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II 4 O Sistema de Parentesco (Epata)

ENQUADRAMENTO GEOGRÁFICO DO PLANALTO CENTRAL E A SOCIEDADE UMBUNDU

AS INSTITUIÇÕES POLÍTICAS AFRICANAS NA SOCIEDADE UMBUNDU

III. II 4 O Sistema de Parentesco (Epata)

A sociedade umbundu tem uma estrutura de parentesco dentro das relações de consanguinidade que se designa por epata. A filiação na linha do pai designa-se por oluse, isto é, a filiação patrilinear. Os membros vivem maioritariamente nas aglomerações de diversos descendentes patrilineais e cada um com o seu oluse, o que justifica a patrilocalidade. A afiliação matrilinear pertence à parte da mãe chama-se olwina307. Define-se como um grupo que se estende a um conjunto de aldeias, pois os seus membros vivem maioritariamente nas aglomerações de diversos descendentes matrilineais e cada um com o seu olwina, o que justifica a matrilocalidade. Salvo na presença de várias famílias reais, que têm diferentes tabus, associados ao respeito total

305 Figura já referida neste texto. Após a independência dos Estados do planalto central, a localidade ficou com a mesma designação pelo que se pode inferir que a chegada de outros comerciantes no Vihele, na comuna do Kutatu, tinha as mesmas características de Sambambi.

306 HABRAN, Louis - Le chemin de fer de Lobito citado por ESTEVES, Emmanuel - O caminho-de-ferro de Bengela e o impacto económico, social e cultural na sua zona de influência, (1902-1952). Porto: [s.n.], 1999. Vol. I. Dissertação de doutoramento em História Contemporânea apresentada à Faculdade de Letras da Universidade do Porto.

307 BOSSARD, Eric - Précis de parenté et son évolution chez les Ovimbundu. Neuchâtel: Université de Neuchâtel, 1985. P. 20.

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de certos animais, o caso do ngulungu (tragelaphus seriptus), ou o octisema (cobus defessa penrice), a única diferença é que esta organização tem, em primeiro lugar, a organização local reduzida a nível da aldeia.

O casamento (olombwela) na sociedade umbundu ocorre entre dois grupos exógamos, pela aliança de um dos seus membros, ligando dois indivíduos de sexo diferente, através de um conjunto de direitos e obrigações mútuas, mas não variam muito de cultura para cultura. Essa união consentida pelas duas famílias ou dois grupos constitui, entre os membros dos dois grupos, a base para uma estrutura de parentescos a partir do elemento de referência designado por Ego. A relação de consanguinidade refere-se ao pai, mãe, filhos e filhas, primos cruzados, tias e tios, avós, primos e sobrinhos na linha descendente e na linha ascendente a partir de netos. As relações afins unem as duas famílias ou os dois grupos constituindo, para com o Ego, o seu posicionamento de sogros, cunhados, genros, noras, constituindo todos a estrutura de parentesco, bem como os membros que integram a família alargada que provêm dos respectivos grupos.

A selecção do parceiro segundo a origem, as suas qualidades, a sua identidade social visou aumentar o capital simbólico e material. Eles possuíam manufacturas, e os dignitários ovimbundu, eram os detentores do poder político. O casamento entre os jovens no povo ocimbundu obedecia a certos rituais desta sociedade. Os pedidos de consentimento (votokula) o alembamento (dote) oku eka ovilombo (entrega de noivas) (olombwela) ocorrem quando as raparigas atingem a pós-adolescência entre as idades de 14 a 15 anos e para os rapazes quando estes alcançam os 20 anos de idade. O casamento deve ser precedido de auscultação e aconselhamento sobre a vida conjugal e doméstica pelas tias da noiva, primas e amigas idóneas revestidas de grande experiência matrimonial. As raparigas são conquistadas nos Ondjango. O Ongandjo é o local de concentração dos olosekulu, dos kuku (anciãos) os sábios da aldeia, entre os chefes tradicionais, terapeutas, para resolverem questões inerentes à vida comunitária, em particular do casamento. O ondjango é a grande instituição social e jurídica na qual os jovens são vetados. Eles são actores externos, divididos sexualmente por tarefas. As raparigas são as transportadoras das refeições diárias (pequeno almoço e almoço, entre as 11h e 18h). Os rapazes ocupam-se nos serviços de comunicações, transmitem as

