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4. O ESTADO BRASILEIRO, A QUESTÃO AGRÁRIA E OS MOVIMENTOS

6.1 A Construção do PRONERA

O Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) iniciou seu mandato na Presidência da República enfrentado mobilizações dos trabalhadores, dentre eles os que lutam pela terra. Os movimentos sociais que já haviam sofrido repressões do governo Fernando Collor de Melo (1990-1992), tiveram um recuo na repressão quando Collor foi substituído pelo seu vice, Itamar Franco (1993-1994), após Collor renunciar ao cargo de Presidente da República, durante o processo de Impeachment, quando já estava na eminência de seu mandato ser cassado. O Governo de Franco passou a adotar uma postura de conciliação, com mais diálogo e menos repressão, tentando acalmar os ânimos políticos que haviam se acirrado durante o processo de Impeachment.

Nesse ínterim, a luta pela terra que se intensificara desde o início dos anos 1980, devido à crise econômica internacional e aos conflitos provocados pelo regime civil-militar, foi ampliada, sobretudo no final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Agora, em função dos efeitos da crise internacional, da mudança de foco do capitalismo internacional, que buscou assenhorar-se das oportunidades criadas com o fim do socialismo na URSS e na Europa Ocidental, desviando seus investimentos dos países em desenvolvimento para essas regiões.

Também contribui para o aumento da luta pela terra, a aplicação das reformas neoliberais nos países em desenvolvimento, inclusive no Brasil, iniciada no Governo Collor, com um refluxo no Governo Itamar, voltando a ser a tônica da ação estatal, no Governo FHC.

Durante a campanha Presidencial de 1994, já se fazia sentir a continuidade desse acirramento de ânimos políticos, pela polarização, durante o segundo turno das eleições, entre Lula, defensor de uma perspectiva social, e FHC, de posições claramente neoliberais. Nesse sentido, os movimentos sociais de luta pela terra avaliaram politicamente que haveria a necessidade de continuar a luta e seguir realizando ocupações de terra. Com a vitória de FHC, as forças de repressão estatal empreenderam violenta coerção contra os sem-terra, mantendo acirrado os ânimos políticos, com resultados negativos para os sem-terra.

Podemos citar dois exemplos dessa violência, um deles foi o Massacre de Corumbiara, ocorrido em 9 de agosto de 1995, no município de Corumbiara, no estado de Rondônia, causando a morte de oito sem-terra, dentre eles uma criança de nove anos, e dois policiais. O outro, o massacre de Carajás, aconteceu em 17 de abril de 1996, no município de Eldorado do Carajás, no sul do Pará, resultando morte de 19 sem-terra, provocada pela Polícia Militar do Estado do Pará. Os massacres tiveram repercussão nacional e internacional, resultando na solidariedade aos sem-terra e sua causa.

A repercussão negativa desses acontecimentos para o Governo FHC se fez sentir de imediato, levando-o, uma semana depois do Massacre de Carajás, a criar o Ministério Extraordinário de Política Fundiária (MEPF), pasta que passou a ser ocupada por Raul Jungmann, ex-presidente do Instituto Brasileiro de Meio Ambiente (IBAMA). Quando Jungmann assumiu o cargo, convidou as universidades para colaborar com os esforços do novo ministério no campo da reforma agrária, na pessoa do Prof. João Cláudio Todorov, presidente do CRUB, reitor da Universidade de Brasília (UnB) e coordenador do Grupo de Trabalho de Reforma Agrária (GT/RA-UnB). Nesse contexto, várias parcerias nasceram entre o CRUB e o INCRA. A primeira foi o Projeto Lumiar64, em 1996, de apoio técnico multidisciplinar aos assentamentos da Reforma Agrária, direcionado às tecnologias agrárias e à gestão de recursos (DIAS, 2004; GOMES da SILVA e ARAÚJO, 2008)65. A segunda foi o I Censo da Reforma Agrária66, que abrangeu os assentamentos de todos os Estados do Brasil.

