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Diferentes estágios no desenvolvimento do conceito de soberania: historiografia das ideias políticas

CONTEMPORÂNEOS À TEORIA CONSTITUCIONAL 273 5.1 PERMEABILIDADE DAS FRONTEIRAS: POR MECANISMOS

1. DA DEMARCAÇÃO DAS FRONTEIRAS DO ESTADO MODERNO: BASES INSTITUCIONAIS DO MODELO DE

1.2. CONFIGURAÇÃO DAS BASES INSTITUCIONAIS DO

1.2.2. Diferentes estágios no desenvolvimento do conceito de soberania: historiografia das ideias políticas

No período de afirmação do Estado moderno, o conceito de soberania ocupou um papel estruturante de vital importância, pois veiculava um conjunto de ideias que operavam como vetores do agir político e imprimiam ao Estado a marca da modernidade jurídico- política (GOYARD-FABRE, 1999, p. 53). Nestes termos, o discurso

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Em face deste espraiamento do modelo de estado-nacional ao longo do século XX (condição para a atribuição de subjetividade internacional às comunidades políticas individualizadas), a territorialidade e o controle de fronteiras passam a constituir um dos parâmetros básicos de organização dos Estados (GIDDENS, 2001).

78 Almost all the hard questions of our time therefore converge on the status of borders: of

boundaries, distinctions, discriminations, inclusions, exclusions, beginnings, endings, limitations and exceptions, and on their authorization by subjects who are always susceptible to inclusion or exclusion by the borders they are persuaded to authorize.” (WALKER, R, 2006, p. 57).

[...] da época é mobilizado para a construção da soberania, compreendida a partir de suas prerrogativas e limites. Mais que isso, a soberania é o princípio organizador da vida política no interior dos Estados territoriais e o veículo de relacionamento entre eles, uma vez que cria as condições para a invenção da política externa. (ESTEVES, 2006, p. 24).

Enquanto discurso, as narrativas sobre a soberania foram sendo concreta e historicamente construídas79. A análise destes discursos permitiria, portanto, importantes desvelamentos em torno de seus destinatários e dos contendores (WERNER; WILDE, 2001, p. 288). No entanto, em que pese sua relevância, empreitada desta natureza excede em muito os limites deste trabalho. Pretende-se aqui, tão-somente, evidenciar sua historicidade e defender a necessidade de que os atributos e os elementos configuradores do conceito de soberania possam ser decompostos e analisados em suas íntimas e múltiplas relações. Portanto, a questão central não reside em identificar os traços constitutivos do rótulo “soberano”, mas o esforço em defender a possibilidade de que o conceito seja articulado de forma a adaptar, em seu interior, as tensões decorrentes do atual (e hipercomplexo) quadro das relações que se estabelecem entre os Estados e inúmeros outros atores, no cenário internacional.

A compreensão da soberania como narrativa implica reconhecer que o seu conceito não se constrói segundo uma linha evolutiva. Pelo contrário, as concepções a ela imbricadas pretendem descrever inúmeras realidades fenomenológicas e prestam-se a uma multiplicidade de funções cognoscitivas. Nestes termos, a reconstrução feita neste trabalho pretende lançar luzes à forma com que se constitui o vínculo entre autoridade e território, e, por sua vez, a forma como este ligação representa um desdobramento da ideia-força de superitas veiculada por Jean Bodin através da fórmula summa potestas superiorem non recognoscens.

Imbuído deste propósito, os fragmentos em torno da ideia de soberania serão articulados a partir do entrecruzamento de diferentes leituras sobre a história das ideias políticas e da evolução dos desdobramentos jurídicos do conceito de soberania.

79 Para um percuciente desvelamento do processo ideológico de construção do(s) conceito(s) de

Sob o ponto de vista da historiografia das ideias políticas, o desenvolvimento do conceito de soberania, na lição de Simone Goyard- Fabre (1999, p. 115), condensa “em si a ‘essência’ do Estado [o Poder], ela expressa e põe em ação, no direito político moderno, os princípios de independência e de onicompetência do Estado”. Para os fins desta pesquisa, importa ressaltar dois aspectos desta trajetória: a questão em torno do entrelaçamento entre território e autoridade (fundamento de legitimidade) e a correlata questão sobre a tensão entre violência e poder veiculada através da ideia-força de superitas, de onde decorre diretamente a concepção de soberania (autoridade/decisão).

Em relação ao primeiro aspecto, a trajetória dos sentidos atribuídos, no âmbito da filosofia política, o conceito de soberania revela um primeiro esforço de legitimação do processo de centralização (GOYARD-FABRE, 1999, p. 53-110) e de demarcação da independência da figura do Estado (tanto externa, quanto internamente) (GOYARD-FABRE, 1999, p. 115-164) e revela a busca em identificar quem (ou o que) é o soberano deste Estado que se personifica e assume para si o exercício do monopólio legítimo da força. Na lição de Campilongo (2002, p. vii), “[i]dentificar o soberano foi sinônimo, até recentemente, de desvelamento de um vértice. Quem está no topo? O soberano! Seja ele um poder ou uma norma”.

