• Nenhum resultado encontrado

Governança global e as bases institucionais para a constituição de um “espaço público transnacional”

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

3. ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E O NÃO-ESTADO TRANSNACIONAL: DOS PROCESSOS DE DESCONSTRUÇÃO

3.2.2. Governança global e as bases institucionais para a constituição de um “espaço público transnacional”

O termo governança242 vem sendo utilizado em múltiplos sentidos243. Tais sentidos, em certa medida, veiculam a ideia básica segundo a qual “o governo, identificado com a forma estatal hierárquica tradicional, vem dando lugar a um universo de autoridade difusa (diffused authority) na qual as fronteiras entre o público e o privado esvanecem-se”. (KEATING, 2002, p. 13).

Governança global, portanto, de acordo com a fórmula de Rosenau (2000, p. 16), é “ordem mais intencionalidade”. É o conjunto das decisões e entendimentos, algumas carregadas de tensões políticas, outras marcadamente técnicas e burocráticas, mas todas produto da convergência de interesses e expectativas de diversos atores, que sustentam a ordem mundial. (BENTO, 2007, p. 226).

As definições de governança global apresentadas apontam todas para um deslocamento da autoridade, das estruturas políticas nacionais para esferas de decisão situadas além e aquém delas, reforçando a importância das (e a interpenetração entre as) vidas políticas internacional e local. Com efeito, as instituições internacionais vêm se tornando cada vez mais presentes, em seu impacto sobre a vida cotidiana, ao mesmo tempo em que um número progressivamente maior de questões locais exige respostas globais, em um mundo marcado pela interdependência. (BENTO, 2007, p. 231-232).

A governança global está diretamente associada à intensificação das relações de interdependência e à interação multifacetada de novos atores nas diferentes arenas políticas.

O processo de intensificação das relações de interdependência está associado à emergência de riscos e problemas globais, que não podem ser adequadamente enfrentados pela iniciativa individual dos governos, mas exige ação conjunta. Isso coloca a necessidade de cooperação internacional e de instituições e regimes internacionais, isto

242 “A ideia de govenança foi lançada na teoria das relações internacionais no final da década

de oitenta. De lá para cá, ao invés de precisar progressivamente seu significado e delimitar o seu uso, seu conteúdo semântico se expandiu e adquiriu diversos significados na literatura, ora com pretensões mais modestas, aproximando-se do conceito de regimes, ora mais ambicioso, equiparando-se ao conceito de ordem mundial.” (BENTO, 2007, p. 221).

243R. Rhodes (1996 apud KEATING, 2002, p. 13) identifica a existência de pelo menos seis

é, estruturas de governança para além do Estado, que facilitem a coordenação política.

Este processo, designado por Kehoane e Nye Jr (2003) como interdependência complexa encerra três características distintas: (i) a insurgência de múltiplos canais de interação política, compreendendo relações formais e informais entre elites governamentais e laços formais e informais entre atores não-estatais transnacionais. Isso significa que, além das tradicionais relações “inter-nacionais” (isto é, “inter-estatais”) coexistem relações transgovernamentais, que envolvem setores específicos das burocracias de diversos Estados; transnacionais, de que participam atores não-estatais, sejam eles organizações não- governamentais ou corporações multinacionais; (ii) a agenda das relações internacionais, em condições de interdependência complexa, compreende uma série de novos temas, os quais não podem ser arranjados em uma hierarquia clara e consistente e a distinção entre política internacional e política interna vem perdendo consistência, conforme assuntos tradicionalmente domésticos vão penetrando na agenda internacional. Em decorrência, a política externa passa a ser preocupação de vários setores da burocracia estatal e não apenas do corpo diplomático oficial. Uma política externa coerente exige, portanto, a coordenação entre diversos temas dentro do governo e entre eles. Cada tema trabalhado implica diferentes alianças e diversos graus de cooperação e conflito; e, por fim, (iii) a força militar deixa de ser um instrumento efetivo de política. Ao menos entre Estados imersos em densas relações econômicas, políticas e culturais, a solução de conflitos mediante guerra tem custos proibitivos. Com efeito, as forças armadas possuem um papel irrelevante nas relações entre os maiores Estados democráticos. Fora desse círculo, contudo, o recurso à força armada continua uma opção, unilateralmente ou em aliança, entre regiões onde não prevalece esse tipo de interdependência.

Os mesmos autores apontam ainda quatro consequências para o processo político que se desenrola em um cenário de interdependência complexa. (KEOHANE; NYE Jr, 2003, p. 26-30)

Em primeiro lugar, a relativização das hierarquias. Na ausência de uma hierarquia clara de temas na agenda política internacional, cada setor da burocracia estabelece suas próprias prioridades e metas, o que torna a coerência da política externa um desafio para os governos, principalmente diante da crescente participação de atores não- governamentais, que buscam introduzir objetivos novos sobre cada tema da agenda.

