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Consolidação do conceito jurídico de soberania: múltiplas facetas da soberania

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

1. DA DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DO ESTADO MODERNO: BASES INSTITUCIONAIS DO MODELO DE

1.2. CONFIGURAÇÃO DAS BASES INSTITUCIONAIS DO

1.2.3. Consolidação do conceito jurídico de soberania: múltiplas facetas da soberania

Sob o ponto de vista da consolidação do conceito jurídico de soberania90, o que se constata é que o mesmo é frequentemente erigido tendo por base uma visão monolítica (como um conjunto de atributos imodificáveis)91, que se desdobra em uma dupla dimensão (soberania interna ou doméstica e soberania internacional).

absoluta, segundo a qual, a essência da soberania consiste no poder de decidir sobre o estado de exceção (WERNER; WILDE, 2001, p. 286-287).

89 “[...] – sovereignty does not become less and less important in times when the power of the

state (or any other claimant of sovereignty) is questioned or diminishing. On the contrary, especially in times of competing

90 André Lupi (2001, p. 272-274), ancorado em Georg Jellinek, chama a atenção para

existência de uma pluralidade de significados atribuíveis à soberania (propriedade do Estado, lugar jurídico do órgão do Estado e próprio poder do Estado). Esta dificuldade de tratamento decorreria, igualmente, de uma “alteração conceitual” decorrente das alterações históricas que teriam modificado a “substância da soberania em cada época e lugar”. Nestes termos, “a alteração do titular produzirá diferentes formações discursivas sobre a soberania, levando a alterações no seu tratamento”.

91 Esta preocupação em identificar os traços constitutivos de um arquétipo-ideal acerca da

soberania é expressamente assumida por Ari Solon (1997, p. 12), para quem: “[...] é certo que não há história na teoria do direito, mas se o conceito de soberania tiver apenas um fundo histórico, que puder ser preenchido numa extensão temporal, ele não será uma noção teórica necessária para a compreensão da experiência jurídica. Na sua essência, ele terá que ser a- histórico”.

Em relação aos seus atributos constitutivos, desde a formulação de Jean Bodin (Les six livres de la republic, de 1576), segundo a qual a soberania seria “em primeiro lugar, potência de comando” (GOYARD- FABRE, 1999, p. 130), é que a questão em torno da ilimitação (caráter absoluto) e da permanência (caráter perpétuo) são associadas ao soberano. E é justamente por conta destes atributos conferidos à soberania que, em Bodin, o soberano vê-se livre (não-vinculado) tanto dos seus subordinados, quanto das leis e ordenações por ele emitidos (solutus legibus). A soberania, nestes termos, pode ser sintetizada pela ideia de “independência da autoridade de comando”, tão bem simbolicamente representada, pelo jurisconsulto francês, na alegoria da Nave-República92 (GOYARD-FABRE, 1999, p. 134).

Tais atributos foram (re)elaborados ao longo dos tempo, a fim de adaptar a concepção estruturante de soberania às contingências político- jurídicas do processo de expansão e consolidação do Sistema de Estados (em especial, ao longo dos séculos XVII e XVIII). A estes qualificativos foram sendo acrescentados outros que podem ser sistematizados a partir de sua natureza em: temporal (caráter perpétuo e imprescritível), material (caráter absoluto) e formal (caráter indivisível, inalienável e intransmissível) (LUPI, 2001, p. 272-290)93.

Tendo por base tais atributos e a prática diplomática consolidada até então, Emmerich de Vattel, em 1758, publica sua obra seminal (Le Droit des Gens, ou principes de la Loi Naturelle, appliqués à la conduite aux affaires des nations et des souverains), texto este

92 Esta imagem (Nave-República) é exposta pelo autor na dedicatória que abre seu livro mais

notório, nos seguintes termos: “Enquanto a nave de nossa Repúblia tinha na popa o vento agradável, só se pensava em fruir um repouso firme e garantido, com todas as farsas, pantominas e disfarces que podem ser imaginados pelos homens inebriados por toda as espécies de prazeres. Mas, desde que a tempestade impetuosa passou a atormentar a nave de nossa República com tal violência que o próprio capitão e os pilotos estão como que cansados e extenuados por um trabalho contínuo, é preciso que os passageiros lhes dêem uma ajuda, quer nas velas, quer nos cordames, quer na âncora e, àqueles a quem faltar força, que dêem algum bom conselho”. (BODIN, 1583, apud GOYARD-FABRE, 1999, p. 120).

