• Nenhum resultado encontrado

4 Construção e desconstrução da habitabilidade no centro histórico do Recife

4.2 O uso habitacional e a evolução urbana da Boa Vista

4.2.1 Holandeses e Portugueses, uma ponte e uma boa vista

No século XVI, no Brasil Colonial, enquanto em Olinda se instalavam donatários, colonizadores e ordens religiosas, a ocupação do Recife se limitava a modestas casas de pescadores nas imediações do que hoje é a Rua do Hospício, às quais se somaram casas de funcionários que faziam serviços de embarque, desembarque e transporte de mercadorias do porto do Recife até Olinda pelo então istmo, hoje ilha, do Recife (Menezes, 1988).

Foi só no século XVII, com a chegada dos holandeses, que detinham a experiência e os conhecimentos técnicos necessários para lidar com solos baixos e alagadiços, que se deu a primeira expansão do solo do Recife. Após ocuparem a pequena área não inundável do istmo, como está indicado no mapa de 1641 das Figuras 18 e 19, os holandeses estabeleceram a Cidade Maurícia na vizinha Ilha de Antônio Vaz onde, no extremo oeste, se supõe que o Conde Maurício de Nassau tenha mandado construir o Palácio da Boa Vista, “seu refúgio de veraneio com boa vista para o continente”. Pela escassez de terrenos no Istmo do Recife e na Ilha de Antônio Vaz, a ocupação extrapolou os limites geográficos impostos pelo Rio Capibaribe e chegou, no início do século XVIII, ao que hoje chamamos de Boa Vista (Sette, 1948). O Inventário dos Prédios Edificados ou Reparados pelos Holandeses na Cidade do

Recife até 1654 faz referência a uma ponte em ângulo que ligava o palácio de veraneio de

Figura 17 – A Cidade Maurícia, no mapa de Gaspar Barlaeus, 1641. Fonte: Imagens do Brasil Colonial

Figura 18 – Detalhe com destaque para o Palácio da Boa Vista, na Ilha de Antônio Vaz, com ponte em ângulo levando ao que hoje se chama de bairro da Boa Vista.

Apesar da construção da ponte, a Boa Vista, ainda fora das portas da cidade, abrigaria apenas atividades rurais e periféricas nos séculos seguintes, como os sítios de frutas e “os matos”, conforme contam as crônicas literárias (Sette, 1948). Com a expulsão dos holandeses, as terras da Boa Vista foram doadas em sesmaria a Henrique Dias, o “Herói Negro da Restauração Pernambucana”, em 1656, pelo Governador Francisco Barreto de Menezes. No começo do século XVIII, iniciou-se a ocupação urbana da área a partir de algumas edificações religiosas excepcionais, determinantes para a configuração morfológica do lugar.

A Igreja da Irmandade dos Homens Pardos de São Gonçalo, construída entre 1712 e 1716, e a Igreja de Santa Cruz, construída entre 1711 e 1725, delinearam os primeiros caminhos da área, ao longo dos quais foram construídas as primeiras casas. Segundo Menezes (1988), a princípio a ocupação ficou restrita ao pequeno núcleo de casas ao redor da Igreja da Irmandade dos Pardos de São Gonçalo, que constitui “a origem da povoação que se gerou desde a antiga ponte para o Palácio da Boa Vista até aí”. As edificações, em sua maioria simples e térreas, caracterizavam-se como o espaço privado, sendo todo o resto considerado espaço público.

No pátio, em frente à Igreja de Santa Cruz, eram realizadas as festas religiosas e as procissões católicas. Já no largo da Igreja de São Gonçalo se realizava, até o século XIX, uma feira semanal com produtos agrícolas frescos, trazidos dos sítios das imediações. Segundo Sette (1948), igualmente até o século XIX, uma feira de ervas e de produtos medicinais, além de rezas e festas de umbanda, realizava-se no “terreiro” atrás da Igreja de São Gonçalo, das quais se tem notícia pelos de relatos orais de pais e filhos de santos.

Esse núcleo entre a Rua Velha e a Rua da Glória se consolidou na primeira metade do século XVIII. Edificações e espaços públicos de uso civil e religioso, comércio e habitação, onde ocorriam as práticas sociais da população, caracterizavam uma heterogeneidade de funções que conferiam à área condições propícias para o uso habitacional.

