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Constituição como elemento de conformação espaço-temporal da identidade nacional

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

1. DA DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DO ESTADO MODERNO: BASES INSTITUCIONAIS DO MODELO DE

2.2. TEMÁTICAS CENTRAIS DA TEORIA CONSTITUCIONAL

2.2.4. Constituição como elemento de conformação espaço-temporal da identidade nacional

Por fim, o último elemento a ser aqui enfrentado diz respeito à questão concernente à construção de identidades. Como se pôde observar no capítulo anterior, foi o conflinamento de estranhos no interior das fronteiras geográficas do Estado soberano o fator decisivo para o desenvolvimento moderno da categoria de nação, a partir do qual

171 “Ao lado dos catálogos ou sistemas dos direitos e princípios fundamentais e em, nem

sempre, pacífica coexistência com eles, podem ser identificadas normas constitucionais que demarcam valores comunitários, se não divididos coletivamente, evidenciados por elites de interpretação e norma constitucional, como paz, segurança, bem-estar geral e, recentemente, solidariedade. Estes são acrescentados, geralmente, à moral política de uma sociedade.” (FRANKENBERG, 2000, p. 221).

172 Não é a constituição só um texto jurídico ou um emaranhado de regras normativas, mas

também, expressão de uma situação cultural dinâmica, meio de autorrepresentação cultural de um povo, espelho de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças. As constituições vivas, como obra de todos os intérpretes da Constituição em uma sociedade aberta, são, de acordo com sua forma e conteúdo, expressão e mediação da cultura, marcos para a recepção e reprodução cultural, assim como arquivo cultural das informações, experiências, vivências e o saber popular recepcionados. [...] a Constituição do Estado é uma «forma inventada que, vivendo, se desenvolve». (HÄBERLE, 1998, p. 46)

173 Nas palavras do autor, “a constituição é expressão de um certo grau de desenvolvimento

cultural, um meio de auto-representação própria de todo um povo, espelho de seu legado cultural e fundamento de suas esperanças e desejos.” (HÄBERLE, 2000, p. 34).

foram construídos os laços de identidade intracomunitários. No tocante à teoria constitucional, o problema das identidades e das fronteiras passa a ser problematizado a partir de outras necessidades, a questão central aqui passa a ser de que forma é possível conceber a abertura das fronteiras jurídicas para que seja possível abarcar outras realidades e grupamentos sem a diluição da própria normatividade constitucional.

Como assinalado anteriormente, a territorialidade representa o critério de organização da comunidade política, portanto, afigura-se como sua concepção estruturante. Recorrer à imagem das fronteiras (barreiras físicas) como o critério para conceber a constituição como limite, permite sublinhar o papel de produção de identidade comunitária que os diferentes discursos institucionalizados (ou não) sobre a constituição são capazes de construir. Desta forma, a imagem de “fronteira jurídica” forjada pela constituição permite trazer à tona os dois sentidos atribuíveis à identidade constitucional174: a identidade como semelhança (sameness) e a identidade como individualidade (selfhood). A primeira associada aos processos de identificação que permitem assinalar as semelhanças e a unidade no interior da comunidade política; a segunda associada aos processos de negação, em outras palavras, que permitem a diferenciação de determinada comunidade política em relação ao seu outro. (ROSENFELD, 2010, p. 27-36)

O primeiro sentido, de identificação e de integração, reúne as representações clássicas em torno do papel integrador e estruturante conferido à constituição como ordem fundamental da organização estatal. É a constituição que, ao pretender forjar “a dinâmica vital na qual se desenvolve a vida do Estado” (SMEND, 1985, p. 137), fornece os parâmetros para a identificação das diferentes facetas ínsitas a este modelo de organização política: (i) a autoridade estatal “autônoma, centralizada e com jurisdição territorial”; (ii) o ordenamento jurídico com “pretensão de integridade, hierarquia e coerência”; e (iii) a identificação de um interesse (bem) público temporal “que é, por um lado, superior aos bens particulares e, de outro, distinto dos fins e valores religiosos” (SANCHEZ AGESTA, 1974, p. 44-45).

Por seu turno, o segundo sentido, o de diferenciação, deriva do reconhecimento de que a constituição opera um duplo processo de diferenciação: de um lado, (i) ela permite a diferenciação entre direito e política (através da fixação das bases normativas do exercício do poder); de outro lado, (ii) a constituição delimita o espaço normativo doméstico

do internacional (regulando os mecanismos de interação entre estas ordens parcialmente sobrepostas).

Em ambos os sentidos mencionados, os processos de identificação e de demarcação reforçam (simbólica e institucionalmente) o enraizamento da autoridade estatal em bases territoriais e fornecem critérios para a construção de um sistema de produção normativa autorreferenciado175. É neste sentido que a noção de constituição como limite se articula à ideia de demarcação de fronteiras jurídicas.

