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3. A SOCIEDADE CIVIL E AS POLÍTICAS PÚBLICAS/ESTATAIS NO ESTADO

3.1. A Sociedade Civil

O estudo da sociedade civil no modo de produção capitalista permite apreender as práticas políticas de classe, como indica a epígrafe acima. Isso é possível no Estado moderno tanto pela formulação que vê a sociedade civil baseado no contrato, como formulada por Karl Marx e Friedrick Hegel, que distingue, cada um a seu modo, sociedade civil e sociedade política, permitindo visualizar esta última como momento de mediação do Estado para realização do equilíbrio jurídico e político e aquela como lócus de produção e efetivação das

condições de dominação e de coesão social. Quanto pela formulação de um Estado ampliado, em que a superestrutura é formada pela junção de duas esferas a: sociedade política (Estado em sentido estrito, Estado-coerção) e sociedade civil (Estado ético) (GRAMSCI, 2000).

Segundo Friedrich Hegel (1997), os naturalistas identificaram a sociedade civil do estado de natureza com o próprio Estado. Contrariamente aos naturalistas, o autor considera a sociedade civil do estado de natureza como pré-política, reino da dissipação, da miséria e da corrupção física e ética, e que por isso precisava ser regulada e dominada (CARNOY, 1988, p. 91). Para Hegel, os indivíduos, são obrigados a deixar a família e conquistar, pelo trabalho, a própria sobrevivência, no âmbito da sociedade civil, um outro espaço social, o que teria marcando a evolução do espírito humano para um outro estágio.

A sociedade civil para Hegel é esse ambiente econômico no qual os indivíduos, deixando a família, vão buscar a sobrevivência. Ela é o espaço social em que os indivíduos, em busca do interesse próprio, mediados pelo egoísmo, buscam, pelo trabalho, a própria sobrevivência. Nessa sociedade civil desenvolvem-se as corporações, que são os meios de, pelo trabalho, superar as particularidades e carências. É nela que as ―carências e os meios tornam-se existência real‖. O autor enxerga no interior da sociedade civil a possibilidade de satisfação de carências e de realização dos meios de satisfazê-las, no interior das corporações. Satisfação que ocorre de modo conflituoso, o que demonstra o fim ―limitado e finito‖ da sociedade civil, mas que foi capaz de constituir o contrato como uma ―universalidade jurídica abstrata‖, base ideal, estado de potência do Estado (HEGEL, 1997, p. 214). Assim, na sociedade civil, por meio do contrato, materializa-se a cidadania burguesa.

No entanto, o egoísmo presente nessa ordem social exige, segundo o autor, que o contrato e os indivíduos estejam sob a responsabilidade de uma universalidade, com capacidade moral superior, um poder capaz de unir internamente os interesses das corporações. A sociedade civil é pensada pelo autor como um momento do desenvolvimento do espírito humano em direção ao Universal (Estado). Por isso, Hegel considera que o Estado possui uma razão universal, sendo o único capaz de solucionar os problemas de forma mediada entre as corporações e os seus representantes.

Para Hegel, o espírito humano evoluiu da família, passando pela sociedade civil, até atingir o Estado. Por isso, também, o Estado é considerado por ele como o último estágio do desenvolvimento do espírito humano, a evolução máxima que o espírito humano produziu na história. Da mesma forma, diz ele: é no Estado que a sociedade civil tem a ―sua verdade‖. De fato, é no Estado que se pode identificar a universalização do contrato burguês presente nas corporações. Exatamente por isso, a sociedade civil é momento de refreamento do

conflito, o que o autor não considera. Uma adesão aos interesses capitalista, faz com que o autor só enxergue no Estado a superação do egoísmo das corporações e na sociedade civil a busca egoísta pela satisfação das necessidades.

Contrariamente a Hegel, Karl Marx (2010) considera que o Estado não representa os interesses universais, mas os interesses de uma classe, a burguesia. Um Estado que faz distinção entre a questão política e a questão social. Nesse sentido, a sociedade civil para Marx continua um ambiente da estrutura econômica da vida social instaurada pela burguesia no qual ainda prevalece o egoísmo e, sobretudo, a luta de classe.

Em Marx, o Estado produz uma equação que envolve, ao menos, três dimensões da vida social inauguradas pela revolução política burguesa, são elas: dimensão que transforma a coesão social em objetivo público ou universal de todo o indivíduo; dimensão que faz do direito de posse privada um objetivo de toda associação política; e dimensão que considera a função política uma atribuição universal do Estado. Essas dimensões realizam-se na vida social e são expressões da cidadania burguesa, exercida, sobretudo, na sociedade civil. Indicação do caráter burguês da cidadania do modo de produção capitalista é dada por Marx (2010), na obra Sobre a questão Judaíca e por Marx e Engels (2007), na obra A Ideologia Alemã. Assim, para o pensamento marxista, o Estado assume o monopólio da representação do interesse universal, despolitizando a sociedade, apropriando-se de todas as decisões referentes ao que é comum a todos. Com isso, o conflito material deixa de dirigir-se às corporações (à burguesia) e torna-se um conjunto de pendências particulares e egoístas a serem resolvidas na sociedade civil e, quando muito, dirigidas ao Estado político, por meio dos aparelhos de Estado ou pelo sistema de representação. A situação vital específica e a condição vital específica podem até ser objeto de conflitos, desde que obedeçam a normas e leis universais ou condições a serem definidas pelo Estado, em novas leis gerais.

Segundo Marés (2003, p. 239), o pressuposto lógico da verdade estatal liberal burguesa é a participação de ―todos‖ (homens, mulheres, crianças ou velhos) na ―vontade soberana na constituição do poder‖. E a Constituição ―constituiu‖ o Estado nacional e garantiu direitos. Mas, os liberais optaram por escolher como ―direito principal a propriedade e a partir dela construiu o arquétipo jurídico contemporâneo‖.