Desta forma, umbilicalmente ligada ao debate moderno sobre o exercício do Poder, a questão relativa ao enfeixamento de autoridades em determinado espaço territorial subjaz latente aos debates em torno do titular da soberania80, da legitimidade e origem do exercício deste poder81 e de seus respectivos limites82 (ou ausência deles).

80 A questão referente ao titular da soberania é uma das questões centrais no âmbito da filosofia

política moderna. Simone Goyard-Fabre destaca que, inicialmente, o poder soberano concentrou-se em torno do rei. Para a autora: “Os sucessores de Bodin que, como Charles Loyseau, Cardin Le Bret e Richelieu, sublinham o caráter ‘uno e indivisível’ da soberania, atribuem sua potência ‘absoluta e perpétua’ à pessoa, ainda sagrada, do rei” (2002, p. 171). A titularidade régia, prossegue a autora, ainda se via presente “no pensamento jurídico de Grotius, no construtivismo racionalista da filosofia de Hobbes, ou no providencialismo neo- agostiano de Bossuet” (idem). Já no século XVIII ganha destaque e assume o centro do debate político a ideia de soberania popular que, iniciada com Rousseau a partir da teoria do contrato social, ganha contornos representativos com Qu’est-ce que le tiers état?, de Emmanuel Sieyès (GOYARD-FABRE, 1999, p. 179-186).

81 Paralelamente ao debate acerca da titularidade da soberania, a filosofia política acompanhou

o desenrolar do debate acerca das fontes de legitimidade do poder soberano. Como visto na nota anterior, em apertada síntese, a titularidade da soberania, até deslocar-se em direção ao povo, esteve no rei. Contudo, as teorias que atribuíam a titularidade do poder soberano ao rei e ao povo partiam de diferentes pressupostos de legitimidade. A titularidade residente no soberano, ora apoiou-se em uma fonte divina de legitimidade (Suárez), ora repousou em bases racionalistas (Hobbes). Já a titularidade imputada ao povo, igualmente assentou-se em

Por seu turno, em relação ao segundo aspecto, a figura do soberano e o problema da violência (transição da desordem à ordem) entremeiam-se83. Esta questão é tão marcante que, tanto em Thomas Hobbes (2003) quanto em Carl Schmitt (1992), “a” soberania personifica-se na figura “do” soberano e reveste-se de especial função de pacificação interna que se materializa através da capacidade de emitir uma “decisão inapelável”, como será sumarizado.

A questão em torno da superação da violência é enfrentada, em Hobbes (2003), no plano abstrato das ideias; para ele, o estado natural de beligerância (bellum omnium contra omnes) é superado pela decisão de renúncia dos poderes naturais por parte dos indivíduos em favor da instituição da República84, desta forma, a este soberano artificialmente criado se lhe atribui o monopólio sobre o exercício da violência e sobre a promulgação do direito (auctoritas, non veritas, facit legem). Emblemática, neste sentido, é a figura do Leviatã, o qual, empunhando em cada mão a espada (poder temporal) e o báculo (poder eclesial),

diferentes fontes, essas mais próximas: a legitimidade soberana em Rousseau reside sem maiores engenharias, na vontade geral fruto do contrato, ao passo que em Sieyès surge o elemento representativo. (GOYARD-FABRE, 1999, p. 170-186)

82 Com a soberania, ao fim do século XVIII, ultrapassando “sua etapa crítica” (GOYARD-

FABRE, 1999, p. 185), adveio o debate acerca dos limites do poder soberano, pois “rapidamente percebeu-se que, no plano político, a soberania do povo, movida pelos ímpetos de sua potência ilimitada que coincidia com a vontade geral, corria o risco de ser tão perigosa para a ordem e a liberdade públicas quanto a soberania absoluta e ilimitada do monarca” (GOYARD-FABRE, 1999, p. 187). Segundo Goyard-Fabre (1999, p. 187-192), após as observações iniciais de Locke e Montesquieu, também Benjamin Constant, Édouard Laboulaye, Tocqueville e G. de Humbold desenvolveram suas ideias acerca dos perigos, tão importantes quanto os do Antigo Regime, de uma soberania popular ilimitada. Igualmente Ferrajoli (2002) identificará um acentuado processo de limitação da soberania (no plano interno), capaz até mesmo, segundo o autor, de esvaziar o próprio princípio. Porém, paradoxalmente, Ferrajoli identificará um processo de absolutização da soberania no plano externo, levando ao auge, no século XX, a “comunidade selvagem dos Estados soberanos” (1999, p. 27). Sobre os processos de limitação e da absolutização da soberania na obra de Ferrajoli vide, respectivamente, as notas 110 e 111.

83 As graves perturbações internas que marcaram as guerras de religião na França e a guerra

civil britânica, com repercussões diretas na vida de Jean Bodin e Thomas Hobbes, comumente são apresentadas como sendo importantes fatores que contribuíram para que a doutrina da soberania fosse construída, inicialmente, em termos quase-absolutos (FERRAJOLI, 2002, p. 18-19; GOYARD-FABRE, 1999, p. 115-158; WERNER; WILDE, 2001).

