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I 5 A Construção da Memória Social

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO NA VIDA DE SILVA PORTO

I. I 5 A Construção da Memória Social

A memória é, antes de mais, individual. Ela torna-se social pelas recordações que partilhamos dos outros e tornam-se relevantes no contexto do grupo social. Halbwachs insiste na memória normativa nos grupos sociais que construíam as suas próprias imagens do mundo, estabelecendo uma versão acordada do passado107. Reafirmou que estas versões estabelecem-se graças à comunicação e não ao nível das recordações individuais. Para o autor, a problemática sobre o passado, o presente e a memória, abriu novas pistas para o estudo da História do século XX. A difusão das abordagens sobre a memória e suas afinidades com a história trouxe formulações para uma nova percepção do passado. Segundo Chauveau e Tétard o interesse pela pesquisa historiográfica no campo da memória foi perpetuada pelas correntes da história francesa, principalmente a história das mentalidades colectivas108. Nesses estudos constam, também, a cultura suburbana, a família, os costumes e a religião, entre outros. Apesar de a questão da memória estar ali contida, a pesquisa no campo não era feita de forma directa. Nessa articulação, os seus objectivos, são determinantes e estão fundamentados no trabalho da História.

A memória é um processo complexo, não é um simples acto mental. As palavras que usamos para descrever, reconhecer, recordar, evocar, registar, comemorar fazem parte da memória109. Esses autores adiantam que, dentro da perspectiva social e cultural, existe uma rigorosa distinção entre memória e acção - quando usamos a palavra e a memória como representação - que é recordar, comemorar. Enquanto tipo de comportamento, a memória é tomada cognitivamente como rede de ideias. A memória é infinita porque a consciência é mediatizada por ela. Mesmo a percepção imediata que assumimos hoje na história do presente, como a fonte principal do nosso estudo, o

107 HALBWACHS, Maurice - A memória colectiva. São Paulo: Centauro, 2004.

108 CHAUVEAU, Agnes; TÉTARD, Philippe (Ed.) - Questões para a história do presente. Bauru: EDUSC, 1999.

109 FENTRESS, James; WICKHAM, Chris - Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1994.

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Diário de Silva Porto, existe hoje como espólio arquivístico internacional, graças à

memória individual reportada no social, real e imaginário. Por isso, todas as suas experiências do passado, no século XIX, são recordadas pelas imagens partilhadas do passado histórico. São tipos de recordações de particular destaque para a constituição de grupos sociais, da onosmática de África central para a história do presente. Este êxito deve-se aos avanços no estudo da história oral, que teve início na década 70, assim como a evolução da análise etno-histórica da tradição oral teorizada por Vansina110.

Os dois ramos baseados na memória são a história oral e a etno-história e outras áreas. Tornaram-se disciplinas reconhecidas e deram origem a estudos especializados, consequentemente, a uma problemática por vezes acutilante sobre técnicas e valor do produto elaborado enquanto História. O que define a história oral e a coloca à parte dos outros ramos da história é o facto de assentar na memória e não em textos. Há uma relutância dos historiadores em destacar esse aspecto, pelo facto de os especialistas da história oral reclamarem para suas fontes e temáticas a mesma dignidade atribuída aos historiadores tradicionais. Aparentemente preferem tratar da memória como um conjunto de documentos que estão na mente das pessoas e não no arquivo público.

Ao tratar do conceito memória, devemos anteceder o seu objecto. Será que a memória tem o carácter de objecto? Será que o objecto das nossas investigações não passa de um objecto da nossa própria imaginação. A memória penetra em todos os aspectos da vida humana, dos mais abstractos e cognitivos aos mais físicos e inconscientes, ela está sempre operante no nosso espírito111. Silva Porto contemporizou os factos descritos no seu Diário, através de uma consciência objectiva, interpretada cognitivamente no corpus da sua memória, “recordar, viver, nesta imensidão da selva

onde o homem ainda não passou do estado bárbarie”112.

A memória é uma fonte de informação. Os antigos textos históricos são memórias narrativas. Os épicos, baseados na memória subjectiva, organizaram o espírito como um texto, porque os textos são objectos físicos e cada texto é

110 VANSINA, Jan - Kingdoms of the savanna. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1966.

111 Idem.

112 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. III.

