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4 Construção e desconstrução da habitabilidade no centro histórico do Recife

4.4 Caracterização espacial do Sítio Histórico da Boa Vista

4.4.1 Espaço Público – uso e estado de conservação

No Sítio Histórico da Boa Vista, o uso de alguns espaços públicos se alterou sensivelmente ao longo dos anos. Se, em um dado momento, as ruas tranquilas e as praças eram utilizadas pela população residente local, hoje, pela consolidação da função de centralidade urbana do Sítio, a população residente divide tais espaços públicos com a população flutuante que frequenta a área, atraída pelo comércio e serviços disponíveis.

A seguir, serão brevemente caracterizados os espaços públicos não lineares – praças, pátios e largos – e os espaços públicos lineares – as ruas e passeios públicos –, no que se refere às suas condições de uso e ao estado de conservação.

(a) Espaços públicos lineares

As ruas do sítio histórico apresentam características diversas. A Rua Velha (Figura 53) e a Rua de Santa Cruz tornaram-se importantes eixos de conexão na malha viária da cidade.

45 Albuquerque (2005) detectou a valorização de tais edificações pela população local por meio da

Ao longo do tempo, os paralelepípedos foram substituídos pelo asfalto e, hoje, tais ruas fazem parte do itinerário de 18 linhas de ônibus46 de transporte metropolitano, sendo intensamente

utilizadas também por outros veículos. O aumento do tráfego promove o aumento da poluição sonora e do ar, o que pode contribuir para a diminuição das condições de habitabilidade. Na confluência das ruas Velha e da Glória, chega-se ao Sítio Histórico da Boa Vista pela Ponte Seis de Março, vindo do Bairro de São José (Figura 54).

Figura 52 - Rua Velha, 2010. Foto da autora. Figura 53 - Chegada ao sítio histórico a partir do bairro de São José pela Ponte Seis de Março, 2010. Foto da autora.

Muitas das calçadas se encontram em mau estado de conservação. São frequentes as situações em que o esgoto transborda das caixas de inspeção, acumulando-se nas sarjetas e conferindo ao lugar um cheiro sui generis. Postes de eletrificação e iluminação pública, mais o emaranhado de fios, colocados nos passeios públicos estreitos, muito próximos às edificações, oferecem perigo de choques elétricos, prejudicam a visibilidade e se apresentam como poluição visual (Figuras 53 e 54).

Além disso, os comerciantes que se estabelecem nas calçadas para a venda de lanches, além de comprometerem o fluxo de pedestres, contribuem para a poluição da área na medida em que não acondicionam adequadamente o lixo.

As calçadas muitas vezes representam a interseção conflituosa entre o direito coletivo ao fluxo e à acessibilidade e o direito privado. Segundo a legislação recifense, cabe ao proprietário do imóvel lindeiro a construção e a conservação da calçada. No entanto, na calçada instala-se o mobiliário de uso público, tais como telefones, lixeiras, postes de iluminação e, muitas vezes, o comerciante informal.

Se cabe ao proprietário a manutenção do passeio público, cabe ao poder público controlar os usos e disciplinar a localização do mobiliário. No sítio histórico em questão, nem

46 Segundo informações do Consórcio Metropolitano de Transporte – Grande Recife. Disponível em

mesmo as calçadas em frente a equipamentos públicos e, portanto, de ingerência do governo, estão em bom estado de conservação. Obstruídas e malcheirosas, com acúmulo de lixo e acessibilidade comprometida, as calçadas do Sítio Histórico da Boa Vista se tornam um espaço ainda mais desagradável pela poluição sonora e do ar, promovida pelo fluxo de veículos.

Segundo relatos de comerciantes e frequentadores do Mercado da Boa Vista, a Rua de Santa Cruz se tornou um ponto de comercialização e consumo de drogas durante o horário noturno. A insegurança promovida por tal prática tem antecipado o fechamento dos boxes do mercado. Os entrevistados externaram certo desconforto pela ausência de policiamento constante e demonstraram sentir que o problema de consumo de drogas na área tende a se agravar.

