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Eclipse do modelo de “estado territorial soberano”: do “princípio da territorialidade” para além das fronteiras do Estado-

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

3. ENTRE O ESTADO-NAÇÃO E O NÃO-ESTADO TRANSNACIONAL: DOS PROCESSOS DE DESCONSTRUÇÃO

3.1.3. Eclipse do modelo de “estado territorial soberano”: do “princípio da territorialidade” para além das fronteiras do Estado-

nação.

Nos termos assumidos por este trabalho, o edifício do Estado- nação erige-se sobre um verdadeiro acoplamento da autoridade pública à noção de território, de forma que o modelo operativo de Estado moderno traduz-se, portanto, na noção de estado territorial soberano. Este modelo erige-se com base no princípio da territorialidade, por meio do qual a unidade do Estado-nação foi construída e a pretensão de justa ordenação social foi articulada. Nestes termos, o princípio da territorialidade “presume uma correspondência direta entre sociedade, economia e política dentro de um território nacional exclusivo e limitado”211 (HELD, McGREW, 2003, p. 8)

Por seu turno, em termos epistemológicos, a territorialidade afigura-se como a unidade metodológica por meio da qual a cartografia do poder distribui a autoridade em termos de unidades territoriais limitadas (bordered territorial unit)212 (SCHOLTE, 2003, p. 89). Adotar esta perspectiva metodológica implica reconhecer, de acordo com Jan Scholte, a existência de um quadro conceitual segundo o qual:

[...] “lugar” refere-se a localização fixa em determinado mapa; “distância” refere-se ao percurso a ser realizado entre os pontos identificados no mapa; e, “fronteira” refere-se à linha, no mapa, que divide segmentos na superfície da terra em favor de cada um. Territorialismo implica que o espaço social macro

211 Tradução livre de: “That principle [territoriality] presumes a direct correspondence between

society, economy and polity within an exclusive and bounded national territory.”.

212

Nas palavras do autor: “Methodological territorialism lies at the heart of mainstream conceptions of geography, economy, governance, community and society. Thus geographers have traditionally conceived of the world in terms of bordered territorial (especially country) units.” (SCHOLTE, 2003, p. 89).

é inteiramente organizado em termos de unidades como distritos, cidades, províncias, países e regiões.213 (SCHOLTE, 2003, p. 86).

Como antes salientado, os diferentes processos de globalização repercutem diretamente nas formas de organização das diferentes dimensões da vida social (sócio-econômica, política e institucional) e implicam, respectivamente: (i) em relação à organização sócio- econômica, na erosão das limitações do tempo e do espaço nos padrões de interação social, suscitando a necessidade de desenvolvimento de padrões de organização social transnacional, a exemplo das redes de produção global e de regimes regulatórios; (ii) em relação à organização territorial, no rompimento da relação entre território e espaço político, na medida em que as diferentes interações “já não podem mais ser compreendidas como coincidentes com os limites territoriais nacionais”214; e, (iii) em relação à organização nos padrões de poder, na reordenação de sua correlação de forças que perpassa a maior parte das regiões do mundo, de tal forma que “os locais-chave do poder e aqueles que lhe são sujeitados encontram-se literalmente separados por oceanos”215.

Este conjunto de pressões concorre para a formação de um novo espaço, para além do espaço nacional, caracterizado por sua fluidez e dinamismo, definido por Jan Scholte (2003, p. 85) como espaço supraterritorial, como resultado direto do “crescimento de relações supraterritoriais entre os povos”216. A insurgência deste novo âmbito espacial importa na reconfiguração do espaço social e reforça o

213

Tradução livre de: “(…), 'place' refers to a fixed location on such a map; 'distance' refers to the length of a track that connects points on this map; and 'border' refers to a line on this map which divides tracts on the earth's surface from each other. Territorialism implies that macro social space is wholly organized in terms of units such as districts, towns, provinces, countries and regions.”(SCHOLTE, 2003, p. 86).

214

Nas palavras dos autores: “Globalization disrupts this correspondence in so far as social, economic and political activity can no longer be understood as coterminous with national territorial boundaries. This does not mean that territory and place are becoming irrelevant, but rather that, under conditions of contemporary globalization, they are reinvented and reconstructed, that is, increasingly cast in a global context (Castells 1996; Dicken 1998). (HELD; McGREW, 2003, p. 7-8)

215 Nas palavras dos autores: “In this respect, it involves a reordering of power relations

between and across the world's major regions such that key sites of power and those who are subject to them are literally oceans apart.” (HELD; McGREW, 2003, p. 8)