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independente do outro. Nesse sentido, a ciência histórica ao analisar um texto não se iguala a uma pessoa que tenta recordar-se de algo. O texto pode fornecer mensagens ao historiador, mas não recebê-las como devolvidas. Desta forma uma recordação não se separa da consciência, não é posta de parte, entre memória e consciência, existe sempre um fluxo em ambos os sentidos. É na narrativa – memória de Silva Porto, como objecto físico, que coexistem as informações em textos de nostalgia, subjectivos, independentes nas suas temáticas. Ele estrutura-as numa articulação entre a sua consciência e a memória que se tornou objectiva. Foi o veículo que transportou a informação, um aspecto da sua memória, que se tornou mais acessível ao público, especialmente aos pesquisadores. É uma distinção que nada tem a ver com a estrutura da sua memória. Este aspecto justifica que a memória seja um facto puramente social. Tudo o que emergiu no eixo da articulação não é o lado objectivo da memória, mas sim o seu aspecto social.

Nos últimos tempos os pesquisadores têm-se interessado em confrontar problemas conceptuais como a evolução das mentalidades, ou modelos de mudança pragmática, que proporcionam casos clássicos, tendo implicitamente presente a aceitação da teoria de Émile Durkheim, citado por Fentress e Wickham que afirma “As ideias sustentadas colectivamente são factos sociais e como tais resultado de forças sociais e históricas. É de um tipo especial de facto social, pois a memória só em parte é social”113. Os factos sociais evoluem em função do tempo. Como exemplo temos as sociedades de África central, em particular a umbundu, que evoluíram entre os séculos XIX e XXI em conformidade a um tempo histórico e social. Elas preservam uma memória colectiva. A ciência histórica é detentora do uso das fontes primárias, livros de memórias, crónicas, testemunhos oculares, que são fontes históricas relevantes. A memória terá sempre a sua história, haja em vista o estudo sobre “a maneira como nos lembramos – a maneira como nos apresentamos nas nossas memórias, a maneira como definimos as nossas identidades individuais e colectivas através das nossas memórias, a maneira como estruturamos as nossas ideias nas nossas memórias e a maneira como transmitimos essas memórias a outros é o estudo da maneira como somos”114. Nessa conformidade, Silva Porto produziu a sua própria história através daquilo que estruturou

113 FENTRESS; WICKHAM, Op. cit. 114 Idem.

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na sua memória. História que se torna hoje memória social do povo angolano, africano e europeu.

Muitos observadores da questão da memória constataram que o uso da escrita foi descoberto para conservar a memória das coisas e dos factos. Tudo o que é preciso reter e conhecer de memória, passa-se a escrito para salvaguardar o que não podemos reter na nossa memória, que é frágil. Através da escrita conserva-se a memória porque são escritas vitalícias que passam para a posteridade, tal como retorquiu Jacques Le Goff citado por Fentress e Wickham115. O caso da narrativa de Silva Porto (a memória escrita mais importante do nosso estudo) está a servir esse modelo de posteridade vitalício, como referimos. Por isso, a escrita é um adjunto da memória. Bontinck procedeu a um estudo crítico histórico através das fontes de documentação arquivística referente a Silva Porto116. Maria Emília Santos trabalhou sobre a mesma personagem no âmbito cartográfico e publicou um artigo sobre a sua morte117.

Segundo Pierre Nora será preciso criar “lugares de memória” para que a memória permaneça em algum lugar118. Salienta a necessidade de se institucionalizarem os lugares de memória, como forma de ligar a reflexão pela História e a memória tradicional. Esses lugares podem ser casas edificadas, bibliotecas, túmulos, colecções, realização de eventos, pautas, convenções, etc.. A partir da concepção de Nora em que os “lugares de memória” representam o simbólico e o funcional, estamos perante uma memória produzida. Existe um “culto” de memória a Silva Porto no antigo ombala do sertanejo no Kwitu, Viye - um lugar de memória que é um património material e imaterial tratando-se da construção de uma memória activa119.

A distância e o conhecimento também são aspectos de um discurso antropológico, como nos diz M. Kilani ao citar M. Leiris “A cada passo de cada

115 FENTRESS, James; WICKHAM, Chris - Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1994.

116 BONTINCK, François - Derrota de Benguella para o sertão: critique d'authenticité. Bruxelles: Académie Royale des sciences d'outre-mer, [1977]. P. [279]-302.

