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CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

3. ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E O NÃO-ESTADO TRANSNACIONAL: DOS PROCESSOS DE DESCONSTRUÇÃO

3.2.1. Crise da capacidade regulatória do Estado no plano doméstico

Como salientado, um dos desafios postos pelas globalizações no domínio político consiste na erosão (ou melhor, redefinição) da capacidade decisória e reguladora do Estado, isto é, da sua capacidade de empreender controle efetivo dos fluxos de interação social (bens, capital, pessoas, ideias, informação). Tais compressões suscitam o problema acerca do papel a ser desempenhado pelo Estado e o tipo de políticas nacionais possíveis (desejáveis) ante este quadro de aparente desestruturação de sua autoridade e do seu grau de autonomia decisória.

Em que pese o debate ainda recorrente sobre o fim do Estado e a perda de sua centralidade229, “o Estado continua e continuará no futuro previsível como um ator-chave, na verdade o principal ator em parte significativa das questões de governança, em razão de seu até ao momento indisputado monopólio do uso legítimo da violência e do

229 “The most frustrating part of the vast literature on globalisation and contemporary

international relations may be the part that asks in entirely abstract terms whether the state is 'in retreat', in the face of international and transnational pressures. Ultimately it is not helpful to speak generally about the 'demise' or 'collapse' of the nation state or about a 'shrinking' domain of state authority; nor to claim that 'the state is about over as an economic unit' or, conversely, that this is 'more than ever a world of nation-states', that the state is 'indispensable and irreplaceable' for global business, or that 'the market depends on modern sovereignty'. Such blanket claims are commonplace but states are very diverse in nature and their regulatory capacities and energies may vary dramatically depending on what regulatory functions are being considered. All this is a matter for empirical study.” (COTTERRELL, 2009, p. 6-7, referências suprimidas).

direito de representar, ou seja, agir em nome de uma comunidade política.” (BENTO, 2007, p. 169).

As narrativas em torno do fim do Estado constroem-se sob uma percepção equivocada da soberania a partir de seu conceito absoluto230, que não condiz nem com o desenvolvimento histórico do Estado-nação, nem com a pluralidade de estruturas administrativas de comando e controle da Administração. “O Estado-nação é confrontado com expectativas que nunca se esperou que ele pudesse preencher.”231 (MÖLLERS, 2004, p. 332). Desta forma, o grande desafio que se apresenta à Teoria do Estado consiste em “dar conta dessa ruptura entre a soberania formal do Estado e sua autonomia decisória substantiva, por um lado, e da subsequente recomposição do sistema de poder provocada pelo fenômeno da globalização, por outro.” (FARIA, 1999, p. 23-24).

Como antes salientado, as relações de poder no espaço territorial do Estado são confrontadas por inúmeras tendências que, de alguma forma, deslocam parte do poder político, centrando na figura do Estado- nação, para outras dimensões espaciais. É possível, com Boaventura de Souza Santos, identificar três tendências de deslocamento (desterritorialização) do Estado: (i) a sua desnacionalização que consiste em uma espécie de esvaziamento do aparelho do Estado decorrente de reestruturação funcional por que atravessa o Estado por conta da alteração do modelo territorial de organização (criação de esferas decisórias em instâncias subnacionais e supranacionais); (ii) a de-estatalização “dos regimes políticos reflectida na transição do conceito de governo (government) para o de governação (governança)”, em meio ao qual o aparelho estatal passa a assumir tarefas de coordenação (redefinição das estruturas de hierarquização de autoridades no plano doméstico); e, ainda, (iii) uma tendência de internacionalização do Estado nacional “expressa no aumento do impacto estratégico do contexto internacional na actuação do Estado” (que se materializa na impossibilidade substantiva de que o Estado se oponha a decisões exaradas de outras instâncias fora do Estado). (SANTOS, 2002, p. 37-38)

230

Sobre as múltiplas dimensões do conceito de soberania, cf. a seção 1.1.2.

231 Tradução livre de: “The nation-state is confronted with expectations that it was never

expected to fulfill.”. A fim de explicar o sentido em que o autor questiona a forma como as narrativas do fim-do-estado pretendem “provar” suas teses, colhe-se trecho do autor: “They observe co-operation and co-ordination, private actors crossing boundaries and transnational committees gaining a normative existence of their own, they compare these observations with the concept of undivided state sovereignty and remark that this concept is flawed nowadays. This diagnosis […] is used in many contributions as a proof of the end-of-the-state narrative.” (MÖLLERS, 2004, p. 332).

