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Desvelamento dos vínculos entre o modelo de estado territorial soberano e a teoria constitucional

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

1. DA DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DO ESTADO MODERNO: BASES INSTITUCIONAIS DO MODELO DE

2.2. TEMÁTICAS CENTRAIS DA TEORIA CONSTITUCIONAL

2.3.1. Desvelamento dos vínculos entre o modelo de estado territorial soberano e a teoria constitucional

Nesta seção, pretende-se sistematizar as questões até aqui pontuadas com o propósito de estabelecer os elos entre algumas das temáticas, que constituem o aspecto nuclear da teoria constitucional, discutidas ao longo deste capítulo e as quatro dimensões antes identificadas do modelo de “estado territorial soberano”.

Como dito, a constituição e o constitucionalismo moderno contribuíram para a consolidação do acoplamento entre autoridade e território. Igualmente viu-se que as quatro dimensões aqui apontadas e trabalhadas, para além de contribuírem para o entendimento do processo de afirmação do “estado territorial soberano”, configuram-se como desdobramentos da noção de soberania, desdobramentos estes que se (re)articulam e (re)alinham continuamente de forma a conferir renovado fôlego – sustentação – ao próprio conceito de soberania.

Como dito anteriormente, estas quatro dimensões foram até aqui utilizadas como fios condutores a partir dos quais foram desenhados os processos de surgimento, desenvolvimento e consolidação do modelo de “estado territorial soberano”. Elas operam como tramas que permitem a reconstrução das narrativas em torno da consolidação deste modelo de organização do Estado.

Antes, porém, de finalizar este capítulo, convém prosseguir com esta estratégia reconstrutiva e identificar os vínculos estreitos que ligam as dimensões até aqui trabalhadas e alguns elementos chaves da teoria constitucional consolidada no início do século passado. Este esforço pretende, a um só tempo, fornecer subsídios para a compreensão da dimensão institucional da ordenação constitucional e para a compreensão dos discursos de legitimação que impregnam (e conferem sentido a) a compreensão da constituição como fator de integridade e de integração.

Tabela 3: Vínculo entre o modelo de estado territorial soberano e a teoria constitucional

Dimensões Estado territorial soberano Teoria constitucional Autoridade

(poder de decidir)

Consolidada (centralizada

hierarquicamente) Poder constituinte

Princípio organizativo Forma de organização espacial (territorial) Princípio da constitucionalidade (estatuto orgânico do poder

e supremacia constitucional) Fundamento de legitimidade Racionalização (institucionalização) Constitucionalismo como ideologia (direitos fundamentais) Construção de identidades Identidade nacional (cidadania) Abertura material (interpretação e inclusão constitucionais) Fonte: Autoria própria No que se refere à primeira dimensão (autoridade), a centralização hierárquica do “estado territorial soberano” encontra, em termos teóricos, na noção de poder constituinte o seu ponto de justificação e a sua contraparte no discurso jurídico.

Como dito anteriormente, na dimensão da autoridade, a soberania afigura-se como ponto de destaque a partir do momento em que se passa a discutir a questão da autoridade suprema. Sendo assim, afigura-se bastante significativo que o constitucionalismo, em seus primeiros passos, já tenha se preocupado com a questão.180

Na tabela 1 (seção 1.2.1), a dimensão da autoridade foi associada à capacidade de decidir e de fixar regras sobre conflitos, cuja problemática se materializa a partir da seguinte fórmula: “quem decide em última instância?”. A tabela 2, por seu turno, demonstra que da organização política do medievo para o “estado territorial soberano” passa-se de núcleos de poder dispersos e mais ou menos interrelacionados à institucionalização de núcleos de poder que passam a ser articulados e consolidados a partir de um centro decisório hierarquicamente estruturado.

O esforço de racionalização e de dessacralização do poder, veiculados através das doutrinas filosóficas do contrato social e suas variações, se jurisdiciza justamente por intermédio da linguagem do constitucionalismo. A constituição, em sentido moderno, deixa de ser concebida como um espelho que reflete o amálgama das forças constitutivas da comunidade política (ideia de constituição mista), para revestir-se de força normativa e de capacidade ordenadora. Esse trabalho de reinvenção moderna da nova “religião civil” foi deixado aos cuidados do constitucionalismo então nascente.

