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4. O ESTADO BRASILEIRO, A QUESTÃO AGRÁRIA E OS MOVIMENTOS

6.3 O PRONERA E SUA Relação com a Educação do Campo

Durante o I ENERA, seus participantes criaram, também, a Articulação Nacional Por Uma Educação Básica do Campo, que reuniu os participantes interessados em continuar a reflexão sobre a educação do campo e possibilitou a realização da I Conferência Nacional Por Uma Educação do Campo. Nessa conferência, concretizou-se novamente a parceria de ―movimentos sociais, organizações governamentais e não governamentais, com o apoio da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), da UNESCO, do UNICEF e da Universidade de Brasília‖ (ANDRADE; DI PIERRO, 2004, p. 13), responsáveis por desencadear a construção das políticas públicas/estatais de Educação do Campo.

O objetivo principal da Conferência foi ―recolocar o rural e a educação que a ele se vincula, na agenda política do país‖ e o desafio foi o de ―pensar e fazer uma educação vinculada às estratégias de desenvolvimento‖ (1988, p. 22/3). O intuito é o de incluir na pauta de reflexão o PNE (Plano Nacional de Educação) a proposta de se fomentar uma educação básica do campo. Por isso, a escola do campo é interpelada a construir um ideário pedagógico que nunca se feche em si mesmo, nem mesmo se torne pronto e acabado. Precisa-se pensar a escola do campo como movimento de transformação da realidade (NASCIMENTO, 2015, p. 3).

Dessa forma, convém lembrar que tanto o PRONERA quanto o movimento de ―Educação do Campo‖ tiveram como ponto de partida a realização do I ENERA. E a ―Educação do Campo‖ passou a dar maior abrangência, para além dos assentamentos, às formulações teóricas no campo educacional produzidas pelos movimentos sociais. Proposições teóricas que expressam o posicionamento ideológico, político e pedagógico dessa parcela dos sujeitos do campo.

Assim, a Educação do Campo é movimento histórico em constante (re) construção, sobretudo, porque o campo é um território de disputas das velhas relações sociais do capitalismo e de um novo projeto de relações sociais não

capitalistas. Ela nasceu das lutas dos trabalhadores do campo pelo direito de uma educação pautada no paradigma da Educação do Campo. As lutas foram se tornando vigorosas no cenário político brasileiro e como fruto tem se visto a materialização de políticas públicas voltadas para uma educação que considere os sujeitos do campo (LIMA, 2014a, p. 77).

No entanto, o PRONERA não é sinônimo de Educação do Campo. Ele foi, na verdade, o campo experimental da Educação do Campo. Esta última foi, por sua vez, o campo teórico que subsidiou as reflexões para a elaboração da Política de Educação do Campo, que se configurou como política, pelo menos do ponto de vista legal:

[...] após a publicação das Diretrizes Operacionais da Educação Básica para as Escolas do Campo, através da Resolução CNE/CEB n°1, de 03 de abril de 2002; da Resolução nº 2 de 28 de abril de 2008, na qual o Conselho Nacional de Educação – CNE por meio da Câmara de Educação Básica estabeleceu as Diretrizes Complementares, Normas e Princípios para o Desenvolvimento de Políticas Públicas de Atendimento à Educação Básica do Campo; e do Decreto nº 7352 de 4 de novembro de 2010, que dispõe sobre a política de Educação do Campo e o Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária – PRONERA (LIMA, 2014a, p. 72).

A Educação do Campo é, sobretudo, um movimento de articulações na disputa por espaços e projetos na política pública/estatal de educação, enquanto as políticas públicas/estataisde Educação do Campo são a expressão legal dos anseios de educação das populações do campo, sem ser, de fato, a sua materialização. Por isso, a utopia dos movimentos sociais ainda permanece na busca por uma escola que realize uma educação que respeite a realidade cultural e o cotidiano dos moradores do campo, ou seja, uma educação que:

Trabalha desde os interesses, a política e a economia dos diversos grupos de trabalhadores do campo, nas suas formas de trabalho e de organização, na sua dimensão de permanente processo, produzindo valores, conhecimentos e tecnologias na perspectiva do desenvolvimento social e econômico igualitário desta população. A identificação política e a inserção geográfica na própria realidade cultural do campo são condições fundamentais de sua implementação (CONFERÊNCIA, 1998).