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informações às famílias congregadas quer nas olombala, quer nas residências (onjo) da comunidade. É durante o movimento cruzado entre jovens de ambos os sexos que se enamoram. Existem outros locais onde ocorre o namoro, como por exemplo: salões festivos, fogueiras de dança e folclore da tradição oral, na lavoura, nas deslocações entre localidades, nas feiras, na comercialização de produtos, nas cerimónias de casamento e de pedidos de consentimento de noivados. Essa diversidade de actividades na sua globalidade denomina-se por Onjuluka. Após o entendimento entre os jovens nubentes, ocorre o pedido de noiva que é a primeira etapa do casamento. Mas antes o jovem deve reunir condições para iniciar uma vida conjugal começando por preparar a residência. Após este acto deve contactar inicialmente as suas tias maternas e paternas, para abordá- las sobre a sua intenção de casar fazendo referência à sua futura noiva e à respectiva pertença familiar.

As tias paternas, são as intermediárias para os pais da jovem que, por sua vez, encaminham o assunto para o conselho familiar com o intuito de avaliar meticulosamente o caso. A referida avaliação deve incluir vários aspectos: Conduta da pré-noiva, cadastro social dos pais da noiva e da sua família em geral. Este procedimento inicia-se numa conjuntura de intrigas entre ambas as famílias. A rapariga recebe, verbalmente, um pedido de casamento por parte do rapaz308. A partir daí passam a ter encontros regulares para concertarem as ideias sobretudo após conselhos familiares mútuos.

Magyar, no século XIX, no seu trabalho de recolha etnográfica, na sociedade

umbundu refere (...) A mulher é ‘propriedade do homem que a adquire por compra’; ‘geralmente não é maltratada’, embora ‘não seja muito fiel’, ‘as causas são a poligamia’, quando a mulher se torna culpada de infidelidade, raramente é castigada pelo delito se denunciar o seu cúmplice, pois o peso da lei abate-se apenas sobre este. Se o homem não é capaz de compensar o seu delito com um resgate adequado à categoria do homem ofendido (...)309. O viajante aponta as causas do direito consuetudinário na questão de adultério. Considerando que a mulher é propriedade

308 Entrevista concedida pelo Diácono Funda, natural do Viye, ancião da igreja Baptista no Mbalundu. Procedemos a um conjunto de inquéritos na área umbundu, na qual recolhemos os dados na pesquisa de terreno, e comparamos com os dados recolhidos da tradição oral da sociedade umbundu na área de Viye, Mbalundu, Kamundongo, por Silva Porto, e da sua própria observação participante.

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exclusiva do homem, ele exerce todo o poder sobre ela porque a adquiriu com bens, terras, gado, etc.. Na sociedade umbundu, o adultério é um crime atenuado, até certo modo consentido. O casamento tradicional é um acto de compromisso mútuo entre duas famílias, o dote é dado pelo homem em representações simbólicas, nos procedimentos da troca. Para se “divorciar”, é necessário realizar-se um outro acto reunindo todos os parentes mais próximos dos cônjuges para tentarem conciliar as partes. Se o cúmplice tiver posses e conseguir pagar uma multa contra o delito, ele retoma a sua vida normal com a mulher.

No século XIX havia uma hierarquia matrimonial. Os escravos podiam obter, por lei do direito costumeiro, duas mulheres, enquanto a classe nobre, Mwekalya, Kesongo, Kapitango, Kaley, etc., podia ter mais de 5 mulheres. Os comerciantes

abastados, possuem 10 e mais esposas, as escravas também compartilhavam a relação.

