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CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

3. ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E O NÃO-ESTADO TRANSNACIONAL: DOS PROCESSOS DE DESCONSTRUÇÃO

3.3.3. Processos de produção de espaços transnacionais de regulação

O objetivo desta seção é demonstrar que os espaços transnacionais de regulação são gerados a partir de diferentes movimentos (vetores), que se constituem tanto a partir da alteração nas relações entre os espaços tradicionais de regulação (relações entre o direito internacional e o direito interno), quanto na insurgência de novas relações transversais (ou transfronteiriças) entre atores e agentes não- governamentais (regimes autônomos e atores com atuação transnacional).

Uma melhor compreensão destes movimentos será feita quando forem analisados, adiante,: (i) o processo de expansão do direito internacional (4.1); (ii) a insurgência de regimes privados de regulação transnacional (4.2); e, (iii) as novas formas de relação entre o direito interno e internacional (5.1).

3.3.3.1.Os sistemas regulatórios tradicionais como lugares de produção de regulação transnacional

No quadro mundial de expansão dos espaços de regulação transnacionais, o direito interno e o direito internacional assumem uma posição de destaque, pois a expansão do direito internacional (a ser detalhada no item 4.1), ao ampliar a regulação internacional, provocou no direito interno reações de adaptabilidade a esses novos desafios suscitados, o que tem ampliado significativamente as zonas de interação entre essas clássicas e autônomas concepções do direito moderno. Nesta subseção, será apresentado um movimento de avanço do direito internacional e um de reação (adaptabilidade) do direito interno.

No que se refere ao avanço do direito internacional, um fenômeno recente chama a atenção: a universalização dos direitos

humanos por meio do denominado Direito Internacional dos Direitos Humanos.

Nesse âmbito, desde a aprovação, em 1948, da Declaração Universal dos Direitos Humanos e, em especial, após a aprovação dos Pactos Internacionais de Direitos Civis, Políticos, Econômicos, Culturais e Sociais, em 1966, o processo de irradição tem sido crescente, sobretudo por atuação dos sistemas regionais de proteção dos direitos humanos.

O sistema europeu é o mais antigo, datando de 1955 (anterior, portanto, aos Pactos de 1966), e tem vivido, ano após anos, um processo de intensificação do número de demandas que lhe são apresentadas.276 Trata-se de um sistema regional dotado de uma caracterísita única, pois é o único a permitir o peticionamento individual diretamente à Corte (Européia de Direitos Humanos), órgão jurisdicional do sistema europeu que conta com aproximadamente 750 milhões de cidadãos passíveis de a ele recorrerem.

O sistema americano data de 1978, ano em que entra em vigor a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica), promulgada em 1969, e os dois órgãos de execução da Convenção: a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e a Corte Interamericana de Direitos Humanos.

Trata-se de um sistema que não permite o acesso direto do indivíduo aos órgãos executivos, mas que nem por isso tem deixado de desenvolver um papel importante na apreciação e julgamento de importantes casos de violações dos direitos humanos na América Latina, em especial no que se refere às ditaduras que assolaram o continente na segunda metade do século passado.

Percebe-se, ainda que a partir de uma análise suscinta, que a segunda metade do século passado e o ínicio deste assistiram a uma verdadeira explosão do fenômeno “proteção internacional dos direitos humanos”, levando o mundo de uma condição de ostracismo ao advento, desenvolvimento e, em certa medida, consolidação de três sistemas regionais de direitos humanos, além do surgimento de uma

276 Hélio Bicudo (2003, p. 225-236). noticia que “[...] de 1955 (data de entrada em

funcionamento da Comissão) a 31 de outubro de 1998, foram registrados 44.056 pedidos na Comissão, dos quais 5.006 no ano de 1988. Se a média anual de pedidos registrados é de 444, de 1975 a 1984, ela atinge 3.102, de 1990 a 1998; o ano de 1988 vê o limite de mil petições anuais ser ultrapassado sucessivamente, nos anos de 1993, 1995, 1996 e 1998, com duas, três, quatro e cindo mil petições, respectivamente. Segundo informa o professor Cançado Trindade, presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, a Corte Européia se vê, hoje em dia, às voltas com cerca de 26 mil demandas em diferentes níveis de processamento”.