Estas tendências colocam em questão a “unidade” do Estado, tanto em relação ao que José Eduardo Faria (1999, p. 32) denomina de “comportamento unitário da esfera pública”, quanto em relação à identificação entre o Direito e o Estado veiculado através do princípio da territorialidade. O “comportamento unitário da esfera pública” vê-se confrontado pela “extrema diversidade de interesses privados e do crescente número de decisões econômicas tomadas fora do alcance de sua jurisdição funcional e de suas fronteiras territoriais.” (FARIA, 1999, p. 32). O espaço público passa a ser integrado com forças não-estatais e em espaços de deliberação igualmente não-estatais. Por sua vez, a ideia de unidade sistemática do Direito, concebida como desdobramento dos postulados da unidade, coerência e completude, cede espaço frente a mais um desacoplamento, agora, entre a identificação moderna que liga o Direito ao Estado.

Estes processos de redefinição funcional das tarefas do Estado, de acordo com a literatura sobre a globalização, são fortemente pressionados por mudanças estruturais na economia mundial e no correlato modelo de intervenção que se espera do Estado.

As crises da década de 70 anteciparam um processo de mudança na estrutura da “ordem mundial”. A organização econômica do pós- guerra cede lugar a uma economia globalizada. A primeira, caracteriza- se “pela utilização do direito como instrumento de controle, gestão e direção, pela participação direta do setor público como agente financiador, produtor e distribuidor” (FARIA, 1999, p. 110) e veicula uma concepção intervencionista de Estado que opera a partir de “políticas sociais formuladas com o objetivo de assegurar patamares mínimos de igualdade” (FARIA, 1999, p. 111). A segunda, economia globalizada, afirma-se “a partir da retomada dos fluxos privados de acumulação de capital e é progressivamente marcada pela desregulação dos mercados, pela ‘financeirização’ do capital, pela extinção dos monopólios estatais, pela privatização de empresas públicas, pela desterritorialização da produção e por uma nova divisão social do trabalho.” (FARIA, 1999, p. 111).

A afirmação desta nova lógica (economia globalizada) mina as bases de sustentação do modelo keynesiano de Estado232, duramente

232 José Eduardo Faria (1999, p. 123), valendo-se de sinônimos autoexplicativos, chama o

Estado keynesiano também de Estado “intervencionista, regulador ou ‘providenciário’”. Segundo o autor, trata-se de modelo de Estado que tem por objetivo formular, implementar e executar políticas macroeconômicas para a expansão capitalista, intervindo para concretizar o crescimento econômico e a redução de desemprego. Este modelo de Estado (vestfaliano- keynesiano) fornece, de acordo com Nacy Fraser (2009), o balizamento para que se possa

questionado por conta da onda neoliberalizante trazida à tona com a difusão do chamado consenso de Washington. As premissas estruturantes deste conjunto de ideias, em relação à (re)organização política dos Estados, assentam-se sob três consensos dominantes: o consenso do Estado fraco233; o consenso da democracia liberal234; o consenso do primado do direito e do sistema judicial235. (SANTOS, 2002, p. 41).

Ante esse cenário de crise e de esgotamento econômico do modelo centrado na atuação planificadora do Estado, operou-se uma disfuncionalidade crescente do Estado (social e regulador) e de seu instrumental normativo.

José Eduardo Faria (1999, p. 112) relata que esta crise é comumente associada, “tanto à incapacidade de planejar racionalmente sua intervenção, quanto de produzir respostas eficientes e coerentes ao conjunto disperso e contraditório de tensões, conflitos e demandas.” (FARIA, 1999, p. 112). Esta crise de regulação vem sendo chamada, pelos cientistas políticos, como “crise de governabilidade”236 e, pelos sociológicos e teóricos do direito, de “inflação legislativa”, “juridificação” (ou sobrejuridificação) e “trilema regulatório”. (FARIA, 1999, p. 117).

compreender e articular as demandas por uma justa ordenação social (política de reconhecimento de direitos e de formulação de critérios de distribuição de justiça).

233 “O consenso do Estado fraco é, sem dúvida, o mais central e dele há ampla prova no que

ficou descrito acima. Na sua base está a ideia de que o Estado é o oposto da sociedade civil e potencialmente o seu inimigo. [...] é, de todos os consensos neoliberais, o mais frágil e mais sujeito a contestações”. (SANTOS, 2002, p. 41).