216 Nas palavras da autora: “The proliferation and spread of supraterritorial - or what we can

alternatively term 'transworld' or 'trans border' - connections brings an end to what could be called 'territorialism', that is, a situation where social geography is entirely territorial. Although, as already stressed, territory still matters very much in our globalizing world, it no longer constitutes the whole of our geography.” (SCHOLTE, 2003, p. 85)

reconhecimento de que o espaço é uma das “dimensões primárias das relações sociais”217

Jan Scholte (2003, p. 87) defende a necessidade de que seja construído um novo arsenal conceitual que capture o “ponto-chave em questão, o aspecto geográfico” (the key geographical point at issue). Entra em cena uma nova dimensão à localização tridimensional do espaço das relações, qual seja, a “globalidade” que introduz, na visão da autora, “um sentido de simultaneidade e instantaneidade transmundial, no sentido de um único espaço mundial”. 218

Esta guinada lança as bases para a construção de uma nova geografia social que dê conta do rompimento tridimensional em curso, ou seja, do acréscimo à geografia tridimensional (longitude, latitude e altitude) de um novo elemento (a globalidade) que conferiria ao espaço uma perspectiva polidimensional. Esta reconfiguração da geografia produz importantes implicações “para as estruturas de produção, governança, comunidade e conhecimento” e “requer uma mudança substancial nas formas como se teoriza e realiza a política” (SCHOLTE, 2003, p. 90).

Jan Scholte (2003, p. 90) reconhece a relevância da territorialidade e defende que as relações globais não se configuram como suas antíteses, do contrário, tanto produzem inúmeras reterritorializações, quanto “articulam-se de alguma forma com espaços territoriais, governos territoriais e identidades territoriais.” Ao fim, propugna que quanto mais intensos os processos de globalização, tanto menos importância tende a ser atribuída à territorialidade.

Apesar da relevância de suas análises e de sua engenhosidade criativa no tocante à articulação das noções de simultaneidade e instantaneidade a um “espaço supraterritorial” acoplado a outras localizações tridimensionais, ao postular esta progressiva redução da importância a ser atribuída à territorialidade (mesmo redimensionada), a

217 Nas palavras da autora: “After all, space is one of the primary dimensions of social

relations. (…).The spatial contours of a society strongly influence the nature of production, governance, identity and community in that society - and vice versa. (…)The spatial and other primary aspects of social relations are deeply interconnected and mutually constitutive.” (SCHOLTE, 2003, p. 85).

218 Nas palavras da autora: “Hence globality in the sense of transworld simultaneity and

instantaneity - in the sense of a single world space - refers to something distinctive that other vocabulary does not cover. Some readers may cringe at the apparent jargon of 'globality', 'supraterritoriality', 'transworld' connections and 'trans border' relations. Yet preexistent words like 'international', 'supranational' and 'transnational' do not adequately capture the key geographical point at issue. New terminology is unavoidable.” (SCHOLTE, 2003, p. 87).

autora parece ainda adscrever-se a uma identificação entre território e territorialismo, apesar de pretender renunciar a esta identificação.

A insurgência do espaço supraterritorial não prescinde do elemento territorialidade, mas exige sua ressignificação que promova seu desacoplamento de seu correspondente funcional: o “estado territorial soberano”, o modelo de Estado-nação219. (KEATING, 2002).

Nestes termos, Michael Keating (2002) reconhece que o território constitui um elemento fundamental na ordem política220 e atualmente experimenta um processo de mudanças estruturais de natureza funcional, política e normativa, exigindo-lhe esforços de ressignificação.

Quanto à mudança no aspecto funcional, ela ocorre tanto nos domínios econômico, quanto cultural. Sua manifestação se materializa através de diferentes processos de reterritorialização, de um lado, através da reinsurgência do interesse nas economias locais e regionais, vistas como motores de mudança no âmbito do sistema global221; de outro, através da forma como operam os processos de produção, desenvolvimento e ‘progresso’ cultural que requerem diferentes padrões de interação espacial222 (territorially bounded) e o desenvolvimento de mecanismos institucionais igualmente circunscritos territorialmente. Por fim, sentencia, o autor, “apesar da internet, dos satélites e de toda a parafernália da comunicação moderna, as comunidades linguísticas e culturais veem-se, como nunca, precisando de seu próprio espaço físico.”223 (KEATING, 2002, p. 6).