Na Rua da Imperatriz (Figuras 55 e 56), com um fluxo exclusivo de pedestres, o pavimento está em boas condições, executado e conservado por meio da parceria público- privada. Durante o horário comercial, a rua apresenta uma grande movimentação de pedestres formada, principalmente, pelo público consumidor das lojas. No entanto, devido à ausência do uso habitacional, tal espaço público de grande qualidade não apresenta usuários frequentes fora do horário de expediente.

Figura 54 - Rua da Imperatriz em um dia de semana às 10h30. 2008. Foto da autora

Figura 55 - Rua da Imperatriz em um domingo, 10h30. 2008. Foto da autora

(b) Espaços públicos não lineares

A Praça Maciel Pinheiro, localizada em um dos extremos do movimentado corredor de pedestres da Rua da Imperatriz, está em bom estado de conservação e tem o seu uso voltado essencialmente para os transeuntes que freqüentam a área, ficando também vazias fora do horário do expediente.

O Pátio de Santa Cruz (Figuras 57 e 58), localizado na frente da Igreja de Santa Cruz, que costumava ser um lugar de encontro e de saída de procissões, é hoje um lugar de passagem. Ponto de confluência e distribuição para os veículos vindos da Rua Velha, Rua Rosário da Boa Vista e Rua Gervásio Pires, o pátio está ocupado por um posto de abastecimento de combustível desativado, por semáforos e ordenadores de tráfego. A função de pátio de Igreja como lugar de simbolismo religioso, encontro e construção de relações sociais deixou de existir.

Figura 56 - Conflito entre automóveis e pedestres no Pátio de Santa Cruz. 2011. Foto da autora.

Figura 57 - Posto de combustível desativado no Pátio de Santa Cruz. 2011. Foto da autora.

A Praça da Alegria (Figuras 59 e 60), mais resguardada, foi, conforme afirma Ludermir (2005), largamente utilizada como espaço público para a população de judeus que habitava no entorno na primeira metade do século XX, e se mantém como uma cara lembrança. Sem pavimentação, campinho de futebol até os anos 1930, depois arborizada e equipada com brinquedos infantis, a praça passou por uma reforma em 2005 e perdeu a sombra devido à remoção de uma árvore de grande porte. Hoje costuma apresentar mais veículos do que pessoas. Além disso, os moradores do lugar se queixam de que, algumas vezes, o lugar seja frequentado por usuários de drogas.

Figura 58 - Praça da Alegria antes da reforma, 2003. Foto da autora.

Figura 59 - Praça da Alegria, 2009. Foto da autora.

O largo da Igreja de São Gonçalo, lugar de grande simbolismo, que já abrigou feiras de verduras, práticas de umbanda e encontros de católicos e judeus, hoje serve de estacionamento para veículos pesados que fazem a carga e a descarga de produtos, comercializados tanto no Mercado da Boa Vista quanto no depósito de alimentos localizado na rua de mesmo nome. A Igreja, tombada pelo Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, uma das mais antigas do Recife, encontra-se descontextualizada.

Foi possível perceber que os espaços usados essencialmente pela população flutuante, tais como a Rua da Imperatriz e a Praça Maciel Pinheiro, encontram-se em melhor estado de conservação, limpeza e segurança pública do que os espaços de uso da população local. A pedestrianização da Rua da Imperatriz, que atende aos interesses do comércio e possibilita um melhor fluxo da população flutuante, pode desestimular o uso habitacional, o que leva à subutilização do espaço público fora dos horários de expediente.

O costume de, no final da tarde, “colocar cadeiras nas calçadas para conversar com o vizinho da casa ao lado ou da casa da frente ficou apenas na lembrança” de um entrevistado, já que o tráfego intenso de veículos e o mau cheiro tornam o espaço menos agradável. As crianças na Praça da Alegria, os fiéis no Pátio da Igreja, ou as cadeiras nas calçadas são, hoje, obrigados a procurar outros lugares.

A supervalorização da função de centralidade urbana no planejamento da área, a qualidade dos serviços públicos, como manutenção e limpeza urbana, segurança, abastecimento e tratamento de águas servidas, a permissividade de usos e a falta de controle urbano têm desfigurado alguns espaços públicos do Sítio Histórico da Boa Vista e contribui para a descaracterização dos seus usos, o que pode conduzir à desvalorização habitacional da área. As consequências dessa desvalorização também se fazem notar no estoque edificado.