93 Vale a pena ressaltar o ceticismo apresentado pelo autor no tocante à utilidade do recurso a

tais “qualificativos à ideia hodierna de soberania”. Para ele, “os atributos da soberania são um resquício de sua formação inicial, eivada pela dualidade circunstancial-universal das obras de seus autores, arrastados para outros contextos, outras formações discursivas” (LUPI, 2001, p. 290). Continua o autor, de forma conclusiva, “[...] para se falar hoje em soberania intransferível, inalienável ou indelegável, exige-se um esforço de argumentação desnecessário, e exemplos históricos demonstram que – ao menos em determinado sentido – tais qualificativos não foram sempre respeitados. Ao caráter absoluto, a noção de conteúdo a seguir explicada em detalhe, demonstra que ele nunca existiu plenamente e que se trata de uma ficção derrubada em definitivo pelos crescentes controles jurídicos exercidos nas esferas de validade material dos Estados pelo Direito Internacional atual”. (LUPI, 2001, p. 290).

considerado o primeiro tratado moderno de direito internacional94 (tomando por referência a compreensão do direito internacional como direito positivo entre Estados soberanos juridicamente iguais entre si) (MACEDO, 2008, p. 87). Um dos grandes méritos de Vattel consiste justamente em transpor, para a linguagem jurídica (logo, do direito positivo), as formulações até então construídas em bases jusnaturalistas95 (VIGEVANI, 1999, p. 16). O esforço de buscar estabelecer um nexo entre o direito público interno e o direito internacional (MANCUSO, 2008, p. 17) permitiu-lhe identificar os Estados soberanos como sendo “um corpo político ou uma sociedade de homens unidos para buscar benefícios e segurança com forças reunidas” (VATTEL, 2008, p. 157). Por sua vez, ao definir os contornos dos Estados soberanos, identifica o autor os seguintes elementos constitutivos:

Toda a nação que se governa a si mesma[i], sob qualquer forma que seja, sem dependência de qualquer estrangeiro[ii], é um Estado soberano. Seus direitos são naturalmente os mesmos que aqueles de qualquer outro Estado. Essas são as pessoas morais que vivem juntas numa sociedade natural sujeita às leis do Direito das Gentes[iii]. Para que uma nação tenha o direito de figurar imediatamente nessa grande sociedade, basta que seja verdadeiramente soberana e independente, ou seja, que se governe a si mesma por sua própria

94 No prefácio a sua obra, após identificar os pressupostos teóricos assumidos no trabalho, o

autor procura deixar claro que pretende diferenciar e analisar o Direito das gentes em uma dupla dimensão: o necessário e o voluntário; “o primeiro, como uma lei sagrada que as nações e os soberanos devem respeitar e seguir em todas as suas ações; o segundo, como uma regra que o bem e a salvação comum os obrigam a admitir nos negócios que têm em comum. (...) Esse duplo Direito, baseado em princípios certos e constantes, é suscetível de demonstração. Será o principal objeto de minha obra.” (trecho destacado) (VATTEL, 2008, p. 132). Mais à frente, explicita: “essas três espécies de direito das gentes, voluntário, convencional e consuetudinário, compõem juntas o Direito das Gentes positivo. Todos procedem da vontade das nações: o direito voluntário, de seu consentimento pressuposto; o direito convencional, de um consentimento expresso; o direito consuetudinário, de um consentimento tácito’; e, como não há outra maneira de deduzir algum direito da vontade das nações, não há senão essas três espécies de Direito das Gentes positivo” (VATTEL, 2008, p. 152).

95 Francesco Mancuso (2008, p. 21) sustenta que a teoria de Vattel “não é

uma negação da bagagem conceitual do direito natural clássico, mas, ao contrário, uma tentativa de tornar efetivos os princípios do direito natural individuando um nexo essencial com a mediação do legislador” (MANCUSO, 2008, p. 21).

autoridade e por suas leis. (destaques acrescidos). (VATTEL, 2008, p. 159).

Desta passagem, extrai-se a tríade de elementos a partir dos quais se passou a atribuir o qualificativo “soberano” aos Estados: (i) o autogoverno; (ii) a independência de outros Estados; e (iii) a vinculação direta ao direito internacional. Assim, o Estado será soberano quando puder adotar decisões obrigatórias últimas em seu território, quando não se encontrar sujeito aos influxos provenientes de outros Estados; e, quando não estiver submetido a nenhuma outra autoridade que não seja o direito internacional (KOTZUR, 2001, p. 93).