Segundo Magyar, o casamento ocorria sem preconceitos obedecendo aos seguintes passos: Primeiro - O pretendente enviava uma pequena prenda aos pais da jovem e mandava anunciar quando tinha a intenção de casar com a sua filha. Segundo - Se aqueles aceitassem a oferta, era sinal de que estavam de acordo. Terceiro – O pretendente e a sua família faziam a primeira visita aos pais da pretendida que permitia realizar os primeiros contactos. Magyar afirma que esses primeiros contactos entre as famílias eram para negociar o preço da noiva, ou seja, estabelecer as modalidades de entrega do dote e dos produtos que acompanhavam o dote. Um ou dois bois para o dote acompanhado de uma peça de pano e duas enxadas. Quarto – Concluído o diálogo, o pretendente levava a sua mulher para sua casa, sem mais pretextos, sem testar a sua virgindade nem a sua opção. Quinto – Indicava-lhe uma casota preparada para o efeito e que ficava sempre isolada das habitações das restantes mulheres do limbo (aldeia). Sexto – No prazo de sete dias, o marido dava à nova esposa uma enxada e indicava-lhe a porção de terreno que ela devia cultivar, a lavra. Sétimo – Finalmente dava-lhe algumas aves de capoeira, nomeadamente, galinhas e patos. A partir dessa data a esposa arranjava os alimentos necessários para a alimentação do casal e filhos, provenientes da agricultura.

Silva Porto considerou que o casamento tradicional era sancionado com a entrega da jóia como ele próprio disse: (...) a jóia para aquisição da mulher para

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companheira do homem ou mesmo d’este para o serviço de pessoas com elevada hierarquia, limita-se a dois panos, ou duas enxadas e o enxoval que consta de dois panos finos de qualquer fazenda, uma ponta de marfim ou algodão cru e a indispensável missanga fina de pescoço (...). Para além disso descreveu o ritual do

casamento poligénico que se realizava utilizando (...) um prato contendo azeite de

palma e a massa de quicequa, junto dossel, em ambas, metem o indicador que acto contínuo passa pela fronte; e depois lançando mão de pau mão de pillão, especie de ceptro que se conserva no chão. Principia de dizer quantas cerimónias asimilares tem levado a efeito e por quem foram dados os animais; batendo com quem pisa a cada frase empregada: com essa mão de pillão no chão sendo aplaudidos freneticamente pela turba a cada menção feita (…)310.

Retomando a ideia de Magyar, a impressão com que o viajante ficou do casamento poligénico consta que se houver várias mulheres, a vez de cada uma é mais

rara e igualmente raro é o encargo de cuidar do sustento do marido. E é esta – segundo indaguei a verdadeira razão do facto de as numerosas mulheres viverem, geralmente, em paz umas com as outras, pois todas amam a preguiça. A harmonia social entre as

relações poligénicas é prática na sociedade tradicional se tivermos a noção que poligenia é a aliança matrimonial de um homem com várias mulheres que têm, simultaneamente, o estatuto de esposas vivas e legítimas311. Magyar enumera essa legitimidade como um aspecto subjectivo, mas refere um aspecto muito importante a partir da hierarquia no estatuto do casamento poligénico. Destaca a dignidade da mulher mais velha (naNtembo), a que tem o estatuto reconhecido no seio das outras mulheres para “apaziguar desavenças, restabelecer a paz, a boa ordem e a governação”. Esse conceito de naNtembo na sociedade umbundu difere do conceito de “dona da casa”. Dona de casa, na concepção europeia aplica-se no casamento monogâmico onde a mulher tem o estatuto de governação da casa, enquanto no casamento poligâmico, caso da sociedade umbundu, o naNtembo é a mulher mais velha que coordena as actividades das outras mulheres, tal como foi citado por Magyar. Não se trata de ser uma “dona de

310 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. X.

311 Poligenia é a união entre um só homem e várias mulheres, por oposição a monogamia, segundo RIVIÈRE, Claude - Introdução à Antropologia. Lisboa: Edições 70, 1995. P. 78.