84 “Com efeito, o Leviatã até usa, para designar o Estado, o termo que Cromwell empregou

para o seu regime, ‘Commonwealth’ – literalmente ‘bem comum’, ou ‘coisa pública’, isto é, República. Esse termo na época possuía dois sentidos principais, um ampliado – toda e qualquer forma de governo, mesmo monárquica, enquanto visasse ao bem comum –, outro mais restrito – aquela forma de governo na qual os dirigentes são eleitos.” (RIBEIRO, 2001).

afirma-se como aquele a quem “nenhuma autoridade sobre a terra lhe é comparável”85.

Por sua vez, para Carl Schmitt, o conflito inerente ao momento instituinte da ordem é inarredável de sua dimensão política. Tanto é assim que é sobre esta dimensão conflitual (construída sobre a diferenciação entre amigo-inimigo86) que repousa sua definição do soberano como “aquele que decide sobre o estado de exceção” (SCHMITT, 1992, p. 43). Para o autor, o elemento volitivo ínsito à ideia de soberania é levado às últimas consequências. Nele, a questão da violência do (e no) Estado é desnudada e, mais ainda, é concebida como sendo o traço constitutivo do conceito de político. Nestes termos, soberano é aquele a quem se reconhece o poder concreto de decisão acerca da suspensão do direito frente à possibilidade real de aniquilamento da comunidade política através da guerra civil87.

Como se constata, não é a toa que os momentos constitutivos da doutrina da soberania foram forjados em momentos de acirrada crise social. Das “promessas de ordem” ao poder de “decisão sobre a exceção” emerge a força instituinte (sempre violenta) que constitui o direito, lançando as bases para a (restauração da) paz social. Desta forma, a crise e a desordem são constitutivas dos diferentes discursos sobre a soberania na modernidade (WERNER; WILDE, 2001), de forma que, em tempos de “disputa sobre a autoridade (competing claims to authority)88, como em tempos de conflitos civis, um forte apelo à

85 O frontispício da obra de Thomas Hobbes traz a célebre imagem do Leviatã que se apresenta

sob esta frase extraída do Livro de Jó (“Non est potesta super terram quae comparetur ei’).

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Esta já tornada clássica formulação pressupõe a distinção entre amigo e inimigo que constitui a categoria central na definição do conceito de político do autor (SCHMITT, 1992). Para o autor, esta diferenciação fornece um critério para o político, ou seja, teria “o sentido de designar o grau de intensidade extrema de uma ligação ou separação, de uma associação ou dissociação”. A distinção não é fundada em fatores morais, “o inimigo político é justamente o outro, o estrangeiro”, bastando “ser existencialmente algo outro e estrangeiro” (SCHMITT, 1992, p. 52).

87 Esclarece o autor: “Quando no interior do Estado os antagonismos político-partidários

transformam-se completamente ‘nos’ antagonismos políticos, alcança-se o grau extremo na escala da ‘política interna’, ou seja, agrupamentos amigo-inimigo intra-estratais, não de política externa, são os decisivos para o confronto armado. A possibilidade real de luta que sempre deve estar presente para que se possa falar de política refere-se, por conseguinte, em tal ‘primado da política interna’ não mais à guerra entre os povos organizados em unidades políticas (Estados e Impérios), mas à guerra civil.” (SCHMITT, 1992, p. 58)

88 Para tanto, a fim de ilustrar esta assertiva, os autores mencionam as circunstâncias de grave

perturbação da ordem interna decorrente das guerras de religião em que Jean Bodin e Thomas Hobbes formularam concepções de poder soberano (plenitudes potestas), sem qualquer limite ao direito positivo; ou ainda, a circunstância de desintegração política experimentada durante a conturbada República de Weimar, em que Carl Schmitt formula sua teoria da soberania

soberania ocorre com intensidade ainda maior.”89 (WERNER; WILDE, 2001, p. 286).

Esta brevíssima narrativa pretendeu por em relevo que o enfeixamento dos discursos sobre a soberania possibilitou a afirmação e a consolidação do estado territorial soberano e, por outro lado, seu escrutínio desvela a natureza paradoxal que lhe é constitutiva, revelando a existência de aporias que marcam a trajetória moderna dos discursos sobre o poder (violência/ordem), seus limites geográficos (dentro/fora) e sobre seus destinatários (nós/eles). Este quadro, como se terá oportunidade de discutir nos capítulos terceiro e quarto, somente reforça que os conceitos de Estado e de soberania, enquanto narrativas, estão longe de serem suplantados e, mais, podem ser reformulados de forma a fornecerem parâmetros úteis à compreensão de um conjunto multifacetado de relações de autoridades que atuam transversalmente às fronteiras estatais como vetores em diferentes direções.

1.2.3.Consolidação do conceito jurídico de soberania: múltiplas

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