Disto resulta que o papel desempenhado por este conceito vem sendo tradicionalmente encarado em termos absolutos (como um tudo ou nada), ou seja, ou o Estado detém a soberania (e todos os seus desdobramentos), ou não se lhe pode conferir o atributo “soberano”. Tais narrativas convergem para a compreensão da soberania como uma concepção monolítica. Esta conotação foi defendida enfaticamente por Hans Morgenthau (1948, p. 360-365), o qual mesmo após o lúcido diagnóstico acerca do processo de espraiamento do direito internacional e da criação de organismos internacionais que se avizinhava (promulgação da Declaração Universal dos Direitos Humanos e a criação da ONU, ambas em 1948), defendia o caráter ilimitado e indivisível da soberania. O autor, com base no seu ceticismo e de sua visão realista das relações internacionais, define a soberania como “autoridade suprema de promulgar leis e de conferir efetividade ao direito” (1948, p. 361). Disto decorre que, admitir a possibilidade de fracionamento da soberania, importaria na concretização de um duplo erro, tanto teórico-conceitual96, quanto de apreensão fática da dinâmica das relações internacionais97.

Ocorre que foi justamente a insurgência do espaço de regulação e de atuação do sistema de Estados que suscitou a necessidade de que o conceito de soberania fosse reespecificado a fim de que fosse reconhecida a existência de limites jurídicos externos aos entes

96 Para ele, admitir sua divisibilidade ou compartilhamento importaria em autêntica contradição

lógica, pois, desta forma, admitir-se-ia que os entes soberanos pudessem “desistir da soberania, mantendo-a” (1948, p. 365).

97 Para o autor, seria esforço inócuo tentar conciliar aquilo que a experiência histórica (e as

condições da civilização moderna) teria mostrado ser irreconciliável: a soberania nacional e uma ordem internacional; para o autor, “[l]onge de expressar uma crença teórica ou refletir a atualidade da experiência política, o conselho para que se renuncie a ‘parte da soberania nacional’ em prol da preservação da paz é equivalente ao conselho de que alguém deva fechar os olhos e sonhar que pode comer uma torta e ainda a mantê-la”97 (MORGENTHAU, 1948, p.

soberanos98. Logo, sem poder prescindir da noção de plenitude potestas (elemento constitutivo da construção moderna sobre o Estado), de forma bem cara ao esforço de composição dos juristas, a doutrina do direito internacional tratou de operar uma cisão no conceito de soberania, reconhecendo a existência de uma dúplice dimensão: na sua face externa, a soberania se traduziria nos princípios de independência e igualdade jurídica dos Estados; na sua face interna, a soberania importaria no reconhecimento de que os órgãos estatais soberanos detêm a prerrogativa de definir o direito válido e de decidir sobre sua aplicação.

A existência desta dupla dimensão provoca uma abordagem igualmente bipartida acerca da soberania enquanto problema jurídico, de um lado, o direito internacional se ocupa de seus desdobramentos nos conceitos de igualdade jurídica dos Estados e a máxima de cooperação sem a qual não se pode conceber uma sociedade internacional de Estados (soberania externa), de outro, a Teoria Geral do Estado e o Direito Constitucional ocupam-se do problema da legitimidade e da organização dos poderes no plano doméstico (soberania interna).

A dimensão externa da soberania, de acordo com a lição de Stephan Krasner (2001; 2004) envolve dois sentidos distintos: o primeiro, sob denominação de soberania jurídica internacional, representa uma espécie de marco constitutivo do moderno direito internacional, fundado nas máximas do reconhecimento mútuo (como condição para o “nascimento” dos Estados), na veiculação da ideia de mútuo consentimento para a legitimidade da ordem e das obrigações jurídicas internacionais oponíveis aos Estados e na consagração da igualdade jurídica entre os Estados; o segundo, sob denominação de soberania vateliana, como visto, veicularia a noção de atributos sem os quais o Estado não poderia ser reconhecidamente soberano (demonstração de capacidade, de facto e de juri) e se consolida na correlata capacidade dos Estados de controlarem o movimento através de suas fronteiras (KRASNER, 2001, p. 19-21; 2004).