117 SANTOS, Maria, Emília Madeira - Nos caminhos de África: serventia e posse. Lisboa: I.I.C.T., 1999. PORTO, António Silva; SANTOS, Maria Emília Madeira (ed.) - Viagens e apontamentos de um portuense em África. Coimbra: Biblioteca Geral da Universidade, 1986.

118 NORA, Pierre - Entre história e memória: a problemática dos lugares. Revista Projeto História. São Paulo. Vol. 10 (1993) p. 7-28.

119 CHRETIEN, Jean-Pierre (Compil.); TRIAUD, Jean-Louis (Compil.) - Histoire d’Afrique: les enjeux de mémoire. Paris: Karthala 1999.

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inquérito é uma nova porta que se abre semelhante a um abismo ou a uma fronteira”120. A distância entre as culturas europeia e africana permite-nos estabelecer um trabalho de inquérito que pode ser extensivo ou criar limites temporais e geográficos porque, as pessoas aproximam-se ou não dos seus hábitos, relacionando-se com ele, com a diferença entre os aspectos da sua identidade cultural, do seu exotismo e a experiência da alteridade, bem presentes em Silva Porto. A construção de vários kilombos (ocilombo) ao longo das rotas comerciais, que ultrapassavam os actuais limites de Angola, criou no imigrante expectativas de altruísmo ao interagir com diferentes culturas. Michel Leiris afirma que “a noção de ‘diferente’ faz-nos tomar consciência (...) qualquer coisa não é mesmo minha”121. O capitão Tuckey refere-se a esses estabelecimentos encontrados pelos Ingleses durante as expedições científicas e as peripécias desses primeiros contactos122.

Encontram-se as produções culturais da actualidade onde a literatura participa dessa tomada de consciência por meio de narrativas que expressam o confronto entre a tradição fixa das origens e os entrecruzamentos de culturas emergentes que são, por sua vez, produtoras de outras manifestações culturais no “Outro”123. A determinação da narrativa de vida “é também a visão de rejeitar a pretensão da universalidade, exaustividade e da objectividade inerentes ao ofício do historiador que constitui, como um detalhe obrigatório do qual confere a autenticidade e veracidade. As narrativas de vida não são somente a matéria-prima de um historiador, elas constituem cada uma por sua parte, uma das múltiplas histórias”124. Esta obra não é uma colecção de “lugares de memória” proveniente de um património realmente autenticado, como no caso francês. Trata-se de uma ilustração da forma como as sociedades africanas antigas e de hoje revisitam o seu passado: suas interrogações reflectem menos a nostalgia de uma antiguidade abandonada, mas mais as necessidades de uma história em curso.

120 KILANI, Mondher - L’invention de l’autre: essais sur le discours anthropologique. Lausanne: Payot, 1994.

121 LEIRIS, Michel - L’Afrique fantôme: de Dakar à Djibouti, 1931-1933. Paris: L’Harmatan, 1934. 122 TUCKEY, James Kingston - Récit d'une expédition pour explorer le fleuve Zaïre, généralement appelé le Congo, en Afrique du Sud, en 1816. New York: Kirk et Mercein, 1818.

123 AUGÉ, Marc - Qui est l'autre?: un intinéraire anthropologique. L'Homme. N.º 103 (Julho/Setembro 1987) p. 7-26.

124 AMSELLE, J. E.; M'BOKOLO, E. - Au coeur de l'ethnie. Ethnie, tribalisme et Etat en Afrique. Paris: La Découverte, 1999.

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A etnografia de Silva Porto pode ser analisada no quadro da etnografia arquivística, porque já nos anos 90, os trabalhos de etnografia arquivística tinham atingido um espaço no campo autobiográfico. Alguns investigadores realizaram uma pesquisa etnográfica do processo da constituição dos arquivos privados no domínio pessoal, ponderando as diferenças. Cristina Valentim afirma que “os arquivos coloniais, enquanto tecnologia cultural moderna ocidental representam a designada “biblioteca colonial”125. Esse conhecimento representa o “Outro”, como sujeito passivo sobre o qual se escrevia e a quem se atribuíam identidades subalternizadas”. Nós trabalhamos sobre uma fonte “colonial”, O Diário de Silva Porto, produzido a título pessoal mas sob os auspícios do governo colonial português. Nesse período, a penetração europeia em África central assentava as suas bases em duas vias: a ideologia da conquista militar com o conhecimento da geografia de África e o cristianismo. Silva Porto para redigir o seu diário pessoal também recorreu a informações dadas pelos seus makota (conselheiros escolarizados pelas missões jesuítas de Norte do Kwanza) e que registava. Compilou informação no vasto Diário na perspectiva de vir a servir o projecto da colonização portuguesa, como transcreveu nos últimos dias da sua vida: “Levar