234 “O consenso da democracia liberal visa dar forma política ao Estado fraco, mais uma vez

recorrendo à teoria política liberal que particularmente nos seus primórdios defendera a convergência necessária entre liberdade política e liberdade económica, as eleições livres e mercados livres como os dois lados da mesma moeda.” (SANTOS, 2002, p. 42)

235

“O consenso sobre o primado do direito e do sistema judicial é uma das componentes essenciais da nova forma política do Estado e é também o que melhor procura vincular a globalização política à globalização económica. [...] Num modelo assente nas privatizações, na iniciativa privada e na primazia dos mercados o princípio da ordem, da previsibilidade e da confiança não pode vir do comando do Estado. Só pode vir do direito e do sistema judicial, um conjunto de instituições independentes e universais que criam expectativas normativamente fundadas e resolvem litígios em função de quadros legais presumivelmente conhecidos de todos.” (SANTOS, 2002, p. 43).

236 “A noção de governabilidade tem sido associada à incapacidade de um governo ou de uma

estrutura de poder formular e de tomar decisões no momento oportuno, sob a forma de programas econômicos, políticas públicas e planos administrativos, e de implementá-las de modo efetivo, em face de uma crescente sobrecarga de expectativas, de problemas institucionais, de clivagens políticas, de conflitos sociais e de demandas econômicas.” (FARIA, 1999, p. 118-119).

A crise de governabilidade (ingovernabilidade sistêmica) define- se pela “perda da capacidade normativa de gestão, promoção, controle, direção e planejamento dos sistemas econômico, social e político por parte do Estado” (FARIA, 1999, p. 134). Esta crise instaura-se à medida que inúmeros dos seus fatores de estabilidade jurídico-institucional237 do Estado veem-se paralisados. Entre as consequências decorrentes da incapacidade decisória derivada da “ingovernabilidade sistêmica”, José Eduardo Faria (1999, p. 119) adverte sobre os riscos de “uma frustração explosiva, disfuncional e desestabilizadora da ordem jurídico- institucional”.

A outra face da crise de governabilidade, seus desdobramentos jurídicos, está associada ao rompimento da racionalidade sistêmica dos ordenamentos jurídicos e na incapacidade destes de fornecerem respostas rápidas e eficientes às demandas crescentes por produção legislativa.

Paradoxalmente, de um lado, o aumento da atividade legislativa do Estado multiplica as regulações e povoa os marcos regulatórios de particularidades e de pragmatismos que pervertem a sistematicidade racional-abstrata dos códigos; por outro lado, “quanto mais [o direito] procura disciplinar e regular todos os espaços, dimensões e temporalidade do sistema sócio-econômico, menos o Estado intervencionista parece capaz de mobilizar coerentemente os instrumentos normativos de que formalmente dispõe”. (FARIA, 1999, p. 128).

Esta dimensão da crise de governabilidade manifesta-se através de três sinais eloquentes: (i) por um processo de inflação legislativa238; (ii) pela juridificação (tribunalização) da política239; e, (iii) pelo

237 Entre tais fatores de estabilidade, podem ser elencados: “(i) coerência das decisões através

do tempo; (ii) eficácia de suas políticas públicas, encarada na perspectiva da consecução dos resultados em conformidade com os objetivos previamente definidos; (iii) a efetividade de suas medidas, em termos de sua aceitação social, que pode ir da simples aquiescência e reação passiva dos destinatários até o apoio ativo e organizado” (FARIA, 1999, p. 121-122).

238 A inflação legislativa está associada à multiplicação dos instrumentos regulatórios. Esta

profusão de normas acaba por “ampliar significativamente o espaço de discricionariedade judicial” (FARIA, 1999, p. 130) e, por via de consequênica, concorre para uma “desvalorização progressiva do próprio direito positivo, impedindo-o assim de exercer suas funções reguladoras e controladoras básicas por meio de suas normas, suas leis e seus códigos” (FARIA, 1999, p. 133)

239 “De um ponto de vista mais analítico, o aspecto relevante na “juridificação” é que ela torna

possível identificar a extensão ou o alcance da erosão das instituições jurídicas do Estado social ou intervencionista para muito além do problema do crescimento desordenado de normas originariamente elaboradas para responder a situações particulares e muito específicas. (...) a “juridificação” também permite identificar com relativa precisão o momento em que as disfuncionalidades, as incongruências e as contradições acumuladas conduzem o direito

chamado trilema regulatório decorrente de uma progressiva “indiferença recíproca entre o direito e a sociedade”240, de uma tentativa de “colonização da sociedade por parte das leis”241 e da crescente desintegração do direito por parte da sociedade. (FARIA, 1999, p. 137).