A partir da reconstrução das narrativas em torno da relação entre soberania e constituição é possível identificar um conjunto de atributos associados à constituição (como limite) e essencial à institucionalização do modelo de “estado territorial soberano”, quais sejam: a territorialidade (demarcação dentro/fora), a unidade sistemática do ordenamento jurídico (coerência) e a cadeia de enfeixamento hierárquico das autoridades (decisão soberana).

Paradoxalmente, a projeção no tempo de uma constituição depende da sua capacidade de permitir a sua “reinvenção” diária, portanto, que a constituição insira-se no influxo das transformações contínuas sem a perda de sua identidade. O problema da sujeição da constituição ao influxo do tempo, ou seja, a tensão provocada pela interação dialética entre estabilidade e mudança (entre tradição e inovação) é liberada por uma “válvula de escape” que confere ao texto constitucional a possibilidade de sua adaptabilidade (sua capacidade de aprendizado). Esta possibilidade de transformar-se, sem perda de “identidade”, garante a condição simbólica de “sacralidade” do texto e perpetua a ideia de que o texto constitucional reproduz a realidade circundante (pelo menos, o conjunto de expectativas de sua sociedade).

As demandas por atualizações de sentido à narrativa constitucional são suscitadas e produzidas através de inúmeros mecanismos (institucionalizados ou não), através dos quais uma plêiade muito diversificada de atores (estatais, intergovernamentais e privados) interage, simultânea e concorrentemente, em múltiplas arenas decisórias (nacionais, internacionais e transnacionais).

No âmbito da teoria constitucional, tais demandas de atualização são comumente associadas ao caráter aberto, fragmentário e incompleto dos textos constitucionais.

175

Ressalva que não se pretende subscrever a perspectiva funcionalista de matiz luhmanniana que defende a diferenciação funcional do sistema jurídico a partir de um código binário (válido/inválido), autorreferenciado e que reage às irritações do ambiente, em especial, mediante acoplamentos estruturais.

A ideia de abertura constitucional encerra, contudo, múltiplos significados. É possível identificar a existência de pelo menos seis sentidos: (i) a ideia de abertura da constituição à realidade circundante propugnada pelo que se convencionou chamar de “teoria material da constituição”176 (em contraposição à teoria formal de caráter liberal) (LOIS, 2001; BONAVIDES, 2007, p. 147-170); (ii) a ideia de abertura semântica do texto constitucional (decorrente do caráter linguístico dos enunciados normativos, os quais, dada sua textura aberta, são marcados de certo grau de indeterminabilidade semântica) (HART, 2007, p. 137- 149; HESSE, 1998, p. 36-38)177; (iii) o caráter de incompletude do texto constitucional como resultante de opção deliberada do constituinte em promover soluções compromissárias (HOLMES, 1997), ou ainda, sobre a presença de acordos parcialmente teorizados (SUSTEIN, 2000); (iv) a presença de cláusulas de desenvolvimento (ou cláusulas de abertura), no âmbito da dogmática dos direitos fundamentais (SARLET, 2006; DOBROWOLSKI, 2005)178; (v) a presença de cláusulas de cooperação

176 No período entre-guerras, as questões relacionadas à estabilidade constitucional e às fontes

que constituiriam o objeto científico da ciência das constituições, suscitaram um rico debate que opôs normativistas (Kelsen) a anti-normativistas, no âmbito do chamado constitucionalismo material (Heller, Smend e Schmitt) (LOIS, 2001; LUCAS VERDÚ, 1990). Sob esta ideia podem ser encerradas diversas tentativas de integrar o texto constitucional à realidade circundante a partir do reconhecimento de que existe um conjunto de elementos extranormativos que não só condicionam a constituição em sentido formal como também se apresentam como condições de possibilidade dos diferentes processos de concretização constitucional (GARCÍA-PELAYO, 1993, p. 79-80). Para García-Pelayo, o processo de ruptura com a teoria formalista, que ganha proeminência teórica no contexto da República de Weimar (LUCAS VERDÚ, 1985), pode ser caracterizado: (a) pela separação metodológica entre Teoria do Estado e Teoria da Constituição, deslocando a questão central acerca da ideia de constituição circunscrita à função jurídico-regulatória do Estado para poder penetrar em sua substância; (b) pela identificação de um conceito de constituição a ser constituído não mais a partir da análise de suas partes integrantes, mas a tentativa de “identificar a totalidade de sua função”; (c) pela penetração do conceito sociológico com relativização ou menosprezo de sua feição normativa, fazendo introjetar seu caráter dinâmico; (d) pela politização do conceito de constituição (GARCÍA-PELAYO, 1993, p. 79-81).