Por seu turno, a soberania interna representa um dos pontos cardeais do Estado moderno. A afirmação da soberania interna pretende fixar balizas para a subjugação (veiculada através das noções de Razão de Estado e da ideia de plenitude potestas) de centros de produção de normas pretensamente autônomos no interior dos Estados (corporações

98

Hans Kelsen (2010, p. 135-137), reconhecendo que a ordem jurídica internacional é superior à ordem nacional, defende que a função essencial da ordem jurídica internacional consiste justamente em delimitar os domínios de validade das ordens jurídicas nacionais (domínios de validade territorial, pessoal e material).

medievais, organização local das cidades, regulação e atuação secular por parte das instâncias eclesiásticas) (RUGGIE, 1997). Nestes termos, esta dimensão da soberania refere-se às estruturas de autoridade dentro dos estados e a habilidade destas estruturas de efetivamente regularem o comportamento humano (GIDDENS, 2001, p. 120-128). Estas estruturas de dominação, na linguagem weberiana, produzem os mecanismos institucionais e os discursos de legitimação que importam no seu reconhecimento pelos cidadãos e pelo grau de controle que as autoridades públicas (nacionais) são capazes de exercer (CAPORASO, 2000).

A existência desta dupla dimensão e dos esforços correlatos de acomodação teórica de suas tensões constitutivas contribuíram para uma acentuada indeterminação semântica em torno do próprio conceito de soberania, afinal de contas, de acordo com Hans Kelsen, o postulado básico de superiorem non recognoscens foi continuamente desfigurado, desde o início da tradição moderna99. No mesmo sentido, a diagnóstico similar chega Luigi Ferrajoli (2002) quando, ao discutir algumas das aporias inerentes ao conceito de soberania100, define-a como uma “categoria antijurídica”. Em relação à questão específica aqui tratada (oposição entre as dimensões interna/externa), o jurista italiano sublinha a existência de um autêntico descompasso entre a evolução histórica das narrativas sobre estas dimensões, pois se de um lado, no âmbito interno, a soberania sujeitou-se a um progressivo processo de limitação frente à afirmação histórica do modelo de estado constitucional de direito101, de

99 Para Kelsen, o conceito primário da noção de soberania (formulação medieval civitates superiorem non recognoscentes), “teria sido desvirtuado pela doutrina jusnaturalista do Estado,

ao postular, num sentido político, o caráter ilimitado e absoluto, quer da soberania do príncipe, quer da do povo” (SOLON, 1997, p. 48). Por outro lado, o “reconhecimento do próprio Estado como depositário da soberania, conquanto seja contabilizado como um progresso científico em relação às teorias subjetivas jusnaturalistas da soberania de ‘homens’ (príncipe ou povo), também sofreu uma penetrante crítica por parte de Kelsen” (SOLON, 1997, p. 49).

100

A primeira aporia descrita pelo autor (2002, p. 5-25) diz respeito ao significado filosófico da ideia de soberania, visto que: “como categoria filosófico-jurídica, a soberania é uma construção de matriz jusnaturalista, que tem servido de base à concepção juspositivista do Estado e ao paradigma do direito internacional moderno; logo, um resquício pré-moderno que está na origem da modernidade jurídica e, simultaneamente, em virtual contraste com esta” (2002, p. 2). Por seu turno, a terceira aporia (2002, p. 39-53) diz respeito “à consistência e à legitimidade conceitual da ideia de soberania do ponto de vista da teoria do direito” (2002, p. 3), que lhe levam a defender a tese de que há uma antinomia irredutível entre soberania e direito.

101 Esta trajetória de progressiva limitação da soberania interna é descrita por Luigi Ferrajoli

(2002, p. 27-33), para quem o advento do Estado liberal de direito (Declaração dos direitos do homem e do cidadão de 1798 e demais cartas constitucionais) altera radicalmente a configuração do Estado, igualmente alterando, até anulá-lo, o princípio da soberania interna. Para o autor: “De fato, divisão dos poderes, princípio de legalidade e direitos fundamentais

outro lado, no âmbito externo, em sentido oposto, a soberania experimentou um processo de progressiva absolutização de facto, resultando nas grandes guerras do século passado102.

Sobre o impacto das transformações contemporâneas no conceito de soberania, Kanishka Jayasuriya (1999, p. 427-428) identifica a existência de três grandes perspectivas teóricas, nas diferentes dimensões do conhecimento (filosofia política, relações internacionais e direito, em especial o direito internacional). Nestes termos, esse autor sublinha a existência de múltiplos esforços tanto de sua desconstrução quanto de sua reespecificação, para tanto, agrupa tais abordagens em três grupos distintos: formalistas, construtivistas e estruturalistas. As perspectivas de caráter formalista tendem a diagnosticar a ocorrência de processos de erosão da soberania; a partir de uma abordagem a-histórica e incapaz de perceber a historicidade dos seus elementos constitutivos, costumam apresentar a soberania como um jogo de “tudo ou nada” (zero-sum game)103. Por sua vez, as perspectivas de caráter construtivista costumam apontar a ocorrência de mecanismos de dissolução da soberania; de acordo com esta abordagem, na visão desse autor, a emergência de novas formas de organização das comunidades políticas e a insurgência de novos atores políticos internacionais tornam insuficientes os conceitos de soberania. Por fim, as abordagens de matiz estruturalista apontam a ocorrência de processos de transformação do conceito de soberania; estas abordagens costumam focar na forma com que a soberania muda em relação à transformação fundamental na estrutura das relações econômicas e sociais.