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casa” no sentido restrito, trata-se de uma coordenadora de um espaço residencial que é seu. Todas as outras mulheres residem nesse mesmo espaço pertença do marido.

Quanto ao modo de vida das mulheres que afirmava serem preguiçosas, não correspondia à realidade, na medida em que a mulher ovimbundu tinha como tarefas cuidar do esposo, com todo o esmero, no dia em que ele estava presente. Nos dias em que a mulher permanecia em casa sem o esposo ocupava-se de outras tarefas do lar, sobretudo, nos cuidados materno-infantis que orientavam a mulher para evitar relações sexuais durante a amamentação das crianças no período de três anos, regra básica em África. Tal como o próprio viajante descreve as mulheres alimentam bem os seus filhos

até aos 3 anos, não têm problemas de subnutrição. Elas são o sustento do marido (...).

Com esta afirmação, Magyar contradiz-se na interpretação dada à ocupação das mulheres casadas com um só homem.

Em relação ao casamento poligénico, Silva Porto também lhe deu a mesma designação, quando referia que as mulheres dos magnates se deleitavam ao seu belo prazer atingindo um certo número delas. Quanto ao aspecto da naNtembo, tinha o mesmo pensamento de Magyar com a diferença de utilizar, quase sempre, o termo europeu para definir naNtembo como “Dona de Casa” fazendo a transposição da estrutura mental europeia. Referia-se à sua primeira mulher “a minha Dona de casa”, a “Mãe Rosa” com quem casou e assumiu a coordenação da ombala de Belmonte no seu principal onjo (casa) e, sobretudo, a autoridade de gerir as outras mulheres. Silva Porto e Ladislau Magyar interpretaram o casamento transpondo o seu universo mental europeu para África ao terem uma concepção diferente em relação ao casamento poligénico.

De acordo com as interpretações de Bossard312, Magyar313, Silva Porto314 e Miller315 existia um forte controlo na circulação das mulheres, estabelecido através de alianças matrimoniais. A sua posição dominante era reforçada pela poligamia exercida

312 BOSSARD, Eric - Précis de parenté et son évolution chez les Ovimbundu. Neuchâtel: Université de Neuchâtel, 1985. P. 176-178.

313 MAGYAR, Ladislau - Viagens ao Interior de África [Manuscrito]. 1849-58.

314 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. 1845-1890.

315 MILLER, Joseph Calder - Poder político e parentesco: os antigos Estados Mbundu em Angola. Luanda: AHN, 1995. [23], 308 p.

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sobre a reprodução humana, onde a abundância de seres humanos constituía a fonte de riqueza. Por esta afiliação, os tios maternos tinham poder sobre os sobrinhos cumprindo assim com os seus deveres e obrigações familiares. A afiliação, nesse contexto, impelia para um conjunto de regras que definiam a identidade social da criança ocimbundu em relação aos seus ascendentes, porque determinam a hierarquia dos membros da família,

a forma de herança, dos bens a transmissão dos cargos, a redistribuição da autoridade na sociedade umbundu316. Muitos autores interpretam os direitos e as obrigações dos tios maternos sobre os sobrinhos como um direito à propriedade sua, dando-lhe o destino de acordo com os compromissos e dívidas que contraíam: na escravatura doméstica, entregando-os às comunidades vizinhas, ou a parentes, neste caso à caça, trabalhos comunitários, tarefas no auxílio da defesa do Estado, etc.. Procuramos demonstrar como Silva Porto se inseriu na sociedade umbundu, uma vez que os seus descendentes são incluídos directamente pela via de casamento. Foi pela união endogâmica, através da família que gerou, que Silva Porto se inseriu na sociedade umbundu a partir da sua “oMbala ya Mpoloto”, no Kwitu, na província do Viye, representada no diagrama de parentesco da família Silva Porto, inserto na parte IV.

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CAPITULO III