unicamente em vista servir a pátria que me viu nascer”126. Silva Porto terá escrito estas recomendações, para lembrar a existência do conteúdo dos diários com aspectos que só podia desabafar no próprio diário. Por outro lado, e porque fundou Belmonte, entendeu ser seu dever, para bem servir os progenitores, por estes merecerem a bênção da posteridade. “logo ao nosso leitor diremos que temos cumprido os nossos

deveres...terminada a nossa missão neste vai-vem terrestre”127. Os conhecimentos coloniais são o produto de diferentes protagonistas, missionários, informantes, população autóctone, administradores, mulheres e antropólogos, com diferentes intencionalidades, mecanismos identitários, de agência e resistência e também de diferentes localizações, entre as antigas metrópoles e as suas colónias.

125 VALENTIM, Cristina Sá - O(s) pó(s) do arquivo. Uma etnografia em arquivo colonial, numa pesquisa pós-colonial. IV Colóquio Internacional de Doutorandos/as do CES, 6-7 dezembro 2013. Coimbra: Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra, 2013.

126 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. XIII, existente no fundo de reservados da Sociedade de Geografia de Lisboa, de 1889-1890, redigido em Belmonte a 1 de Janeiro de 1890.

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Heymann abordou a questão dos arquivos etnográficos, na sua interdisciplinaridade128. Ela trata das disciplinas que se podem intercompenetrar para formarem um leque de observações que a etnografia fornece à zoologia, à etnobiologia, à etnologia, à hidrologia, em que cada uma servirá de complemento à outra. O Diário de Silva Porto ilustra bem a necessidade do uso desta abordagem, pois, no aspecto linguístico, por exemplo, contém um glossário em termos umbundu, com cerca de 4.000 palavras traduzidas. Na sua escrita identifica-se uma redacção com palavras e ideias em umbundu o que nos leva a afirmar que é possível aproveitar essa parte linguística e apetrechá-la de abordagens adequadas na especialidade da linguística bantu.

Seguindo a formulação dos conceitos de Antropologia, Etnografia e Etnologia, Silva Porto não aplicou práticas etnográficas, a considerada ciência dos tempos idos, para o estudo do conhecimento do “Outro”. Sendo uma fase da antropologia, ele desenvolveu-a empiricamente. Vejamos um exemplo concreto. Silva Porto deslocou-se a Portugal em 1886 para fazer uma intervenção cirúrgica à vista esquerda e aproveitou para passear pela cidade de Lisboa. Nesta senda recebeu um convite da Sociedade de Geografia Comercial do Porto para participar numa prelecção da direcção. Prontificou- se mas advertiu por carta que “só faria parte por fazer conforme as suas pobres ideias o permitissem à vista da falta de conhecimentos científicos”129. Isto demonstra que a prática empírica de Silva Porto apresenta contornos de etnografia. Ele tentou decalcar a escrita e a forma de registar dos outros exploradores, como Serpa Pinto, Hermenegildo Capelo e Robert Ivens. Mas devemos ter em conta que a etnografia empírica de Silva Porto desenvolveu-se num contexto de redacção da sua própria biografia em África com base nas viagens comerciais, fundamentalmente, para que os referidos apontamentos e descrições de África viessem a servir à Europa científica. Pode ser considerada uma etnografia por todas as circunstâncias e características da sua obra. Se Silva Porto tivesse conhecimentos aprofundados e instrução que lhe permitissem descrever dados e ocorrências no campo da etnografia, o seu Diário seria uma monografia colonial objectivada, um diário mais rico e mais completo. Se ele fosse um explorador científico,

128 HEYMANN, Luciana Quillet - Arquivos e interdisciplinaridade: algumas reflexões. In Seminário CPDOC 35 anos: A Interdisciplinaridade nos estudos históricos. Rio de Janeiro, 2008.

129 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. XI, 1884-1887.

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preparado para esse fim, teria feito uma descrição sistematizada, aproveitando o campo aberto disponível, o que seria uma grande inovação.

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PARTE II