série de tratados e convenções de caráter internacional tendentes a efetivar a garantia dos mais básicos direitos da pessoa humana. E em que pese tratar-se de sistemas de adesão voluntária – como na essência não poderia deixar de ser –, as adesões dos Estados e a submissão às decisões dos órgãos executores desses sistemas tem dado uma nova feição ao direito transnacional.

Em contrapartida, esse avanço dos sistemas de proteção dos direitos humanos tem acarretado um processo de contenção, defesa e adaptação dos sistemas internos dos Estados, que vêm se abrindo, cada um ao seu modo e em graus diferenciados, a uma espécie de supremacia do direito internacional dos direitos humanos, aumentando os espaços transnacionais e alimentando o direito transnacional que lhe é correlato.

As estratégias institucionais dos Estados com vistas a lidar com a questão do avanço do direito internacional dos direitos humanos são as mais variadas, sendo uma das mais frenquentemente utilizadas as chamadas “cláusulas de abertura”, que variam, e muito, em grau.

O caso brasileiro fornece duas modalidades de abertura constitucional ao direito internacional dos direitos humanos. A primeira é a abertura material do §2º do art. 5º, da Constituição, segundo o qual os direitos e garantias expressos na Constituição “não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte”. Em segundo lugar, apresenta o texto uma abertura de ordem formal (procedimental) constante do §3º do mesmo art. 5º, que estabelece: “Os tratados e convenções internacionais sobre direitos humanos que forem aprovados, em cada Casa do Congresso Nacional, em dois turnos, por três quintos dos votos dos respectivos membros, serão equivalentes às emendas constitucionais.”

O caso da Constituição sul-africana é, talvez, o mais paradigmático em termos de abertura constitucional ao direito internacional dos direitos humanos. Isso porque se trata do mais incisivo texto constitucional, visto que impõe a qualquer órgão jurisdicional daquele país que, ao interpretar a “Bill of Rights”, considere o direito internacional.277 Não se trata de faculdade, mas de verdadeira obrigação constitucional.

277 “39. (1) When interpreting the Bill of Rights, a court, tribunal or forum:

(a) must promote the values that underlie an open and democratic society based on human dignity, equality and freedom; (b) must consider international law; and (c) may consider foreign law.

Esses exemplos demonstram que na busca por legitmidade material e como estratégia de adaptabilidade frente ao avanço do direito internacional dos direitos humanos, os Estados buscam se valer de mecanismos constitucionais internos que reconhecem e, não raramente, incorporam o direito internacional dos direitos humanos ao próprio direito interno, criando espaços transnacionais de regulação de contato entre direito interno e direito internacional.

3.3.3.2.A formação autônoma (independente do Estado) de espaços regulatórios transnacionais

Após discorrer na subseção anterior sobre algumas das facetas mais expressivas do direito transnacional em sentido amplo, faz-se mister fazer breve alusão (pois a análise será retomada no item 4.2) a dois exemplos de formação de espaços regulatórios transnacionais: a OMC (Organização Mundial do Comércio) e a FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado).

Sediada em Genebra, Suíça, e contando atualmente com 153 membros, a OMC é uma organização internacional reguladora do comércio entre Nações. Instituída formalmente somente em 1º de janeiro de 1995, antes a sua função básica desenvolvia-se no âmbito do GATT (General Agreement on Tariffs and Trade). Como se deprende da própria home page da instituição:

Constitui o núcleo da OMC os denominados Acordos da OMC, negociados e firmados pela maioria dos países que mantêm intercâmbios comerciais. Esses documentos estabelecem as normas jurídicas fundamentais do comércio internacional. São, no essencial, contratos que obrigam os governos a manter suas políticas (2) When interpreting any legislation, and when developing the common law or customary law, every court, tribunal or forum must promote the spirit, purport and objects of the Bill of Rights.

