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Constituição como organização do poder (constituição como fator de integridade)

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

1. DA DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DO ESTADO MODERNO: BASES INSTITUCIONAIS DO MODELO DE

2.2. TEMÁTICAS CENTRAIS DA TEORIA CONSTITUCIONAL

2.2.2. Constituição como organização do poder (constituição como fator de integridade)

Esta seção tem por objetivo identificar de que forma os discursos constitucionais em torno da ideia de organização do poder se constróem a partir de bases territoriais e têm o condão de fornecer as bases normativas de justificação do modelo de organização espacial veiculado através do princípio da territorialidade discutido no capítulo anterior.

Desta feita, a dimensão organizativa da constituição envolve os discursos sobre a capacidade normativa do Poder e permitem a identificação dos critérios que pretendem “conformar” as realidades institucionais. A luz do que Simone Goyard-Fabre (1999, p. 95) chamou de “princípio da constitucionalidade” é possível reunir um conjunto de normas que pretendem “conformar” a comunidade política e que veiculam tanto a (i) ideia de estatuto orgânico do Estado, quanto a (ii) ideia de hierarquia das normas.

A partir dos elementos até aqui apresentados, a ideia de (i) estatuto orgânico do poder remonta à tradição do constitucionalismo britânico e assenta-se nas formulações que, a partir de Montesquieu159, serão concebidas a partir da doutrina da separação de poderes160 e do aprimoramento dos mecanismos institucionais de check and balances. De acordo com a lição de Gunther Frankenberg (2007, p. 103-104), tais normas de organização estatal e política responderiam por “questões de inteligência política e do risco político de management”. Formular a questão das normas organizacionais a partir desta perspectiva permitira, para o autor, superar a oposição que é classicamente formulada entre normas organizacionais e normas definidoras de direitos, já que a

integração política e resultado (produto diário) das diferentes atuações políticas (institucionalizadas e ou difusamente apresentadas pela sociedade civil através dos diferentes veículos de esfera pública) em conformidade com a cultura política local, que, a cada dia, se conecta de forma mais íntima, em um movimento contínuo de recepção e de envio, com as experiências culturais ocidentais, e, numa escala ampliada, em uma postura de abertura dialógica, com as diferentes culturas mundiais.

159 Por oportuno, vale a pena chamar a atenção para o fato de que, segundo Simone Goyard-

Fabre (1999, p. 104), seria demasiadamente apressado ler na obra de Montesquieu uma autêntica “teoria da separação de poderes”: e acordo com a autora, a sua construção teórica se coaduna com a defesa de uma “não-confusão” entre os órgãos governamentais, “o que implica ao mesmo tempo distinção orgânica e colaboração funcional deles”.

160 Sobre a ênfase no caráter dinâmico da máxima de separação de poderes e, por conseguinte,

pela existência de uma pluralidade de sentidos semânticos que podem lhe ser atribuídos, cf. Cecilia Lois et alli (2009).

experiência constitucional ocidental fornece evidências suficientes para demonstrar que a “organização da formação política de vontade e decisão” influencia diretamente “o significado prático de direitos de defesa, participação e colaboração”. Sob este ponto de vista, poder-se-ia sobrelevar o aspecto da articulação institucional do poder e as exigências de ativismo político de diferentes segmentos da comunidade política, aproximando a teoria constitucional das discussões de engenharia constitucional tão caras à ciência política. O ponto nodal, portanto, consiste justamente em evitar neutralizar a dimensão política, que subjaz latente à constituição, mediante fórmulas vazias de sentido semântico pré-definido.

Paralelamente a isto, ainda em relação à dimensão organizativa do Estado, recorre-se à ideia de (ii) hierarquia das normas a partir da qual a constituição passa a ser reconhecida como o ponto de imputação de onde deriva o atributo de validade de todas as normas jurídicas em determinado Estado e que permite a possibilidade de postulação do princípio da coerência e unidade sistemática do direito.

