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I 4 Os Relatos de Vida e Relatos de Ficção

FUNDAMENTOS TEÓRICOS E METODOLÓGICOS

O PROCESSO DE TRANSCULTURAÇÃO NA VIDA DE SILVA PORTO

I. I 4 Os Relatos de Vida e Relatos de Ficção

A produção de Histórias de Vida, Relatos de vida e Relatos de ficção, começaram a tomar amplitude com os trabalhos de Ricoeur na sua obra de referência

Temps et récit, primeira edição de bolso composta por três tomos97: tomo I (1983) trata do percurso migratório numa fase estratégica inicial dos “aventureiros” em África Central e dos aspectos concernentes às intrigas formuladas por esses viajantes sobre as populações africanas que se desencadeiam num processo permanente de conflitos entre os distintos grupos sociais. O tomo II (1984) refere-se à configuração de “Récit de Fiction”. Trata de histórias de ficção contadas pelos “sertanejos” sobre as populações encontradas no novo meio humano, durante o processo de ocorrência do choque interactivo entre ambos os grupos sob olhares diferenciados. É uma etapa na qual ocorre a evolução da alteridade, aspecto subjectivo que se vai cultivando pela necessidade do viajante alcançar a sua perspectiva comercial. Foi um processo ficcional dos “sertanejos” como forma de narrar o “Outro” aplicando as versões que lhes eram mais convenientes. O tomo III (1985) reflecte “o Tempo Relatado”. Durante o processo evolutivo houve uma dinâmica no espaço onde ocorriam as interacções entre os viajantes, as populações encontradas e as autoridades locais. Foi no domínio do comércio, das rotas utilizadas com os seus respectivos produtos impostos, as relações políticas e sociais, as patologias infecciosas e o ecossistema que contribuíram para a narração real dos aspectos vivenciados na sociedade de encontro. Nesse campo fixar-se- ão as imagens do homem africano no seu meio que, simultaneamente será o novo meio do sertanejo e o novo meio de contacto permanente com as chefias locais.

Ressaltamos a originalidade dos conceitos na abordagem de relatos de vida e de ficção. A ficção é o termo usado para designar uma narrativa imaginária, irreal, ou referir obras de arte criadas a partir da imaginação. É difícil estabelecer limites sobre o que pode ser ficcional, e o que pode ser uma "interpretação real". A Enciclopédia

Larousse define ficção como "acto ou efeito de simular, fingimento; criação do

imaginário, aquilo que pertence à imaginação, ao irreal; fantasia, invenção"98. Os sertanejos produziram imagens diferentes da sua cosmovisão comparando visualmente

97 RICOEUR, Paul - Temps et récit. Paris: Seuil, 1983-1985. 3 t.

98 OLIVEIRA, Leonel Moreira de (ed.) - Nova enciclopédia Larousse. Lisboa: Círculo de Leitores, 1997- 1999.

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com as ideias que tinham do universo europeu. O Homem é o único ser vivo que cria uma aparência de realidade para enganar a si próprio ou aos seus semelhantes criando uma espécie de nova realidade, a ficção. O Homem é capaz de moldar o ambiente e seus elementos de acordo com a sua vontade, como afirma Juan Saer99. Na ficção, o Homem repete conscientemente o que o inconsciente faz no sonho, ou seja, cria um mundo para concretizar desejos. Silva Porto, no seu Diário, refere-se à sociedade umbundu como uma sociedade ficcional com padrões de vida estranhos à sua cultura. Contudo, projecta a sua interacção nessa sociedade para alcançar o seu sonho de penetrar na desconhecida África central.