Desde o trabalho seminal de Sieyès, o problema da decisão e do enfeixamento do poder estatal – de todo o poder estatal –, foi enfrentado com a construção da ideia de um poder constituinte, de um poder ilimitado, soberano e inicial, capaz de tudo, e somente ele capaz de tudo, decidir (cf. seção 2.2.1). Dando talvez um dos últimos passos, pelo menos contemporaneamente, no percurso histórico dos titulares da soberania. Portanto, a autoridade do soberano, materializa-se na figura do povo ou da nação – com as suas limitações e peculiaridades da época– como a fonte legítima de onde emana o poder, portanto, como o local da decisão última.

A segunda dimensão (princípio organizativo) refere-se à forma como o espaço político é organizado, o que, por sua vez, se traduz nos mecanismos de inter-relação dos atores políticos e do enfeixamento de autoridades em determinado território.

180 A obra de Sieyès, Qu’est-ce que le Tiers État?, de 1788, nos primórdios do

No primeiro capítulo, a recuperação do processo de consolidação do paradigma vestfaliano permitiu recuperar, rapidamente, as bases institucionais a partir das quais foi possível a consolidação do poder do Estado em bases territoriais, ou seja, o reconhecimento da legitimidade de seu exercício no espaço circunscrito à determinada porção de terra fronteiriçamente bem delimitada.

Neste contexto, a teoria constitucional afirma-se como sendo o locus privilegiado de sistematização e de reflexão teórica sobre os arranjos institucionais e normativos para uma melhor ordenação social. Assim, a “constitucionalização” do ideal organizativo consolida e confere sistematicidade orgânica aos princípios de ordenação veiculados através dos postulados normativos do constitucionalismo.

Isso porque, instituída a constituição por obra do poder constituinte, “crê-se”181 na possibilidade de que este documento possa organizar e disciplinar todo o exercício do poder. Conforme visto na seção 2.2.1, o “princípio de constitucionalidade” veiculou essa pretensão, revestindo a constituição da tarefa estruturante de operar como estatuto jurídico do político.

Como visto na tabela 1 (seção 1.2.1), a dimensão do princípio organizativo do Estado moderno refere-se à forma de organização do político dentro dos limites territoriais do Estado e pode ser problematizada com a questão sobre “qual a melhor forma de organização”. Avançando para a tabela 2, demonstrou-se como a virada vestfaliana permitiu o abandono do modelo a-espacial de organização do medivo para a forma territorial (espacial) de organização do “estado territorial soberano”, locus dentro do qual se circunscreve o alcance normativo da autoridade pública.

No desenrolar histórico que se seguiu, o constitucionalismo cunhou a ideia de constituição como organização do poder (seção 2.2.2), alçando o documento constitucional a centro de imputação tanto da autoridade política, quanto de validade normativa. Logo, isto permitiu, para além de estabelecer a constituição como limitadora e fixadora dos balizamentos do poder político da autoridade pública, fixá-la como o documento capaz de atrair para si todo o fundamento legal das demais normas que compõem o arcabouço jurídico estatal.

A terceira dimensão (fundamento de legitimidade) avança para uma abordagem de cunho material, pois se organizativamente o Estado

181

O processo de dessacralização da filosofia política e do constitucionalismo nem remove os fundamentos teológicos que constituem a base da filosofia política moderna, nem deixa de exigir atos de adesão irracional, ou seja, materializa-se através da crença na racionalidade e na capacidade transformadora das ideias e atuação humanas.

já se encontra estabelecido e se o poder de decisão já possui seu titular, faz-se necessário avançar e se perguntar sobre os limites e fundamentos do exercício deste poder estabelecido (constituído). É importante ressaltar que a questão – antiquíssima – sobre a legitimidade do poder, no âmbito do estado territorial soberano sofre uma espécie de dessubstancialização conferindo-se especial acento ao procedimento e à existência de mecanismos institucionais de controle do desvio do exercício do poder.