Nesse período, enquanto o governo promovia as reformas neoliberais no aparelho do Estado e na política educacional, fazia o discurso de investimento na educação. Por outro lado, enquanto implantava o projeto neoliberal de qualidade da educação, baseada no custo aluno/ano e na avaliação do sistema, emergia o problema educacional nos assentamentos. Enquanto fazia a defesa do aumento das matrículas no ensino fundamental, os dados do I Censo da Reforma Agrária indicavam o alto índice de analfabetismo e os baixos níveis de escolarização entre os beneficiários da Reforma Agrária.

Dessa maneira, o Censo mostrava uma situação preocupante e serviu de instrumento para os movimentos sociais mobilizarem a sociedade para solucionar sua demanda educacional, o que colocava em questão a propalada qualidade das reformas educacionais empreendidas pelo Governo FHC.

64A discussão metodológica do Projeto Lumiar é realizada por Moreira (1997).

65 O Projeto Lumiar foi substituído pelo serviço de Assessoria Técnica, Social e Ambiental à Reforma Agrária (ATES), criado pelo INCRA, em 2004. Ver avaliação qualitativa entre o Lumiar e o ATES (GOMES da SILVA; ARAÚJO, 2008).

66 O Censo foi realizado no ano de 1996 (ANDRADE; DI PIERRO, 2004, p. 28). Sobre a discussão metodológica de realização I Censo de Reforma Agrária, ver Moreira (1997).

Os movimentos sociais continuaram realizando suas experiências educacionais. Em particular o MST, que colhia os frutos de sua atuação educacional: organizou o Encontro do Espírito Santo; o Coletivo Nacional de Educação; o Setor de Educação nos Estados; realizou a formação em instituto e escola de sua própria responsabilidade; ganhou o Prêmio Unicef. Assim, no período das ―novas frentes de atuação educacional‖ (1995-2000), o movimento dividiu-se em frentes de atuação educacional, ampliando e qualificando a discussão educacional e, ao mesmo tempo, angariando apoios e parcerias para o encaminhamento da questão educacional.

Foi nesse contexto que o MST realizou o I ENERA, na UnB, no final de julho de 1996, com o apoio da CNBB, Unicef e UNESCO e da própria UnB. A realização do encontro tinha como objetivo refletir as experiências educacionais dos assentados, mas foi além do objetivo almejado. O encontro permitiu a interação entre os educadores do movimento, educadores de IESs e representantes de instituições civis brasileiras e multilaterais internacionais. Ao revelar a precária situação da educação nas áreas de reforma agrária, com base nos dados do I Censo dos Assentamentos de Reforma Agrária, o movimento aproveitou para solicitar dos presentes apoio para a causa educacional dos assentamentos. O que transformou o ENERA em evento de plataforma de defesa da educação das populações do campo.

Dessa forma, o I ENERA foi salto qualitativo no tratamento da educação pelos movimentos sociais do campo. A partir dele foi criado o PRONERA, visando atender as demandas educacionais dos assentados da reforma agrária, e aconstruída a Articulação Nacional Por uma Educação Básica do Campo, destinada a organizar a atuação conjunta dos movimentos sociais, IESs, organismos multilaterais internacionais e órgãos públicos para propor e defender políticas públicas/estatais destinadas ao conjunto das populações do campo. Por isso, tanto o PRONERA quanto a Articulação Nacional, tem origem no ENERA e fundamentaram a defesa e a constituição das políticas públicas/estatais de Educação do Campo, levando a discussão da educação para além das fronteiras da reforma agrária, campo de atuação do MST e dos outros movimentos sociais, como a Contag e a CPT e, portanto, para além da luta pela terra e dos assentamentos.

Da mesma forma, a partir da Articulação Nacional, é possível localizar, segundo Garcia (2009), o ―deslocamento teórico‖ dos fundamentos da educação defendida pelo MST, bem como identificar, segundo Santos (2013), uma aproximação do movimento de ―educação do campo‖, cujo MST é um dos mentores e participante, com a pedagogia pós-moderna ou liberal.