Dentre os fatores importantes da realização da I Conferência estão, de um lado, abrir espaços para se discutir a Educação do Campo e, de outro lado, propugnar pela defesa de legislações favoráveis a essa educação. Segundo Garcia (2009), a partir da I Conferência Nacional: Por uma Educação Básica do Campo, os Movimentos Sociais e outros setores da sociedade, dentre os compromissos assumidos pelos seus representantes e organizadores, está a criação de uma coleção de cadernos, inicialmente denominada ―Por uma Educação Básica do Campo‖, que posteriormente foi chamada simplesmente de ―Por uma Educação do

Campo‖.73 O 1º Caderno da coleção, conhecido por Texto-base, é uma espécie de memória da

I Conferência.

A finalidade dessa publicação foi alimentar a reflexão, motivar a mobilização das bases e favorecer o intercâmbio de experiências, objetivando unir forças pela luta por uma educação pública para o campo. O texto-base74, ―Por Uma Educação Básica do Campo‖, esclarece com

objetividade suas intenções e proposições sobre esse desafio histórico, ao apresentar vários motivos e situações sociais, políticas e culturais que dizem respeito à problemática do campo, em virtude da gama de determinações que o modelo capitalista lhe impõe. Entre eles, está a exclusão da população do campo de direitos à educação e das políticas públicas para sua efetivação, entre outros (GARCIA, 2009, p. 152).

A necessidade de legislação para a educação do/no campo, outro elemento importante discutido na Conferência, possui indicadores do processo de construção do que seriam as políticas públicas/estatais de educação do campo. Resumidamente, apontamos as seguintes:

A primeira conquista da Educação do Campo, segundo o Movimento de Educação do Campo, foi a criação do Programa Nacional da Educação em Áreas de Reforma Agrária (Pronera), pelo Ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA), em 1998, seguida, em 2002, pela aprovação no Conselho Nacional de Educação das Diretrizes Operacionais para a Educação Básica das Escolas do Campo. (Parecer CNE/CEB Nº 36/2001 e (Resolução CNE/CEB Nº 1/2002), ampliada com a Resolução complementar (CNE/CEB Nº 2 de 28 abril de 2008a) (CARVALHO, 2011, p. 21-22, grifo do autor). Na mesma direção, a autora considera que a legislação formam―os marcos legais e institucionais‖ que sinalizam a construção de uma política pública de Educação do Campo no Brasil:

[...] o Parecer (CNE/CEB N°1/2006d) referente ao reconhecimento da Pedagogia de Alternância nos Centros Familiares de Formação por Alternância (CEFFA‘s), regulamenta a execução de práticas pedagógicas em tempos/espaços diferenciados. Outra frente de luta do Movimento da Educação do Campo foi a criação em 2004 de uma Coordenadoria-Geral de Educação do Campo no âmbito Ministério da Educação para execução da política nacional. Em 2006, o Movimento com forte mobilização política junto a este Ministério conquistou o Programa ProJovem saberes da Terra, e o Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciatura em Educação do Campo (Procampo), reivindicação da agenda política da II Conferência Nacional da Educação do Campo de 2004 (CARVALHO, 2011, p. 22).

73A modificação se deve à compreensão crescente da Articulação Nacional ―Por Uma Educação do Campo‖ de que a educação do campo deve ser atendida em sua amplitude, abrangendo todas as modalidades de educação e não apenas se restringindo ao acesso à Educação Básica.

74Por uma Educação do Campo (Memória) [1999] – Organizadores: Edgar Jorge Kolling, Ir. Nery e Mônica Castagna Molina (Nota 94, in: GARCIA, 2009, p. 152).

O papel fundamental do MST na formulação, também, da Educação do Campo, pode ser visto nos ideais acima apresentados, sendo afirmado nas pesquisas sobre a questão, como a citada abaixo, na qual o autor afirma:

[...] a proposta de educação do MST passa a ter papel fundamental na materialidade da EdoC [Educação do Campo]. Isso significa dizer que a - forte influência do movimento de Educação Popular, da Teologia da Libertação e das pedagogias da prática‖, e o amparo em – princípios humanistas e socialistas assumidos na proposta de educação do MST dão suporte e alimentam, em certa medida, a materialidade da EdoC[Educação do Campo] (VERDÉRIO, 2011, p. 120).