Figura 19 - Planta Genográfica da Villa de S. Antonio do Recife de Pernambuco em 1763, por Miranda, Garcia e Abreu. Fonte: Imagens do Brasil Colonial

Figura 20 – Detalhe da planta com destaque para a ponte em “Y” de acesso ao núcleo inicial de ocupação da Boa Vista. Indicação da localização da Igreja de Santa Cruz (esquerda) e da Igreja de São Gonçalo (direita)

Entre 1737 e 1742, a Ponte da Boa Vista, em cuja cabeceira estaria o Palácio da Boa Vista, ruiu. O Governador da Província de Pernambuco mandou construir uma ponte com um novo desenho. A nova ponte ligava a Rua Nova, no Bairro de Santo Antônio, bifurcando-se para chegar à Boa Vista em duas cabeceiras, uma no que viria a ser a Rua do Aterro e outra na Rua Velha, como é possível perceber na Planta Genográfica de 1763 (Figura 20). Anos depois, o braço que fazia a conexão com a Rua Velha desmoronou e não foi reconstruído, como mostra o Mapa do Recife em 1820 das Figuras 22 e 23, o que deixou o núcleo inicial de ocupação da Boa Vista sem conexão direta com a Ilha de Antônio Vaz.

Paralelamente a esse fato, uma intervenção pública na metade do século XVIII definiu a Rua do Aterro, sem nenhuma ocupação até 1745, segundo Menezes (1988), e permitiu a ocupação desse setor da Boa Vista a partir da drenagem dos seus mangues.

Figura 21 – Mapa sem Título [Recife], autor não

identificado, 1820- Fonte: Imagens do Brasil Colonial. Figura 22 – Detalhe do mapa com destaque para a consolidação urbana do Sítio Histórico da Boa Vista no início do século XIX e com o novo desenho da ponte.

Com o núcleo inicial de ocupação agora topologicamente mais distante do Bairro de Santo Antônio em decorrência da não reconstrução do braço da ponte que ruíra e com as obras de drenagem, a atenção da Boa Vista foi desviada para a Rua do Aterro, hoje Rua da Imperatriz Teresa Cristina, que se configurou como uma espacialidade habitacional.

É possível afirmar que tais intervenções propiciaram a valorização do solo e, consequentemente, uma maior verticalização das edificações na Rua do Aterro. Em 1759, a Rua Velha e a Rua da Glória estavam totalmente construídas, e a Rua do Aterro estava apenas parcialmente ocupada em seu lado par. Nos pavimentos térreos dos imóveis, instalaram-se estabelecimentos comerciais, cujos pavimentos superiores eram ocupados pelas residências, tanto dos comerciantes quanto dos seus escravos.

As edificações da Rua do Aterro, sobrados de vários pavimentos, mais largos e ornamentados, contrapunham-se às casas térreas, em lotes estreitos da Rua da Glória e da Rua Velha (Sette, 1948). Pode-se dizer que os investimentos na Rua do Aterro e a não reconstrução da ponte foram determinantes para a pouca valorização comercial da Rua Velha e do seu entorno e, possivelmente, para a preservação do seu caráter residencial. Havia, assim, desde o século XVIII, uma notável diferença entre os dois segmentos da Boa Vista. Em 1784, o início da construção da Igreja do Santíssimo Sacramento – depois Matriz da Boa Vista – reafirmaria a valorização do solo na Rua do Aterro.

Quando, em 1822, o Brasil se fez independente de Portugal, o Recife se tornou capital da Província de Pernambuco. Apesar da independência, alguns hábitos foram mantidos, dentre eles a escravatura e os modos de morar da velha sociedade.

A canoa, a jangada e a barcaça, somadas aos cavalos e carroças como meio de transporte principal até a metade do século XIX, foram aos poucos substituídas pelos bondes e trens. Do estrangeiro chegavam os barcos a vapor. As estradas e as ferrovias para o escoamento da produção convergiam para o porto, em plena atividade. O Recife atraía visitantes, comerciantes, estudantes e trabalhadores. Os filhos de usineiros iam estudar na Europa ou no Recife e as famílias da aristocracia rural se transferiam para a cidade.

A população, que passou de 18.000 para 70.000 habitantes entre 1782 e 1850, concentrava-se, em sua maioria, nos bairros do Recife, Santo Antônio, São José e Boa Vista, que continuavam a atrair mais moradores, fazendo necessária a criação de novas vagas e novas formas de morar.

Com o desenvolvimento de outros meios de transporte, os recifenses puderam distanciar-se desses quatro bairros coloniais e, num processo chamado por Evaldo Cabral de Mello (Apud PARAÍSO) de “evasão sazonal”, o “velho burgo expandiu-se pelo continente, incorporou a várzea do Capibaribe e criou seus arrabaldes”. A evasão à qual se refere Mello, decorrente da “prosperidade” que acarretou o aumento de população do Recife e o adensamento dos bairros coloniais, teve como consequência o aparecimento de alguns problemas de moradia.