177 O conceito de abertura semântica decorrente do grau de indeterminação inerente à própria

linguagem em razão da qual, no melhor e mais pormenorizado diploma legal, sempre existirão margens de indeterminação diante das quais o intérprete deverá optar entre diferentes possibilidades construídas a partir do texto normativo. Costuma-se referir que as normas constitucionais, por sua maior referibilidade a valores, acaba por revestir-se de um elevadíssimo grau de indeterminabilidade semântica (CANOTILHO, 1999).

178 Nesta seara, a questão da abertura constitucional ganha contornos mais relevantes, ao passo

que entra em cena o debate sobre a eficácia dos direitos fundamentais e sobre a sua dinâmica de positivação/reivindicação. Esta discussão materializa no reconhecimento de um grau maior de criatividade aos intérpretes constitucionais, conferindo-lhes a faculdade de, mediante o recurso a diferentes técnicas interpretativas, adscrever ao texto constitucional, diferentes enunciados normativos. É neste contexto que são desenvolvidas as teses concernentes: à garantia institucional dos direitos fundamentais (HÄBERLE, 1997b); à existência de direitos

através das quais a constituição permite uma articulação entre a ordem jurídica interna e internacional, conferindo maior operatividade à transplantação de elementos normativos para o plano doméstico, sobretudo no âmbito dos direitos fundamentais (HÄBERLE, 2007; JACKSON, 2009)179; e, por fim, (vi) à ideia de abertura ao diálogo que envolve a propensão de diferentes instâncias decisórias nacionais engajarem-se em um diálogo voluntário com outras experiências constitucionais (em quaisquer níveis), colocam em xeque os problemas relacionados à porosidade entre as ordens constitucionais e às interações a serem produzidas, frutos destes contatos (capacidade de abertura e diálogo) (SLAUGHTER, 1994; CHOUDRY, 1999; SCOTT, 2009)

Os últimos três sentidos interessam mais de perto à presente pesquisa e serão adiante enfrentados mais especificamente. Neste momento, convém tão-somente registrar que eles veiculam aquilo que é aqui tratado como um processo de abertura estrutural do texto constitucional, ou seja, o reconhecimento da constituição como um “compromisso de possibilidades” (ZAGREBELSKY, 1995, p. 14) que exige que os discursos constitucionais sujeitem-se, constantemente, a mecanismos de autorreflexão.

Poder-se-ia aduzir que a existência desta abertura estrutural da constituição teria o condão de diluir a sua própria normatividade. Todavia, o que se observa é que a teoria constitucional responde com “mais constituição”. Em quais termos? Concepções como “bloco de constitucionalidade” e de “estado constitucional cooperativo” acabam, de um lado, por reconhecer a redução da capacidade de autodeterminação dos textos constitucionais tendo em vista certa obrigatoriedade em abarcar outras realidades normativas (menos constituição), de outro lado, por ampliar e (re)legitimar os órgãos encarregados de defender a constituição (mais constituição, leia-se, mais Poder Judiciário).

não-enumerados (PARDO, 2005); à garantia do mínimo existencial em relação aos direitos sociais; à máxima de vedação de retrocesso social.

179

Gómez Fernández (2006), em sua obra, sugere duas categorias de cooperação entre fontes internas e internacionais: (a) a primeira é a abertura da Constituição ao direito internacional como parâmetro direto de controle de constitucionalidade, permitindo os órgãos encarregados de realizarem o ajuste de constitucionalidade/convencionalidade da legislação interna, tendo como parâmetro tanto a constituição como os tratados internacionais; (b) a segunda é uma abertura de menor intensidade que consiste em considerar os tratados como parâmetro interpretativo em mãos dos juízes, mediante uma cláusula de utilização preferente das fontes internacionais para interpretar o texto constitucional, o que ela traduz no “princípio da internacionalidade”.

Neste cenário de transição, sem pretender romper exatamente com esta ideia de constituição como limite, não se pode deixar de reconhecer que as “fronteiras” tornam-se cada vez mais porosas e permeáveis o que acaba por obscurecer, em grande medida, as diferenciações modernamente operadas pela constituição. Assim, defende-se neste trabalho que a constituição ainda mantém as funções de integridade e de integração da comunidade política, todavia, sob uma dinâmica distinta da lógica de organização do poder e dos discursos de legitimação próprios do modelo de “estado territorial soberano”, a partir da articulação de redes de interação e de ampliação dos mecanismos de diálogo institucional.

Em certo sentido, sem romper exatamente com a noção moderna de constituição, tal perspectiva contribui para uma reconfiguração daquilo que Günther Frankenberg (2007, p. 105) denomina de “metanormas da constituição” que, fixando regras de autorreflexividade no texto constitucional, garantem, “até certo ponto, a modernidade de Constituições, à medida que determinam seu status como supreme law of the land e as condições de mutabilidade”.

2.3.DO ESTADO TERRITORIAL SOBERANO AO ESTADO

CONSTITUCIONAL

2.3.1.Desvelamento dos vínculos entre o modelo de estado

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