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I 1 A Transculturação e Alteridade

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO NA VIDA DE SILVA PORTO

I. I 1 A Transculturação e Alteridade

O suporte conceptual do nosso trabalho fundamenta-se numa combinação de noções e abordagens interpretativas desenvolvidas a partir da década de 1980 na Literatura, nos Estudos Culturais e Pós-coloniais, em especial na História e na Antropologia. Refira-se que o campo de investigação crítica, da literatura europeia de viagens, realça, em especial, a problemática da “alteridade” e da percepção do “Outro” Tzvetan Todorov, Helena Buescu, Valéri Berty64. A transculturalidade e alteridade são as palavras-chave do nosso trabalho cujos conceitos assumem o maior relevo neste quadro. No Diário de Silva Porto encontrámos várias questões que demonstram aspectos associados às noções de transculturação e de alteridade. A abertura de espírito, o discurso escrito de cariz literário e histórico, com a narrativa de vida, produzem uma História de Vida.

Segundo Fernando Ortiz, a transculturação é o processo de transição de uma cultura para outra com as suas repercussões sociais. Considera que o conceito de transculturação expressa a complexidade dos fenómenos no mundo social acrescentando, pela primeira vez, a necessidade de se rever o conceito de aculturação. Refere o caso de alguns países da América Latina cuja origem assenta em mutações de culturas. Nesse processo, o passo seguinte ocorre com a aculturação de uma corrente incessante de imigrantes “europeus”. Sabe-se que cada imigrante desarraigado da sua terra de origem passa por um movimento duplo de desgaste e de reajuste, de desaculturação parcial das culturas encontradas, de aculturação de certos etnemas dessas culturas e, por fim, no movimento de síntese, vive a transculturação. No caso de Silva Porto, ao emigrar para África, transitando por três continentes, transportou consigo etnemas das culturas confluentes mantendo, contudo, os padrões da sua cultura de origem reafirmando a sua identidade, demonstrada no seu discurso escrito.

64 TODOROV, Tzvetan - A conquista da América: a questão do Outro. São Paulo: Martins Fontes,1988. P. 23. DUARTE, João Ferreira; BUESCU, Helena (ed. lit.) - Narrativas da modernidade: a construção do outro. Lisboa: Colibri, 2001. BERTY, Valérie - Littérature et voyage au XIXe siècle: un essai de typologie narrative des récits de voyage français en Orient au XIXe siècle. Paris: L'Harmattan, 2001.

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A concepção de transculturalidade, segundo Fernando Ortiz, citado por Luciano Passos Moraes, assenta no “processo de deslocamento e de afirmação identitária” 65. O autor descreve as etapas de personagens deslocadas, emigrantes que vão ao encontro de novos espaços e que se integram, transformam-se e absorvem a cultura de chegada até um certo nível. Ele acrescenta que a transculturação é o processo de passagem de uma cultura para outra, através de contactos e cruzamentos de culturas diferentes. Foi este autor que introduziu o conceito de transculturalidade, no pensamento antropológico. Malinowski dá o seu parecer sobre a obra de Ortiz ao afirmar que “a transculturalidade é um processo no qual se dá sempre qualquer coisa em troca do que se recebe66. É um processo no qual ambas as partes saem modificadas. Um processo a partir do qual emerge uma nova realidade composta e complexa. Trata-se de um fenómeno novo, original e independente”. Em termos sociológicos, pode entender-se como a presença de diferenças culturais numa determinada sociedade, com a existência de afirmação identitária no que concerne a religiões, crenças, etnias e raciais67.

No domínio da antropologia, este conceito refere-se “ao processo de transição de uma cultura para outra e que passa por várias fases desde o declínio ou mesmo desaparecimento da cultura de uma pessoa até a aquisição de cultura nova”68. Na sua essência este conceito implica o de aculturação que designa os fenómenos que resultam da existência de contactos directos e prolongados entre duas culturas diferentes e que se caracterizam pela modificação ou pela transformação de um ou dois tipos de culturas em presença. Actualmente, a noção de aculturação aplica-se de forma restritiva ao contacto particular de duas sociedades que, em contexto de força desigual, a sociedade tecnologicamente dominante impõe-se, directa ou indirectamente, à cultura dominada. A transculturação é um conceito da pós-modernidade construído com base na realidade social actual. Salienta-se que o termo pode ser polissémico, pelo que, neste trabalho, utilizámo-lo no quadro da História de Vida integrada no estudo histórico-antropológico.