A existência do PRONERA marcou a forma de discutir a educação dos assentamentos e dos moradores do campo, bem como influenciou as políticas pública/estatais dessa parcela da população brasileira. A ele foi atribuída a responsabilidade de ampliar a formação e a oferta educacional no interior dos assentamentos. Dessa forma, sua existência confere-lhe o papel importante na educação dos assentados.

A I Pesquisa Nacional de Educação na Reforma Agrária – I PNERA, publicada no ano de 2004, realizada pelos Ministérios do Desenvolvimento Agrário (MDA) e da Educação (MEC), por intermédio do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira – INEP, visou diagnosticar a situação educacional nos assentamentos rurais como forma de subsidiar as políticas de educação do campo. Seu primeiro relatório, publicado em 2004, pelo Inep afirma:

De abrangência nacional, o levantamento foi realizado em fins de 2004 em 5.595 assentamentos rurais de todo o país, distribuídos em 1.651 municípios brasileiros, propondo recensear todos os assentamentos legalizados a partir de 1985. Para uma completa caracterização dos aspectos da demanda e das condições de oferta de educação escolar, foram utilizados três instrumentos de coleta de informações junto a três públicos distintos: professores e dirigentes de escolas situadas nos assentamentos rurais ou em seu entorno imediato; presidentes de associações de produtores rurais; e famílias assentadas. A pesquisa se propôs cobrir as unidades de ensino existentes em todos os assentamentos rurais ou no seu entorno, identificando 8.679 escolas; da mesma forma, foram entrevistadas lideranças comunitárias de todos os assentamentos visitados; e, no que se refere à população assentada, foi investigada uma amostra representativa das 524.868 famílias (DI PIERRO; ANDRADE, 2009, p. 248-249).

Um desdobramento dessa pesquisa foi a realização, em Brasília, no ano de 2005, do I Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo – I ENPEC75. O II Encontro

Nacional de Pesquisa em Educação do Campo – II ENPEC – ocorreu de 05 a 08 de agosto de

75 OI Encontro Nacional de Pesquisa em Educação do Campo, que aconteceu em Brasília, de 19 a 22 de setembro de 2005, foi uma realização conjunta do Ministério do Desenvolvimento Agrário – MDA, do PRONERA e da Coordenação Geral de Educação do Campo do Ministério da Educação – MEC.

2008, na Universidade de Brasília – UnB. O terceiro, realizado em julho de 2010, também teve lugar na UnB. Esses encontros serviriam para levantar questões teóricas e práticas e para desafiar o governo e os movimentos sociais, além de contribuir no sentido de ajudar seus participantes a pensar e elaborar propostas de políticas públicas interministeriais para a promoção do desenvolvimento da educação nos territórios rurais.

Um desdobramento desse processo foi a realização do II PNERA76, lançado em 2012, que reuniu dados sobre a educação na reforma agrária do período de 1998 a 2012 e foi publicada em 2015. Conforme consta na Apresentação do Relatório do II PNERA, com a pesquisa de abrangência nacional, seria possível mapear a condição da oferta e demanda de educação dos assentados, abrangendo os cursos e projetos, as instituições e movimentos sociais parceiros, os educandos beneficiados por nível e modalidade, bem como identificar os municípios e os assentamentos beneficiados pelo PRONERA. A segunda pesquisa agrega as informações sobre os cursos do PRONERA concluídos entre 01/01/1998 e 31/12/2011 (BRASIL, 2015).

A coleta, análise e sistematização dos dados da pesquisa iriam constituir o DATAPRONERA, concebido para o II PNERA para ser, ao mesmo tempo, uma ferramenta de pesquisa e uma ferramenta de gestão (BRASIL, 2015, p. 16). No entanto, durante a realização da pesquisa desta tese, não foi possível o acesso a esse banco de dados, nas diversas tentativas e diferentes meios empreendidos para isso: a busca na internet, na página do site do INCRA ou via contato por e-mail.