Em relação à mudança no aspecto político, o autor ressalta que os processos de reterritorialização da política têm sido marcadamente desiguais e impulsionados por diferentes forças. Estes vetores das transformações decorrem tanto da mobilização subnacional, quanto de

219 Com este propósito, o autor sumariza alguns dos fatores de crise experimentados pelo

Estado em diferentes dimensões, arguindo em que medida a ideia de territorialidade permanece presente, exigindo, do contrário, a sua ressignificação. (KEATING, 2002)

220

De acordo com o autor, a dimensão territorial opera como um filtro que, inconscientemente, conforma as análises sobre o fenômeno político. Todavia, a noção de territorialidade acaba sendo obliterada pela presença do Estado. Muito frequentemente, a importância do território é negada, ou reduzida, à mera sobreposição em um determinado espaço a outros fatores (KEATING, 2002, p. 4).

221

“Space is no longer a matter of mere topography but takes on a social and cultural meaning, which sustains different types of market economy and different degrees of competitiveness. Regions and localities have thus emerged as new spaces of production which, in a globalising economy, must compete against each other to gain advantage.” (KEATING, 2002, p. 6)

222 Tratam-se de transformações tanto subnacionais, e.g. Quebec, quanto globais, em face da

difusão dos direitos humanos.

223 Tradução livre de: “despite the internet, satellites and the whole paraphernalia of modern

communication, linguistic and cultural communities seem more than ever in need of their own physical space.” (KEATING, 2002, p. 6).

processos de integração supraestatal224. Tais fatores concorrem para que o autor afirme que “novas ligações entre território e função têm se evidenciado, já que os estudiosos têm identificados novos sistemas funcionais emergindo acima, abaixo e por entre o Estado-nação.”225 (KEATING, 2002, p. 6).

Por fim, no tocante à mudança no aspecto institucional, a criação de agências supranacionais e, no plano dos Estados, de governos intermediários (intermediate, regional, or ‘meso’ government) (KEATING, 2002, p. 9) concorrem para a consolidação de processos de transferência funcional de competências e de descentralização funcional das instâncias governamentais. Concomitantemente e, em algumas situações, como principais motores, percebe-se a ocorrência de um deslocamento das fronteiras entre o governo, o mercado e a sociedade civil (KEATING, 2002, p. 10), colocando em xeque a dupla diferenciação operada pela modernidade (mas nunca resolvida) entre espaço público e privado e entre as fronteiras do Estado e o seu entorno. Nos termos aqui apresentados, para os fins deste trabalho, a territorialidade como princípio organizativo demanda por sua reinvenção, por um processo de profunda ressignificação a fim de que seja reorganizada “em diversos espaços segmentados e entrelaçados” (FARIA, 1999, p. 324).

Para finalizar este tópico, já como prenúncio acerca do problema da regulação a ser enfrentado adiante, recupera-se a lição de José Eduardo Faria no tocante ao impacto sobre a capacidade regulatória do direito decorrente dos processos de desestabilização do modelo de estado territorial soberano. Para ele, estes fatores de desestabilização decorrem de um processo de progressiva fragmentação e multiplicação de arenas decisórias, em distintos níveis e lugares e acabam:

(a) comprometendo a “centralidade” e a “exclusividade” do direito positivo; (b) criando grandes obstáculos para a efetividade dos controles democráticos tradicionais; (c) conduzindo à proliferação de centros decisórios com distintos graus de poder coercitivo; (d)

224 No âmbito europeu, o debate em torno da ausência de um demos resulta de uma equivocada

tentativa de compreensão do espaço de integração política europeia a partir da projeção do paradigma do Estado-nação. De acordo com o autor, a identidade europeia deve ser “combinada com diferentes formas de identidade estatal e sub-estatal” (KEATING, 2002, p. 8).

225 Tradução livre de: “In recent years, new links between territory and function have become

apparent as scholars have identified new functional systems emerging above, below and across the nation state.” (KEATING, 2002, p. 5)

abrindo caminho, por consequência, para uma explosão de instâncias geradoras de normatividade; (e) produzindo regras jurídicas com as feições antes das de um contrato negocial do que das de um estatuto imperativo; e, (f) fazendo do universo político-institucional uma [complicada miscelânea de questões em áreas ou setores políticos, em que convivem uma multiplicidade de grupos (estados, fragmentos burocráticos de estados, corporações transnacionais, organizações transnacionais, organizações internacionais, indivíduos, etc)]. (FARIA, 1999, p. 324-325)

A imagem de um patchwork (miscelânea) se coaduna, em grande medida, com a descrição feita por Neil Walker (2008a), acerca da insurgência de uma “desordem de ordens jurídicas” que, subvertendo a ideia de hierarquização ordenadora que estruturou o sistema de Estados em bases territoriais, permite o reconhecimento de que não pode mais existir um único padrão de interação capaz de definir e abarcar todas as formas de inter-relação entre ordens jurídicas.

Nestes termos, a unidade territorial deixa de ser o critério de ordenação social proeminente, para conviver com novos espaços de regulação transnacional.