65 ORTIZ, Fernando - Do fenômeno social da Transculturação e sua Importância em Cuba. In El contrapunteo cubano del azúcar y del tabaco. Trad. Lívia Reis. Cuba: Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1983. [disponível em www.ufrgs.br/cdrom/ortiz/ortiz.pdf]. O autor utiliza os conceitos de alteridade e transculturação aplicados a um estudo literário.

66 MALINOWSKI, Bronislaw - Introducción. In ORTIZ, Fernando - Contrapunteo Cubano del tabaco y el azúcar. Madrid: Cátedra, 2002. Wikipedia.org/Contrapunteo cubano del cubano del azúcar.

67 Transculturação. In Infopédia [http://www.infopédia.pt/transculturação].

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Na literatura antropológica define-se essa noção como sendo a transição de elementos de uma cultura para outra69. Silva Porto transportou a sua cultura, considerando-a melhor e dominante na sua relação com a cultura africana, aplicando-se aqui o conceito de “etnocentrismo”, um dos obstáculos epistemológicos do conhecimento científico. Ele encontrou uma outra cultura onde se foi integrando, sem contudo se distanciar da sua. Nesta abordagem questionamos se o fenómeno de “aculturação” constitui um elemento do fenómeno de transculturação. Segundo Bernardo Bernardi, afastar desta análise o processo de enculturação seria incorrecto, como também o seria considerá-lo alheio aos contactos que cada cultura estabelece com outras culturas70. Acrescenta ainda que a enculturação, em sentido mais amplo, “acompanha e sobrepõe-se à Aculturação”. Enquanto a enculturação diz respeito a uma dinâmica interna que consiste na aprendizagem de uma cultura particular em relação aos seus membros, a aculturação refere-se às relações institucionais e individuais existentes entre as demais culturas e aos efeitos que daí derivam. No domínio da Antropologia, o termo aculturação é relativamente recente e expandiu-se, sobretudo, na corrente histórica. O fenómeno tem sido estudado em perspectivas diversas, segundo a escola Histórico-Cultural de Ratzel, fundador da antropologia do espaço71. É na multiplicidade destes fenómenos que ocorrem as relações culturais. Desta forma, a transculturalidade integra um conjunto de acções do fenómeno de transculturação, na qual se inclui a desaculturação e a aculturação. Bernardo Bernardi analisa a aculturação no binómio de dominado e dominante. Mas, também existe aculturação quando o elemento procura assimilar outra cultura por via natural sem agentes de pressão.

O conceito de aculturação, segundo J. W. Powell citado por Mabiala (2008), designava a transformação do modo de vida e do pensamento no contacto com a sociedade americana72. Ele explica que no termo aculturação o prefixo (a) não é

69 Idem, p. 13.

70 BERNARDI, Bernardo - Introdução aos estudos etno-antropológicos. Lisboa: Edições 70, 1999. 71 Idem, p. 110. Bernardi refere-se às posições metodológicas de Ratzel, pai da Antropogeografia, ramo da Antropologia que se debruçou sobre o estudo do espaço, isto é, da Geo-cultura (questão estudada previamente na geografia administrativa) na qual se interpretavam as relações do espaço, no processo da dinâmica cultural em termos de migrações dos povos. O autor afirma que com os povos desloca-se e renova-se a cultura.

72 Pamphile Mabiala Mantuba-Ngoma é antropólogo e historiador congolês, que se debruçou sobre o fenómeno da aculturação da década 80 do século XX. Em 1990, ele denominou a transformação dos modos de vida e do pensamento dos imigrantes no contacto com a sociedade americana. Nesse sentido,

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privativo mas provém do latim (ad) que significa aproximação. No Diário de Silva Porto, o seu discurso reflecte uma relativa proximidade, em certos momentos, com algumas culturas angolanas. É o caso das culturas ngangela, cokwe, kimbundu, com maior profundidade para a umbundu, tendo, esta última, sido assimilada pelo sertanejo Silva Porto. Passamos os rios Riambeje e Nhengu, e fomos entrar no nosso kilombo da

encosta73. Ao assumir a instituição política e social umbundu, adoptou-a para o acampamento nas viagens a partir da sociedade kimbundu. Constata-se aqui a manifestação de uma certa atracção pela cultura encontrada.

