava sem receber cuidados. A omissão dessa área nos levantamentos realizados pelo poder público ou a sua representação em tracejado em vários mapas pode indicar, segundo Menezes (Apud LUDERMIR, 2005), que a área estivesse em via de demolição ou reforma

Casa Amarela Casa Forte Jaqueira Capunga Espinheiro

radical, o que não justificava nem o levantamento da situação existente para registro em mapa e muito menos o investimento na sua conservação.

No final do século XIX e início do século XX, a evasão habitacional burguesa do centro para os subúrbios acentuou-se ainda mais. Moradores de muitos dos seus sobrados se deslocaram para o entorno desse centro ou para os atraentes subúrbios. Nos sobrados, como se pode ver no desenho de Lula Cardoso Ayres publicado por Gilberto Freyre (1951) na abertura do livro Sobrados e Mucambos, os pavimentos térreos (e por vezes o primeiro andar) eram destinados à atividade de comércio ou à prestação de serviços. Os pavimentos acima tinham uso familiar. No último pavimento estavam as atividades de cozinha e o abrigo dos escravos e empregados. A abolição da escravatura modificou fundamentalmente a estrutura doméstica. Tendo tido seu aproveitamento máximo no começo do século, o sobrado mostrava-se agora anacrônico, com uma estrutura de difícil aproveitamento pela sociedade pós-escravocrata.

Figura 28 - Organização do Sobrado Colonial – desenho de Lula Cardoso Ayres para o livro Sobrados e Mucambos. Fonte: Gilberto Freyre.

Segundo depoimentos (LUDERMIR, 2005), em alguns sobrados da Boa Vista, no começo do Século XX, não havia acesso aos pavimentos superiores além daquele – controlado ou fechado fora do horário de expediente – que passava pela loja ou armazém do pavimento térreo. Quando as famílias dos comerciantes se mudaram para os subúrbios, alguns

Alojamento de escravos

Residência, geralmente da familia proprietária do “negócio” do térreo.

pavimentos superiores passaram a servir como depósito e outros pavimentos ficaram em desuso.

Extintas as senzalas, os ex-escravos e outros cidadãos se instalaram em pequenos cômodos construídos em alguns quintais da Boa Vista – um “correr” de quartos onde os moradores compartilhavam o banheiro e a lavanderia. Na Rua Velha e na Rua da Glória, onde predominavam as casas térreas com grandes quintais, a ocupação residencial se manteve, mas a população foi sendo significativamente substituída e empobrecida. Segundo o depoimento de Elza Rotman (BERNARDINO, 2008), “Os ricos tinham saído de lá e por isso sobrou lugar para a gente [imigrante pobre] dentro das casas, sem ser nos quartinhos dos fundos do quintal”.

Para os desempregados da indústria canavieira, os recém-chegados, migrantes e imigrantes que procuravam diminuir a distância entre a própria residência e local de trabalho, era essa uma das alternativas de morar; outra alternativa eram os mocambos nas áreas alagadas e nas beiras dos rios. Precursores das favelas, os mocambos abrigaram os que, ainda não inseridos economicamente, procuravam a prosperidade da capital.

Desde o começo do século XX, já era possível identificar “retalhos”, ou seja, os setores com características distintas que compunham o bairro da Boa Vista. O Cais da Aurora estava elegantemente ocupado por palacetes e edificações de destaque, e os térreos da Rua da Imperatriz eram intensamente ocupados pelo uso comercial de luxo enquanto, os pavimentos superiores eram paulatinamente desocupados. Já o núcleo composto pela Rua Velha e Rua da Glória se caracterizava como residencial, abrigando uma população de renda mais baixa quando comparada com a renda de outros setores do bairro. A área não chegou a ser valorizada para o comércio, possivelmente em decorrência do pouco fluxo de pessoas ou pela proximidade de alguns equipamentos “degradantes”, tais como o matadouro, os curtumes e os currais ou, ainda, os mocambos dos Coelhos.