Segundo dados mencionados na Apresentação do Relatóriodo II PNERA:

O Pronera promoveu a realização de 320 cursos nos níveis EJA fundamental, ensino médio e ensino superior, envolvendo 82 instituições de ensino, 38 organizações demandantes e 244 parceiros, com a participação de 164.894 educandos. Essas ações qualificaram a formação educacional e profissional de trabalhadoras e trabalhadores, melhorando suas vidas, reescrevendo seus territórios e mudando o campo brasileiro para melhor (BRASIL, 2015, p. 8). A realização do I e do II PNERAs revela, de um lado, que o PRONERA é a comprovação do histórico descaso do Estado brasileiro com a educação do homem rural e, de outro lado, mostra a importância que o Programa adquiriu na questão educacional dos assentamentos:

76O II PNERA aconteceu com a participação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), do Pronera, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) e da Cátedra Unesco de Educação do Campo e Desenvolvimento Territorial da Universidade Estadual Paulista (Unesp), responsáveis pela coordenação nacional do projeto (BRASIL, 2015).

Assim como os assentados e as lideranças dos movimentos sociais, também os gestores governamentais e os agentes de extensão rural (sejam eles órgãos governamentais, universidades, organizações não governamentais ou empresas privadas) convergem sobre a necessidade de elevar os níveis de escolarização dos assentados como requisito para a organização comunitária, o desenvolvimento tecnológico e o êxito econômico dos assentamentos (ANDRADE; DIPIERRO, 2009, p. 248).

Nesse sentido, o conhecimento das dimensões e características da oferta educacional e, sobretudo, do avanço educacional, em direção ao nível superior, por parte dos assentados da reforma agrária, ganha relevância.

O desenvolvimento equitativo e sustentado dos territórios reformados requer também a ampliação de oportunidades de acesso da população assentada ao ensino superior, mediante ampliação do PRONERA, direcionamento específico do PROUNI e concessão de bolsas de estudo, preferencialmente nas carreiras destinadas à formação de recursos humanos necessários aos assentamentos (educação, saúde, ciências agrárias, meio ambiente, administração etc.) (ANDRADE; DIPIERRO, 2009, p. 254-255).

Outro elemento que convém destacar é a alegada abrangência ou alcance da formação dos educadores e da melhoria de qualidade de vida dos assentados, que estão na ponta do processo de formação realizado no Programa. Segundo os coordenadores do II PNERA:

Ao longo desse período, a formação dos educadores no Pronera assumiu duas importantes dimensões. A primeira refere-se à contribuição para a formação dos educadores que vão atuar nos assentamentos e acampamentos da reforma agrária. Essa dimensão denota que o programa não somente possibilitou o acesso à formação dos próprios educadores, mas ainda criou condições especiais para que estes educadores ampliassem o direito à educação para milhares de jovens e adultos no seu próprio lugar de vida e moradia. A segunda dimensão refere-se à própria formação por dentro do programa, ou seja, à capacidade de ampliação da escolarização em diversos níveis pelos próprios educadores. O Pronera contribuiu direta e indiretamente para assegurar o direto ao acesso à educação em diversos níveis, não somente nos níveis mais elementares da formação dos educadores, condição necessária para a qualidade social e política que se busca dar à educação brasileira (BRASIL, 2015, p. 12).

A existência do Programa estaria ampliando e garantindo o direito ao acesso à educação.

Um dos resultados identificados nesta pesquisa refere-se à garantia do direito à educação assegurada pelo programa a um total de 164.894 educandos. São jovens e adultos envolvidos nos cursos em diversos níveis e modalidades. A maioria destes jovens e adultos jamais teria acesso à educação se o programa não existisse, tendo em vista o quase total abandono em que vivem os sujeitos do campo em relação ao acesso à educação em todos os níveis, especialmente em relação aos ensinos médio e superior (BRASIL 2015, p. 11).

A afirmação comum nos estudos é que o PRONERA significa um aumento nas oportunidades, o que pode ser considerado um avanço em termos de inclusão dos assentados na educação. Uma vez que amplia o acesso à educação àqueles que estão impedidos, desenha formas específicas de realizar a formação e possibilitar o acesso à escolarização, inclusive ao ensino superior. Acredita-se, também, que se está realizando uma equiparação de oportunidades, tornando a entrada e permanência no ensino superior acessíveis aos assentados. Essas questões serão alvo de tratamento, mas, antes, tratemos de discutir o PRONERA na conjuntura das políticas neoliberais.