Em que pese esta construção teórica simbolizada na célebre imagem da “pirâmide jurídica” remontar ao gênio sistematizador de Kelsen161, a noção de hierarquização normativa é inerente às formulações teóricas em torno do princípio de supremacia constitucional162. Desta forma, reconhecer isto tem como corolário perceber que a “lógica constitucional não é apenas organizadora; é também criadora, de modo que o processo dedutivo significa que há no Estado uma autogeração das normas do direito”. (GOYARD-FABRE,

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De acordo com o autor, a dinâmica jurídica deve se ocupar da compreensão do processo de autorreprodução do direito e da identificação dos critérios para aferição da pertinência das normas a determinado ordenamento jurídico. A observância das regras para a produção do direito (previstas em norma de escalão superior), seria possível imputar o atributo de validade à norma jurídica considerada.

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Neste sentido, oportuno reproduzir a ideia de supremacia constitucional celebrizada pela formulação do Justice John Marshall, em 1803, quando da decisão da controvérsia entre Willian Marbury e James Madison, pautando-se na seção II, do art. 6º, da Constituição Americana, segundo a qual, “Esta Constituição, as leis dos Estados Unidos ditadas em virtude dela e todos os tratados celebrados ou que se celebrarem sob a autoridade dos Estados Unidos constituirão a lei suprema do país; e os juízes em cada Estado estarão sujeitos a ela, ficando sem efeito qualquer disposição em contrário na Constituição e nas leis de qualquer dos Estados”, pela primeira vez na história constitucional dos EUA, declarou inconstitucional um ato legislativo. Segundo afirmou em sua sentença o juiz Marshall: “É de todo evidente [...] que ou a Constituição prepondera sobre os atos legislativos que com ela contrastam ou o poder legislativo pode mudar a Constituição através de lei ordinária. Não há meio termo entre estas duas alternativas. Ou a Constituição é uma lei fundamental, superior e não mutável pelos meios ordinários, ou ela é colocada no mesmo nível dos atos legislativos ordinários e, como estes, pode ser alterada ao gosto do poder legislativo” (apud CAPPELLETTI, 1999, p. 47-48).

1999, p. 106). Enquanto “norma primária sobre a produção jurídica”, a Constituição reveste-se de três importantes funções: identifica as fontes do direito em dado ordenamento; estabelece os critérios de validade e eficácia de cada uma das fontes; e, determina a competência das entidades que revelam normas de direito positivo. (CANOTILHO, 1999, p. 643).

Mais especificamente em relação a este último elemento destacado pelo jurista português, enfrenta-se um aspecto muito importante para esta pesquisa, qual seja: a ideia de que a constituição veicula regras de colisão no sentido de demarcar os critérios para a fixação de competências. Esta demarcação é ainda mais relevante quando a constituição pretende “coordenar” sistemas jurídicos multinivelados, como é o caso, originariamente, dos estados federados. Em razão deste papel diretivo atribuído ao texto constitucional, em especial ao longo do século XX, os tribunais constitucionais convertem- se, enquanto intérpretes do seu texto, em principal instância de arbitramento de tensões constitucionais. Isto é assim porque os próprios tribunais que, imbuídos do propósito de salvaguarda da supremacia constitucional, definem de maneira inapelável os limites de sua própria competência (Kompetenz-Kompetenz), e, mediante este artifício, os tribunais demarcam os limites de interferência no espaço político com base na autopercepção acerca do papel institucional por si assumido163. No cenário de transição e de crise do paradigma de estado territorial soberano, a insurgência de múltiplos processos de interação e de regimes diferenciados de regulação vem fazendo nascer conflitos (e inúmeras disputas) entre os discursos de legitimação de diferentes autoridades que arvoram para si a competência para decidir sobre determinadas questões164.

2.2.3.Constituição como organização das liberdades (como fator de

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