Ao longo da história do pensamento humano, a filosofia, a teoria da arte e a teoria da comunicação têm estudado a questão de como delimitar a fronteira entre ficção e realidade. A camuflagem dos seus limites induz a uma profusão de atribuição de sentidos à ficção e à realidade100. Um relato de vida é um conhecimento que se transmite, geralmente de forma pormenorizada, sobre um determinado assunto. O conceito teve origem no Latim Relātus, diz respeito aos contos e às narrações não demasiado alongadas101. Os relatos podem ser fictícios, (um conto ou uma epopeia) ou pertencer ao mundo da não-ficção como as notícias periódicas. Mas escrever um relato ou uma obra de ficção, não é o mesmo que informar acerca de um facto verídico, apesar do estilo narrativo do relato se manter em ambos os universos. Quando uma pessoa conta algo a outra, está a relatar uma situação, ou seja, a construir um relato. O Diário de viagens de Silva Porto é constituído por relatos da tradição oral que recebeu dos seus pombeiros, chefes locais ocimbundu, mulheres e filhos. A cronologia, os etnemas, os antroponemas e os seus próprios relatos de vida tornaram-se uma prova documental nos dias de hoje. Para Fentress e Wickham as questões de autenticidade histórica são habitualmente decididas por essa via da prova documental. Consideram que o facto de nem sempre isso ser possível nas sociedades iletradas levou a que muitas decisões tomadas, a partir do conhecimento da tradição oral, tivessem sido interpretadas como fontes da verdade histórica ou meras ficções. Jan Vansina etno-historiador, no seu relato

99 SAER, Juan José - El concepto de ficción. Buenos Aires: Seix Barral, 2012. 100 Idem.

101 FENTRESS, James; WICKHAM, Chris - Memória social: novas perspectivas sobre o passado. Lisboa: Teorema, 1994.

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do reinado de Nkongolo contém informações provenientes da tradição oral, terminadas com uma descrição da sua morte às mãos do sobrinho Kalala Ilunga102. Na sua perspectiva todas as informações recolhidas da tradição oral eram credíveis. Contudo, estudos sobre a mitologia Bantu interpretam a personagem de Nkongolo como arco-íris, a “serpente que refreia as águas celestiais”103.

Silva Porto, na condição de autodidacta em etnografia, recolheu dados de um seu informante, na montanha de Yevala-Vala localizada na zona do Mbalundu, durante uma visita propositada àquele local104. Interrogando-o sobre qual a razão da montanha de Yevala-Vala ser tão peregrinada, o ancião respondeu-lhe que era “...dali onde vem a força e a vida do povo umbundu, é a Memba105 dos nossos antepassados...”106. Este é um exemplo que ilustra um relato oral de uma pessoa a outra e que esta, por sua vez, o descreve num documento como uma experiência vivenciada.

As histórias de vida contêm factos e ficção, mas o facto e a ficção é uma separação pretensamente definida. A construção do discurso racional fez do relato de vida um complemento da história social e, consequentemente fez da História a mãe das ciências, porque é ela que detém a fala autorizada sobre o passado, fornecendo-lhe o “relato” fidedigno. Silva Porto, ao escrever o seu Diário, inspira-se nas obras de Camões e Bocage, como por exemplo: “Amélia, filha do meu coração, como relampejar

do trovão”. Apesar do seu elevado grau de empirismo, o sertanejo decalcou para o seu Diário de viagens o esquema, o estilo de escrita como provérbios sentenciais e género

comparativo dos redactores dos periódicos mais publicitados no século XIX, que lia sistematicamente. Aventurou-se inconsciente ou cientemente, a produzir um relato de vida e de ficção num contexto diferente da etno-história e, consequentemente, da

102 VANSINA, Jan - Kingdoms of the savanna. Madison, Wisconsin: The University of Wisconsin Press, 1966.

103 HEUSCH, Luc de - The drunken king, or, the origin of the state. Bloomington: Indiana University Press, 1982.

104 Mbalundu, antigo concelho do Bailundo, antiga Nova Lisboa, localizado na actual província do Wambo, no planalto Central de Angola.

105 Das informações recolhidas durante o nosso trabalho de campo, a palavra certa seria Mpemba. Silva Porto usou a palavra Memba em vez de Mpemba que é a argila branca utilizada nas cerimónias de culto com o significado de purificador. Esta argila também é usada para construir objectos de culto.

106 PORTO, António Francisco Ferreira da Silva - Viagens e apontamentos de um portuense em África: diário [Manuscrito]. Vol. III, pp 15-16.

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literatura oral, pois a história como ciência dos factos representa o real e a ficção numa base da memória.