De fato, é uma questão de justiça os movimentos sociais buscarem sanar a situação deficitária da oferta educacional no campo. Antes de tudo, as reivindicações de educação das populações no campo constituem uma demanda histórica e carregam o sentido e as práticas centenárias da exclusão dos moradores do meio rural, cuja origem é a questão agrária, tratada em momento anterior, neste trabalho. Se for certo que é uma demanda justa, não é, no entanto, nenhuma exigência revolucionária. A não ser que seja uma demanda de uma educação revolucionária, o que pode ser colocado em questão, dadas as pesquisas sobre os fundamentos da proposta de educação do MST. Menos revolucionário é, ainda, os movimentos sociais buscarem o apoio para a inclusão de demandas específicas nas políticas públicas de educação para o campo e no Plano Nacional de Educação (PNE).

De qualquer modo, são reivindicações que podem ser ideologicamente neutras e, ao mesmo tempo, contribuir para minorar o histórico de abandono da educação das populações do campo. Portanto, pautas que são consideradas justas e dignas de angariar colaborações. O que de fato ocorreu. O que talvez explique a união do MST, CNBB e Organismos Internacionais na defesa da educação das populações do campo, a despeito de possíveis divergências ideológicas entre eles.

Para dar continuidade às reflexões do I ENERA e articular a participação dos apoiadores e instituições presentes nas demandas educacionais dos movimentos sociais no campo, o GT/RA-UnB ficou incumbido de elaborar um projeto nacional de Educação de Jovens e Adultos e outro de Formação de Professores, para assentamentos de reforma agrária, articuladamente com demais IES e os movimentos sociais.

Em outubro daquele ano, reuniram-se os representantes da UnB, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS), Universidade Federal de Sergipe (UFSE) e Universidade Estadual Paulista (UNESP), para discutir a participação das IES no processo educacional e a elaboração de um projeto de educação. O projeto foi elaborado e apresentado no III Fórum das Instituições de Ensino Superior em apoio à Reforma Agrária e III Fórum de Conselho do CRUB, realizado nos dias 6 e 7 de novembro de 1997, que apreciou e aceitou apresentar a educação nos assentamentos rurais como terceira fase da parceria do CRUB com o MEPF, que veio a ser o PRONERA.

Andrade e Di Pierro (2004, p. 28) narram esse acontecimento e, segundo elas: O reitor da UnB, Professor João Cláudio Todorov [11/1993 a 11/1997], respaldado por uma conjuntura favorável, levou a proposta ao Ministro Extraordinário da Política Fundiária, MEPF, Raul Jungmann, sendo bem sucedido nesta interlocução, colocando o Pronera entre as demais parcerias

firmadas entre o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – INCRA e o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras – CRUB – Projeto Lumiar (1996) e I Censo da Reforma Agrária (1996).

O projeto foi acatado pelo Ministro Jungmann, que convidou João Cláudio Todorov, que havia deixado recentemente a reitoria da UnB e, consequentemente, a direção do CRUB, para assumir a coordenação do Programa, criado por meio da Portaria nº 10/98 do MEPF, publicado no Diário Oficial de 17/04/1998. Dessa forma, o PRONERA, foi a terceira parceria criada entre o CRUB e o INCRA.

Com o PRONERA, o Governo Federal passou a financiar projetos de educação de jovens e adultos assentados. Possui o Programa, por isso, a singularidade de ser gestado fora do âmbito governamental, em função de sua elaboração resultar das mobilizações dos movimentos sociais do campo e de sua parceria com as IES, que foi absorvido como um programa do governo federal (MOLINA, 2003; DI PIERRO, 2006). Em função disso, o fato de o PRONERA ser uma ação estatal ou significar o Estado em ação, o torna uma política pública/estatal. Ainda mais que a execução dos projetos do PRONERA são realizados com recursos públicos e sob o domínio de convênios e contratos com o INCRA, um ente estatal.

Assim, uma característica da política pública/estatal, apontada anteriormente, é ser realizada com recursos e sob o domínio do poder estatal, ainda que ela esteja aberta, como no caso do PRONERA, à participação dos movimentos sociais, e possa ser executada em parceria com os IES, como consta nos primeiros Manuais de Operação do PRONERA.