Como antes assinalado, assume-se, nesta pesquisa, que não se está diante de um autêntico rompimento com o modelo territorial de organização da comunidade política; o que está em jogo é que este modelo não é exclusivo e convive com a formação de outros espaços

correspondem a outras tantas limitações e, em última análise, a negação da soberania interna” (p. 28).

102 Esta trajetória de progressiva absolutização da soberania externa é descrita por Luigi

Ferrajoli (2002, p. 33-38), para quem entre o século XIX e a primeira metade do século XX, o estado liberal de direito, no que se refere a sua soberania externa, “laicizada [...] e reforçada por sua nova base popular e nacional”, desprende-se de qualquer vínculo jusnaturalista e adota, “nas relações externas com os demais Estados”, uma postura de total libertação “de qualquer vínculo e freio jurídico”. Ainda segundo o autor, tal processo de absolutização redunda em duas principais consequências: a negação do direito internacional e “o espírito de potência e a vocação expansionista e destrutiva que animam tal paradigma da soberania estatal”.

103

“Em teoria dos jogos e em teoria econômica, um jogo de soma zero é um jogo cuja soma da utilidade obtida por todos os seus participantes, para cada combinação de estratégias, sempre é igual a zero, isto é, um jogo em que o que um jogador recebe é diretamente proporcional ao que os demais perdem. A maioria dos jogos clássicos de tabuleiro são de soma zero”.

que transbordam as fronteiras territoriais e nacionais e que se organizam de forma não hierarquizada. O que se pretende fazer, adiante, é discutir um de seus paradoxos constitutivos, qual seja, o caráter de inclusão/exclusão ínsito ao conceito de soberania.

O que se quis evidenciar até aqui é que a soberania não pode ser compreendida tão-somente como um atributo para diferenciação dos Estados (o Estado é ou não soberano?), mas como concepção dinâmica apta a fornecer parâmetros a partir dos quais possam ser avaliados os diferentes graus de autonomia atribuíveis aos Estados (“capacidade de decidir”), graus estes que variam de acordo com a natureza das relações em meio aos quais os Estados encontram-se atrelados104 (qual o grau de liberdade da autoridade estatal em determinado contexto?).

Portanto, conferir acento na associação da soberania à capacidade de decidir permite que esta “capacidade de decidir” venha a ser medida em graus, ou seja, que seja reconhecida a existência de vínculos formais e informais que condicionam (jurídica e materialmente) a atuação dos diferentes órgãos decisórios domésticos. Este condicionamento, todavia, não implica nem na negação da capacidade decisória dos órgãos estatais ainda soberanos, nem pode ser simplesmente reduzido a uma questão de “mera transferência” desta capacidade para instâncias outras situadas fora do Estado.

Tamanha é a força sugestiva da categoria (soberania) que, defende-se aqui, ela ainda se afigura capaz de atuar como ideia modeladora da “consciência compartilhada da sociedade” (BEAULAC, 2004, p. 181). Entrementes, sob este ponto de vista, não basta (uma vez mais) reconceituar os atributos classicamente reconhecidos ao conceito de soberania105 (afinal de contas este esforço mostrou-se de todo inócuo).

104 Interessante são as alegorias descritas por Mark Zacher (2000, p. 86): “De uma perspectiva

puramente legal, os Estados mantêm, ainda, o direito soberano de não estarem obrigados por qualquer acordo internacional apoiado pela maioria ou até mesmo por todos os outros Estados. No entanto, na prática, eles se encontram cada vez mais emaranhados em uma rede de interdependência e de arranjos regulatórios e de cooperação, da qual geralmente não se podem livrar. Esse quadro confirma o julgamento de Harold Jacobson de que ‘a analogia apropriada para descrever o sistema político global contemporâneo é a de Estados presos em redes de organizações internacionais’. [...] E igualmente não é mais válido descrever o sistema internacional em termos de bolas de bilhar colidindo umas com as outras, a não ser que se imaginem essas bolas ligadas por cordões de resina, limitando o seu movimento em qualquer

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