(3) The Bill of Rights does not deny the existence of any other rights or freedoms that are recognised or conferred by common law, customary law or legislation, to the extent that they are consistent with the Bill.” .

Disponível em:

http://www.polity.org.za/html/govdocs/constitution/saconst.html?rebookma rk=1. Acesso em: 03 set. 2005.

comerciais dentro de limites convencionados. São negociados e firmados pelos governos, mas sua finalidade é ajudar os produtores de bens e serviços, os exportadores e os importadores a desenvolver suas atividades, permitindo que os governos alcancem objetivos sociais e ambientais.278

Da definição apresentada pela própria organização depreende tratar-se de um órgão que estabelece “as normas jurídicas fundamentais do comércio internacional”, tratando-se, pois, de um organismo para além dos Estados que, além de produzir normatividade, ainda possui o poder de julgar demanas comerciais entre seus membros autorizando, em situação final, que um Estado-membro possa retaliar o outro pelo descumprimento de algum Acordo.

A OMC possui uma característica que a mantém mais atrelada aos Estados: o conjunto normativo dela advindo é produzido pelos Estados, o que demarca o caráter voluntário de adesão dos Estados à organização. Porém, indiscutivelmente trata-se de um fórum que atua transnacionalmente regulando relações e solucionando conflitos para os quais o direito interno de cada Estado não possui instrumental apto para lidar.

Outro exemplo de organização que constitui espaço de produção de normatividade para além do Estado – e aqui com total indiferença aos Estados –, pois se trata de uma entidade privada, é a FIFA (Federação Internacional de Futebol Associado, ou simplesmente, Federação Internacional de Futebol), que atualmente conta com 208 membros.

278

Tradução livre de: “Constituyen el núcleo de la OMC los denominados Acuerdos de la OMC, negociados y firmados por la mayoría de los países que mantienen intercambios comerciales. Esos documentos establecen las normas jurídicas fundamentales del comercio internacional. Son en lo esencial contratos que obligan a los gobiernos a mantener sus políticas comerciales dentro de límites convenidos. Son negociados y firmados por los gobiernos, pero su finalidad es ayudar a los productores de bienes y servicios, a los exportadores y a los importadores a desarrollar sus actividades, si bien permitiendo que los gobiernos alcancen objetivos

sociales y ambientales.” (Disponível em

http://www.wto.org/spanish/thewto_s/whatis_s/who_we_are_s.htm Acesso em 10 abril 2011).

Em seu sítio institucional encontra-se a afirmação de que os “Estatutos da FIFA e o seu regulamento de aplicação equivalem à Constituição do órgão máximo do futebol internacional. Eles determinam as leis básicas do futebol mundial, com base nas quais são definidas inúmeras regras sobre competições, transferências, questões de doping e uma variedade de outros assuntos.”279

Trata-se, pois, de uma organização privada, registrada e sediada na Suíça de acordo com as prescrições do Código Civil daquele país, que produz e oferece às Confederações dos 208 membros, as regras básicas do futebol.

Em que pese trata-se de uma organização privada que regulamenta um esporte, a capacidade da FIFA de gerar movimentos de adaptabilidade dos Estados tem chamado à atenção. Especialmente quando da realização do maior evento esportivo que a entidade organiza, a Copa do Mundo de Futebol, o poder que a instituição demonstra é digno de destaque.