3.2.A PERDA DA CENTRALIDADE DO ESTADO COMO AGENTE

DE REGULAÇÃO SOCIAL NOS PLANOS INTERNO E

INTERNACIONAL

A tese do fim dos estados-nação tem mais de um século (MÖLLERS, 2004)226. Em que pese ser suscitada em contextos e por fundamentos radicalmente distintos, esta postulação não é uma novidade contemporânea.

226

“Coming from French syndicalists, such as Léon Duguit, and British Pluralists, such as young Harold J Laski, this narrative made a long theoretical journey, appearing throughout Carl Schmitt’s oeuvre. But if one takes the old texts of early theorists such as Duguit and Laski and replace words like ‘trade unions’ or ‘Catholic church’ with words like ‘multi-national corporation’ or ‘non-governmental organisation’, you will be struck by how ‘contemporary’ this discourse really is: the theory has changed very little in the last hundred years, although the political and institutional background is totally different.The narration of its history could help the actual discussion to put itself into a context and to question clichés about the institutional development.” (MÖLLERS, 2004, p. 331).

Não há dúvidas de que se está diante de processos de mudanças significativas no sistema interestatal que comprimem e desafiam a capacidade regulatória do Estado enquanto “unidade privilegiada e exclusiva da gestão econômica, direção política, controle social e iniciativa legislativa” (FARIA, 1999, p. 39) e corroem a capacidade de controle das interações e fluxos transfronteiriços de “pessoas, bens, capital ou ideias, como o fez no passado.” (SANTOS, 2002, p. 36). Ambas as situações concorrem para uma “perda da centralidade das práticas interestatais” e uma significativa alteração dos seus “padrões de institucionalidade”227. (SANTOS, 2002, p. 62). Todavia, não se pode prescindir do Estado, mesmo quando se tem em mente os regimes jurídicos que se impõem independentemente do Estado, até mesmo porque são os Estados-nação que “produzem claramente um ambiente normativo, o qual se constitui como condição para estas diferentes formas de governança transnacional ‘privada’228”. (MÖLLERS, 2004, p. 333).

Este debate, em certo sentido, vem sendo dificultado por aquilo que Michael Keating (2002, p. 3) chamou de “obsessão moderna” em torno da figura do Estado e dos padrões de territorialidade a ele vinculados. Ademais, as próprias transformações levadas a cabo no curso dos processos de globalização, encerram inúmeras contradições quanto à (ir)relevância da figura do Estado, uma vez que incluem “tanto processos de estatização – a tal ponto que se pode afirmar que os Estados nunca foram tão importantes como hoje – como processos de desestatização em que interacções, redes e fluxos transnacionais da maior importância ocorrem sem qualquer interferência significativa do Estado”. (SANTOS, 2002, p. 54)

Neste cenário, ao se colocar em relevo os impactos das globalizações na dimensão política do modelo organizacional consolidado ao longo da modernidade, impõe-se a tarefa de repensar o

227 “Uma das diferenças mais significativas do SMET [Sistema Mundial em Transição] em

relação ao SMM [Sistema Mundial Moderno] é a relativa perda de centralidade das práticas interestatais em face do avanço e do aprofundamento das práticas capitalistas globais e das práticas sociais e culturais transnacionais. Essa perda de centralidade traduz-se na maior interferência a que as práticas interestatais estão sujeitas por parte das outras constelações de práticas.

Tal interferência provoca alterações internas na institucionalidade das práticas interestatais. Por exemplo, as agências financeiras multilaterais adquirem crescente proeminência em relação aos Estados; e o mesmo ocorre nas formas de direito com a sobreposição do direito de integração regional ao direito nacional.” (SANTOS, 2002, p. 62).

228 “Nation-states are not the main actors in these contexts, although they clearly produce a

normative environment which is the condition for these forms of ‘private’ transnational governance.” (MÖLLERS, 2004, p. 333).

Estado, a partir de ressignificações do princípio da territorialidade e do fator de contenção que as suas fronteiras físicas ainda representam. Com este desiderato, são comumente levantadas três questões que enfrentam o significado político das globalizações: (i) os desafios à capacidade decisória, reguladora e de controle do Estado; (ii) a intensificação das relações de interdependência e a interação de novos atores nas arenas políticas transnacionais; e, (iii) a constituição de complexos regulatórios independentemente do Estado nos planos interno, internacional e transnacional.

As duas primeiras questões serão enfrentadas especificamente nas próximas seções, 3.2.1 e 3.2.2, respectivamente. Enquanto que o problema da regulação que excede as fronteiras do Estado será objeto específico da análise do capítulo 4, adiante.

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