De acordo com a literatura tradicional sobre os processos de globalização, três são suas dimensões associadas à integração dos mercados que concorrem para a limitação da autonomia decisória dos Estados: liberalização do comércio internacional, mobilidade do capital financeiro e transnacionalização da produção. Nestes termos, a autonomia decisória dos Estados em formular políticas públicas vê-se significativamente limitada, em especial, no tocante à regulação macroeconômica e às políticas de bem-estar social. (BENTO, 2007, p. 169).

Em que pese tais restrições significativas, definitivamente não se pode falar em perda da capacidade decisória do Estado, nem diminuição de sua importância, mas de uma profunda alteração de suas funções.

Entre essas transformações destacam-se: (i) a necessidade de redimensionamento de sua soberania (no sentido de admissão de restrições e barganhas); (ii) a retirada do Estado das políticas keynesianas de bem-estar social; (iii) a redefinição do uso da força militar; (iv) a devolução e o compartilhamento de funções com outros níveis de governança (supra e subnacionais).

Tem-se que os Estados passam a direcionar sua atuação, no plano interno, com os olhos voltados para a promoção da competitividade da economia nacional e para a sua inserção no mercado global. Isto contribui, inclusive, para que Susan Strange (2003) conteste duramente,

regulatório aos seus próprios limites de eficácia, a partir dos quais suas regras são irrelevantes e, portanto, ignoradas por seus destinatários; ou, então, são relevantes, mas produzem efeitos altamente desagregadores na sociedade; ou, por fim, multiplicam as tensões antinômicas no interior do próprio sistema jurídico, levando-o deste modo ao nível de uma inexorável ruptura.” (FARIA, 1999, p. 136-137).

240 “por causa do alto grau de diferenciação estrutural e funcional das sociedades

contemporâneas, cada um de seus subsistemas sociais tenderia a respeitar basicamente as regras forjadas em seu interior e, por consequência, a desprezar as normas jurídicas emanadas do poder central do Estado. Ou seja: quanto mais complexos são os sistemas sociais, menores seriam a autoridade institucional do Estado e a efetividade de seu instrumental jurídico, em termos de controle direto das inúmeras interações entre indivíduos, organizações, grupos, classes, comunidades e coletividades” (FARIA, 1999, p. 138).

241

“por causa da sua dimensão cada vez mais teleológica ou finalística, de sua natureza altamente especializada e de suas crescentes intervenções “protetoras” (...), o direito positivo tenderia a tratar com categorias excessivamente “particularizantes” as relações sociais básicas, destruindo assim sua autenticidade e minando sua própria identidade”. (FARIA,1999, p. 138).

com base em elementos empíricos, a narrativa em torno da “perda de importância” do Estado.

De acordo com a autora, (i) a intervenção do Estado e de suas agências na vida diária da população parece estar aumentando ainda mais; (ii) apesar da diminuição do poder “real” dos Estados, cresce o número de demandas por reconhecimento de Estados; e, (iii) o vazio da autoridade do Estado afigura-se muito mais como um fenômeno ocidental, já que inúmeras experiências políticas asiáticas parecem contradizer a esta lógica. Estes elementos fornecem indícios a partir dos quais a autora defende que se está diante de um desequilíbrio ainda mais acentuado entre Estado, mercado e sociedade. (STRANGE, 2003, p. 133). Isto coloca em xeque a feição dramática acerca das exclusões e diferenciações, as quais, produzidas em escala amplificada, afiguram-se como efeito “colateral” destes processos de globalização (HELD; McGREW, 2003).

Os processos de desterritorialização das interações sociais, nos campos econômico, cultural e ambiental, desencadeados pela globalização deslocaram parcialmente o Estado como sítio predominante de regulação e exercício de governança. Esse deslocamento manifesta-se de dois modos principais. De um lado, a governança exercida pelo setor público tornou-se, por assim dizer, multinivelada, isto é, compartilhada por diversos níveis de comunidade, da localidade ao espaço mundial. Com efeito, os processos transnacionais provocaram a realocação de competências regulatórias tanto “para baixo”, ou seja, descentralizando a autoridade para o âmbito provincial ou municipal, quanto “para cima”, isto é, para esferas de autoridade intergovernamentais ou supranacionais, em âmbito regional ou global. Por outro lado, a globalização encorajou a proliferação da atividade regulatória por parte de novos atores não-estatais. A governança privada, com a participação de organizações não- governamentais e de corporações multinacionais, ora ocupa os espaços deixados pelos atores públicos, ora sobrepõe-se à regulação pública, ora mesmo compete ou coopera com ela.

3.2.2.Governança global e as bases institucionais para a

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