Silva Porto sofreu uma grande mudança cultural. Pamphille Mabiala ao citar Roger Bastide fornece-nos elementos que podem explicar essa transformação cultural, através dos factores de mudança cultural: a aculturação, a desaculturação, e a inculturação74. Bastide distinguiu três tipos de aculturação: aculturação espontânea, aculturação organizada ou forçada, e aculturação planificada ou controlada. A aculturação espontânea é aquela que não é dirigida nem controlada. Assenta numa convivência livre, espontânea, entre as pessoas numa dada sociedade. A aculturação organizada é aquela que ocorre em benefício de um grupo no quadro da escravatura ou colonização, ou seja, a vontade de submeter um grupo à sua cultura, às suas regras e valores dominantes. O grupo dominado ao tomar consciência da desvirtualização da sua cultura de origem revolta-se contra essa submissão. Os resultados são negativos. É o caso da fuga constante dos escravos de Silva Porto da sua ombala, das suas fazendas e dos carregamentos, assunto que exemplificaremos na parte IV do nosso trabalho. Por outro lado, a aculturação planificada ou controlada é sistemática e sistematizada. Visa atingir um processo de aculturação a longo prazo. Faz-se a partir de um conhecimento associado ao determinismo social e cultural. Como exemplo temos a ideologia planificada, a aculturação neo-colonial que, lenta e subtilmente se entranha, impondo- se. Silva Porto deixou marcas referenciadas pela apropriação do seu nome, na corruptela

nós relacionamos o contacto que Silva Porto teve ao trânsito pelo Brasil, a grande influência africana que sofreu ao fixar-se em Angola travando contactos permanentes com diferentes culturas. Foi durante esse processo que ocorreu um contacto cultural.

73 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. VI, n.º 1241, p. 120 (29 Dezembro 1869).

74 BASTIDE, Roger - Lusotropicology, race and nationalism, and class protest and development in Brazil and Portuguese Africa. In CHILCOTE, Ronald H. (ed. lit.) - Protest and resistance in Angola and Brazil: comparative studies. London; Berkeley; Los Angeles: University of California Press, 1972. p. 225-240.

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mpoloto. Neste âmbito em que elemento de aculturação se pode classificar a atitude de Silva Porto? Numa incursão analítica dos tipos de aculturação, segundo o autor citado e em concordância com as variáveis culturais fornecidas pelo Diário, pode-se concluir que Silva Porto teve uma aculturação livre, através da sua convivência, de forma espontânea, na sociedade umbundu, em Angola. Não houve imposição, foi um imigrante que partiu da sua sociedade de origem e foi ao encontro da comunidade umbundu.

O conceito de aculturação foi também aprofundado pela escola difusionista. Os teóricos Marie-Odile Géraud; Olivier Leservoisier e Richard Poittier definem o fenómeno de aculturação como sendo o estudo da “interpenetração das civilizações” 75. Eles seguem a fórmula de Bastide que é o conceito de base da antropologia dos contactos culturais. Como referimos, o conceito tem origem americana, e foi desenvolvido na década 60 do século XX, em reacção à corrente difusionista, no contexto da expansão da cultura ocidental. Esse contexto conduziu um certo número de antropólogos a analisar os contactos mais ou menos forçados entre os povos, isto é, a relação entre colonizadores e colonizados, como é o caso das migrações.

Nessa linha de pensamento, se os difusionistas tiveram o mérito de se interessarem pelos empréstimos culturais, os teóricos da aculturação criticaram-nos pelo facto de estudarem os fenómenos de interpenetração alheados do processo da sua realização. Os teóricos da aculturação baseiam-se no processo de contacto entre dois povos ou mais, colocando a questão de saber como é que esse mecanismo de empréstimo se processou. Os difusionistas baseiam-se nos traços culturais emprestados a outros povos. Eles consideram o empréstimo um facto consumado. Essa é a diferença revelada entre os difusionistas e os teóricos da aculturação. Aos teóricos interessa-lhes saber como um traço cultural saiu de um povo para outro. A crítica aos difusionistas recai, precisamente, na restrição do interesse pela saída desse traço cultural de um povo para outro, ou seja, o empréstimo. Tomamos como exemplo os ovimbundu que utilizam instrumentos de comunicação cokwe, o caso do Mondo, corno de boi trabalhado para comunicação a longas distâncias. É um elemento de empréstimo aos tucokwe,

75 GÉRAUD, Marie-Odile; LESERVOISIER Olivier; POITTIER Richard - Les notions clés de l’ethnologie: analyses et textes. Paris: Armand Colin, 2000. P. 99-100.