Na tabela 1 estabeleceu-se que a questão chave dessa terceira dimensão reside no debate sobre o “direito de governar” e o “reconhecimento do direito de governar” enfeixados na pergunta acerca de “qual é o fundamento do exercício de um governo legítimo?”. Ao avançar para a tabela 2, pode-se constatar que da organização política do medievo para o Estado moderno vestfaliano, passou-se de um fundamento de legitimidade personalizado e sacralizado para um modelo racionalista-institucional.

Essa nova configuração de legitimidade do poder – talvez a mais abrupta das passagens do medievo à modernidade ocorrida no seio do Estado – liga-se à noção de constituição como organização das liberdades (seção 2.2.3). O constitucionalismo, ou a estrutura padrão das constituições, fornecerá ao moderno modelo de Estado uma dupla fonte de direitos legitimadores do exercício do poder.

De um lado, encontram-se os direitos políticos, garantidores de uma participação no processo de escolha daqueles que efetivamente exercerão o poder; do outro, aparecem os direitos de liberdade em sua mais clássica e individual configuração. Esses direitos serão considerados como direitos anteriores e inerentes à comunidade política, sendo insculpidos na constituição e convertendo-se no núcleo de legitimidade material da constituição, do Estado, e ao final, do próprio exercício do poder. Nesses termos, será legítimo o governo que atue a partir do respeito irrestrito e incondicional aos direitos de liberdade, o que, mais de um século depois da Revolução Francesa, será ainda reforçado por ondas sucessivas de constitucionalização de direitos de cunho prestacional (assim chamados os direitos sociais, econômicos e culturais) e de uma gama de direitos difusa e coletivamente compreendidos, de forma relativamente independente do indivíduo.

Por fim, a quarta dimensão da soberania (construção de identidades) relaciona-se a um dos mais complexos problemas democráticos das sociedades contemporâneas, altamente complexas e com acentuados traços multiculturais.

A tabela 1 fixou a questão dos fatores de integração e de construção dos vínculos comunais como a última dimensão da organização política, pautando-a na questão sobre “qual é fator que contribui para a integração comunitária?”. À continuação, por meio da tabela 2, viu-se que a organização política do medievo pautava-se organização local (em sua mais específica acepção) acrescida dos vínculos de pertencimento à Cristandade, ao passo que o “estado territorial soberano” amplia o espectro para a ideia de identidade nacional e lhe acresce o moderno conceito de cidadania.

O constitucionalismo surge e se desenvolve bastante atrelado à ideia de cidadania. Cidadão é o comum, o igual, o pertencente a um mesmo território, fundamentalmente ligado aos demais por questões de descendência, língua, cultura, símbolos e, fundamentalmente, o pertencimento ao mesmo Estado.

A teoria do poder constituinte, já com a obra inicial de Sieyès, trabalha a partir do conceito abstrato de Nação, o conjunto dos membros da comunidade política a quem, em razão de vínculos de pertencimento a uma mesma comunidade política, territorialmente circunscrita, é atribuída a soberania popular. Ou seja, conceitos como cidadão, nação e até povo (em uma nova configuração) passam a ser ligados à idéia de participação na formação da vontade coletiva.

Porém, o problema (o desafio) da construção de identidades exige sua constante reinvenção, assumindo contemporaneamente feições dramáticas. Quando se opera a passagem do já consolidado, mas ainda inicial, “estado territorial soberano” para Estados multiculturais, o problema da identidade amplia-se exponencialmente, pois, quando se reconhecessem a diversidade e a pluralidade no interior dos Estados– em seus mais variados aspectos – a questão relativa à construção de identidades, em meio a tantos fatores de dispersão centrífuga, exige sejam renovados (e redimensionados) os vínculos de identidade por intermédio de inúmeros pontos de convergência formal e material, no seio das práticas sociais e das pretensões de ordenação do espaço coletivo.

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