Quando da realização da Copa do Mundo da África do Sul, em 2010, um episódio causou estranheza aos que ainda se vinculam intensamente à soberania estatal. Durante uma partida entre Holanda e Dinamarca, um grupo de 36 mulheres foi expulso do estádio Soccer City por agentes (seguranças) da própria FIFA sob a acusação da prática de propaganda de uma marca de cerveja que não a oficial do evento. O detalhe curioso é que, após serem abordadas por agentes da entidade, as mulheres foram levadas para dependências da própria FIFA e interrogadas durante horas, ficando ali, pois, detidas. A FIFA negou a detenção, contrariando a versão das torcedoras.280

Independentemente da comprovação (ou não) de agentes FIFA atuando como agentes estatais na África do Sul, é fato incontroverso que a “pedido (ou a mando) da FIFA o governo da África do Sul montou um tribunal onde o sujeito era julgado em tempo recorde (no mesmo dia do delito)”281, a ponto de “uma juíza de Johanesburgo disse nunca ter visto nada parecido”282.

279 Disponível em <http://pt.fifa.com/aboutfifa/federation/statutes.html>. Acesso em 17abril

2011.

280 Disponível em < http://www.lancenet.com.br/noticias/10-06-15/772765.stm >. Acesso em

17abril 2011. 281 Disponível em: < http://carosamigos.terra.com.br/index_site.php?pag=revista&id=146&iditens=715> Acesso em 17 abril 2011. 282 Disponível em: < http://carosamigos.terra.com.br/index_site.php?pag=revista&id=146&iditens=715> Acesso em 17 abril 2011.

Em suma, trata-se de uma entidade privada, sem qualquer participação estatal em sua composição ou gestão e que tem o poder de obrigar países sede de sua maior competição a realizarem adequações em sua legislação ou práticas judiciárias.

3.3.3.3.Qual o grau de importância das estruturas institucionais do Estado-nação para regulação em meio a esses espaços transnacionais de regulação?

Apesar do crescimento de uma infinidade de instâncias regulatórias constituídas “para além do Estado”, inclusive, sem qualquer participação deste, não parece ser crível que se possa decretar “o fim do Estado”.

A estrutura burocrático-institucional do Estado ainda representa um elemento absolutamente essencial para o funcionamento das instituições que constituem a chamada “governança global”, tanto como instâncias de operacionalização, quanto como instância de produção de fatores de convergência material. Mas inegavelmente o quadro é distinto do que se apresentava na vigência do modelo de “estado territorial soberano”.

A questão principal não é, na essência, o problema da perda de centralidade do Estado, mas a existência de múltiplas formas de organização concorrentes ao modelo exclusivo de organização centrada no estado territorial soberano, sofrendo o direito moderno de um grave déficit normativo-instrumental capaz de fazer frente a essa multiplicidade de “espaços”.

Nesse contexto, a idéia de espaço territorialmente localizado sede espaço, por mais que ainda subsista (nos planos interno e internacional) e ainda mantenha um locus privilegiado dentro da governança global, perde sua importância (em velocidade acentuada) em prol de outro espaço, de caráter não territorial, mas funcional: os aqui denominados “espaços transnacionais”, que decorrem das zonas de interação entre o direito interno, o direito internacional e a regulação advinda das corporações econômicas e das organizações civis, e que criam as condições propícias para o surgimento e/ou atuação do direito transnacional.

Mas ainda que nesse quadro de interações e relações multifacetadas, – como autêntico legado cultural (globalização do rule of law) – os Estados – ainda – recorrem à ideia de dotar-se da sua

“própria” constituição como condição para o reconhecimento de sua identidade internacional, representando uma espécie de compromisso generalizado em torno da necessidade da existência de um instrumento constitutivo que, paradoxalmente, ao mesmo tempo que representa a corporificação da independência do Estado, representa um fator de limitação do exercício do próprio poder pelas instituições estatais.

Contudo, os Estados dependem deste documento para que sejam dotados de critérios para aferição externa do grau de legitimidade material de suas instituições políticas. Portanto, se não se pode prescindir do Estado, igualmente não se pode prescindir da presença de uma constituição.

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