Em segundo lugar, à medida que declinam o uso da força e a hierarquia de temas na política internacional sob interdependência complexa, o processo de formação da agenda, isto é, o processo pelo qual determinados assuntos ganham atenção continuada da comunidade internacional adquire uma dimensão estratégica crucial.

A terceira consequência da interdependência complexa para a política mundial decorre das anteriores e tem a ver com a diluição da fronteira entre a política doméstica e a política internacional. Esse fato alimenta a atividade política transnacional e transgovernamental. O Estado perde a sua unidade interna e se torna multifacetado e fragmentado. Nesse sentido, Anne-Marie Slaughter (2004a) chama a atenção para o surgimento da “nova diplomacia”, que conduz à formação de coalizões entre setores da burocracia estatal de diversos países, que celebram acordos sobre temas específicos.

Por fim, a quarta consequência que a interdependência complexa provoca na política mundial é o maior estímulo à institucionalização, ou seja, à constituição de regimes e organizações internacionais, à medida que o fato mesmo da interdependência ingressa na agenda. De forma crescente os governos vêm sendo levados a confiar na diplomacia multilateral e em instituições como forma de coordenar suas políticas e lidar com os custos provocados pela interdependência.

A caracterização da ordem mundial contemporânea como de interdependência complexa assimétrica apresenta profundas implicações para a atividade estatal, mais particularmente para a relação entre o papel da política nacional, no contexto da globalização, e sua relação com a política global.

Por seu turno, as novas tecnologias e a maior interconectividade proporcionadas pela globalização capacitaram novos atores para a participação na política internacional, os quais vêm ocupando um espaço cada vez mais relevante, como atores independentes, parceiros ou até críticos dos atores tradicionais.

A participação cada vez mais significativa de atores não-estatais na política mundial leva ativistas e acadêmicos a propor uma nova ordem mundial, baseada numa democracia e numa cidadania mundial, principalmente na medida em que a vida cotidiana dos cidadãos é cada vez mais influenciada por eventos e decisões ocorridas sem a intervenção de seus representantes eleitos e das instituições internas.

Contudo, não obstante as significativas transformações apontadas acima, é importante observar os elementos de continuidade preservados nos novos mecanismos de governança. Com efeito, nem a dispersão e fragmentação da autoridade pública, nem a emergência da regulação

privada deslocou os princípios basilares de uma administração burocrática racional.

A governança permanece associada primordialmente com mecanismos de tomada de decisões estruturados em organizações de larga escala, relativamente permanentes, com alto grau de formalização de suas normas, com graus variados de hierarquia administrativa e gerenciadas de modo impessoal (SCHOLTE, 2003). A integração do Estado em uma economia global competitiva, a descentralização, e a atividade de organizações internacionais e agências de regulação privadas em geral reproduziram, ao invés de desafiar, os princípios mais gerais de organização burocrática.

Em síntese, este item pretendeu comprovar a assertiva segundo a qual o Estado, após séculos de agir inquestionavelmente soberano, perdeu centralidade como agente de regulação social, não somente no plano interno, mas também, e, sobretudo, no âmbito externo, de onde sofre cada vez mais pressão. Viu-se que os processos de globalização pressionaram a tal ponto o Estado soberano que ele se viu obrigado a reformular seus “padrões de institucionalidade”. (SANTOS, 2002, p. 62). Todavia, e faz-se necessário frisar, a perda de centralidade do Estado em nada significa seu fim ou sua retirada de cena. Ao contrário do que uma leitura apressada pode levar a crer, nenhum dos processos de globalização pode prescindir do Estado e da ambientação – sobretudo normativa – que ele fornece. Ainda que não se trate de uma máxima irrefutável, pois é possível, como se verá adiante, que o direito transnacional atue fora do Estado ou indiferentemente a ele, não podem as organizações e entidades que movem o direito transnacional prescindir – sempre – da ambientação normativa que o Estado lhe confere.

3.3.INSURGÊNCIA DE “ESPAÇOS DE REGULAÇÃO

TRANSNACIONAL”

Sem enfrentar, neste momento, a questão teórica sobre a pluralidade de ordens normativas244 adscritas a estes espaços plúrimos de regulação transnacional, incumbe agora discorrer brevemente sobre duas ideias correlatas que são evocadas pela expressão “espaços de regulação transnacional”: a primeira, relacionada à definição dos

244 Cf. itens 4.1 e 5.2

espaços transnacionais e à forma como estas arenas decisórias produzem regulação; a segunda, relacionada ao direito produzido por intermédio das redes de interação (comumente chamado de “direito transnacional”).

3.3.1.Inventários sobre os “espaços transnacionais” e sobre “o

Outline

Documentos relacionados