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introduzido na sociedade umbundu, no período das grandes trocas comerciais. Trata-se, desde já, de identificar as áreas culturais específicas de cada cultura e de retraçar um percurso hipotético, e não de analisar aquilo que se produziu durante a interpenetração. Concluindo, segundo Herskovits, a difusão é o estudo da transmissão cultural

realizada, enquanto a aculturação é o estudo da transmissão cultural em curso76. Tendo em conta a relevância deste fenómeno no estudo do nosso trabalho, como elemento da transculturação, analisamos a aculturação e suas implicações quanto à sua definição. Segundo a definição clássica dada por R. Redfield, R. Linton e M. J. Herskovits a aculturação compreende os fenómenos que resultam do contacto directo e

contínuo entre os grupos de indivíduos de cultura diferente, com as trocas subsequentes dos tipos culturais originados de um ou de dois grupos77. É preciso que a aculturação responda a causas externas, neste caso o empréstimo. Ele é distinto da mudança cultural que pode resultar da simultaneidade de factores internos e externos. Se são internos são as mudanças culturais, se são externos é o empréstimo. Herskovitsrefere-se à diferença dos conceitos “assimilação” e “aculturação”, que tendem a confundir-se um com o outro78. No que se refere ao conceito de “contacto descontínuo”, o autor chama a atenção para essa definição considerando que são “contactos directos e contínuos”. Acrescenta que não são apenas os contactos directos e contínuos que intervêm no processo de aculturação, mas também há que ter em conta o processo descontínuo, como é o caso dos marinheiros, comerciantes, cujo exemplo ele observou a partir das ilhas. Quando os imigrantes portuenses do século XIX se deslocavam para África, os seus contactos não eram contínuos considerando a ideia de retornar à sociedade de origem. Podemos afirmar que os seus contactos eram descontínuos.

Na realidade, a “aculturação” consiste na simbiose cultural, na coexistência entre duas ou mais culturas. Desses contactos deriva a osmose cultural que ocorre mesmo que

as culturas sejam diferentes, alguns elementos culturais unificam-se, devido a alianças

76 HERSKOVITS, Melville J. - Les bases de l'anthropologie culturelle. Paris: Payot, 1952. P. 98.

77 REDFIELD, Robert; LINTON, Ralph; HERSKOVITS, Melville Jean - Memorandum for the study of acculturation. American Anthropologist: journal of the American Anthropological Association Beyond the frontier: social process and cultural change. Vol. 38-1 (1936) p. 149 -152. Foi traduzido para françês e editado em 1967.

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matrimoniais, trocas comerciais, caramuças, lutas, guerras, e outras. Os etnemas, em

sua compenetração, são o fenómeno da fusão cultural através da análise histórica minuciosa. A escola histórico-cultural atribuiu um significado histórico à difusão da cultura e considerou o estudo das migrações e das relações culturais como um meio de reconstituir a história de um dado povo e de um dado país.

Os agentes intencionais da aculturação que auxiliaram Silva Porto a estabelecer os contactos com a sociedade umbundu, foram as actividades missionárias, comerciais e políticas. A actividade missionária foi aculturante, pois a sua acção incrementou-se com o objectivo específico de operar transformações radicais dos ideoetnemas. A acção actua directamente sobre os indivíduos singulares para, indirectamente, os converter às normas das instituições da sociedade. O comércio é um dos veículos mais constantes da história dos contactos culturais e é uma forma de aculturação típica. Foram raros os funcionários governamentais ou da administração que não marcaram a sua presença nas áreas onde não existiam instituições administrativas. O contacto com as populações era feito através dos comerciantes mais próximos, assim as populações consideravam os comerciantes como modelos europeus. Foram numerosos os serviços sociais que os comerciantes prestaram às pessoas. A mulher do comerciante ministrava as medicinas mais simples e subministrava os primeiros cuidados. Por vezes, o comerciante suportava os encargos com os mortos, fazia de árbitro nas disputas, ajudava a definir as heranças e ajudava ou traduzia a correspondência. O comerciante europeu actuava também como “amortecedor” e intermediário da sociedade “branca”. Finalmente, o comerciante europeu assumia também o papel de agente administrativo, representando os órgãos políticos e soberanos europeus do governo colonial. A população depositava confiança nos referidos comerciantes o que induziu a que fossem agentes aculturantes, sendo um dos factores que influenciou o processo da transculturação. No caso de Silva Porto, ele surge na comunidade umbundu, através de contactos individuais. Pela via dos antropemas e dos etnemas, ele carrega elementos da cultura europeia, tipicamente portuense, capaz de se impor perante a nova comunidade encontrada, a umbundu.

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I. II. 2. A Alteridade e a Percepção do “Outro”: Os Quotidianos do “Eu” e o