Por isso, a sociedade civil do Estado burguês é o âmbito de realização da cidadania burguesa, uma cidadania conquistada e realizada egoisticamente, cujo aparato jurídico-político, também um arquétipo do homem burguês, efetua a conversão do ser social em ser egoísta e produz a metamorfose da força política (social) dos indivíduos em força política de seus representantes, fundando o sistema de representação política. Cidadania que

se baseia, por mais contraditório que possa parecer, na união dos indivíduos egoístas, no entorno de direitos formalmente iguais.

A construção do Estado capitalista e a organização da sociedade civil correspondente resultam na elaboração e manutenção de uma cidadania abstrata. O Estado passa a ser o legítimo depositário da soberania, cabendo ao povo, segundo Marés (2003, p. 239), ―o direito de ser indivíduo, cidadão e não coletividade organizada‖. Esse Estado reconhece, por isso, o direito burguês, a cidadania individual, que implica a ―desconstituição de qualquer ente coletivo que não fosse o próprio Estado‖.

Desse modo, tanto para Marx quanto para Hegel, a sociedade civil diz respeito ao ambiente da estrutura econômica da vida social. Hegel faz o elogia ao Estado, dizendo que ele representa os interesses universais, o bem comum. Contrariamente, Marx afirma que nele prevalece, por exemplo, o egoísmo e o atendimento da classe dominante, a burguesia.

No interior das interpretações marxiana, Antônio Gramsci apresenta outra forma de analisar a relação entre sociedade civil e o Estado. Para o autor, segundo Violin (2006), o Estado ampliado ou superestrutura é composto pela junção sociedade política (Estado Coerção) e sociedade civil (Estado ético). Para Martins (2008, p. 83), Gramsci ―afirmava que as modernas formações econômico-sociais ocidentais são resultantes do dinâmico entrelaçamento de duas esferas societárias, a sociedade civil e a sociedade política‖. Enquanto a sociedade política seria formado por mecanismos e aparelhos coercitivos e repressivos pelos quais a classe dominante detém o monopólio legal da repressão e da violência e exerce a dominação mediante controle da burocracia e o uso da coerção; a sociedade civil seria composta por organizações que elaboram e/difundem as ideologias (escolas, as igrejas, os partidos políticos, os sindicatos, as organizações profissionais, os meios de comunicação etc.). Segundo Martins (2008, p. 83), a ―sociedade civil para Gramsci‖ é constituída pelo ―conjunto de aparelhos, estruturas sociais, que buscam dar direção intelectual e moral à sociedade, o que determina a hegemonia cultural e política de uma das classes sobre o conjunto da sociedade‖. Ao passo que a ―a sociedade política [é] uma extensão da sedimentação ideológica promovida pela sociedade civil, que se expressa por meio dos aparelhos e atividades coercitivas do Estado, visando adequar as massas à ideologia e à economia dominantes‖.

É o âmbito dos aparelhos privados de hegemonia ou dos organismos sociais coletivos voluntários e relativamente autônomos que as classes buscam exercer sua hegemonia, ou seja, realizar guerra de posições para ganhar aliados para suas posições, que resultem em direção política e no consenso. Nesse sentido, no Estado ampliado (sociedade

civil + sociedade política) haveria uma relação equilibrada (hegemonia) entre sociedade civil e sociedade política, sendo que a luta de classe teria sua expressão por meio dos aparelhos privados de hegemonia.

Para a produzir a hegemonia de classe dominante é necessário que esta conforme o que Gramsci chama de bloco histórico, por meio do qual a classe que detém o predomínio econômico possa dirigir ética e politicamente a sociedade. No caso do capitalismo, a classe economicamente dominante exerce sua hegemonia, utilizando os recursos e os aparelhos da ‗sociedade civil‘ e da sociedade política [Estado ampliado] em operações e ações mediadas pelos seus intelectuais comprometidos ou orgânicos (MARTINS, 2008, p. 92).

O Estado se ampliou pois é, dialeticamente, nos aparelhos de hegemonia (na superestrutura) e não exclusivamente na esfera econômica (na estrutura) que se realiza a luta de classes para a obtenção progressiva ou processual da direção político-ideológica e do consenso. Coloca-se, assim, na sociedade civil as relações ideológicas, culturais e políticas e não mais nas relações econômicas, como fizeram Marx e Hegel. Diz-se interpretação dialética de Gramsci pois a interpretação do caráter marxiano da formulação de Grasmsci é lembrada por Carlos Montaño quando afirma, segundo Violin (2006, p. 10), que:

Há em Gramsci (na esteira de Marx) [...] um caráter claramente classista na sociedade civil — aqui se expressa a articulação das esferas sociais [...]: a ‗sociedade civil‘ gramsciana faz parte do Estado (lato sensu) que por sua vez é permeado pelos interesses e conflitos das classes sociais conformadas na estrutura econômica.

Outra interpretação da sociedade civil e da sua relação com o Estado é proposta pela corrente neoliberal. Sua configuração foi explicitada na obra de Francis Fukuyama (1992), intitulada O Fim da História. Esse autor, após realizar uma análise de Hegel, concorda que a democracia liberal burguesa é último estágio do desenvolvimento do espírito humano, desenvolvendo uma perspectiva neoliberal, segundo a qual o capitalismo teria chegado ao último estágio, o mais avançado, do desenvolvimento da humanidade. Nessa direção, o autor recupera os ideais hegelianos de que o Estado seria o último estágio da humanidade. Depois disso, não tem mais história. Não há mais como progredir, pois por meio da democracia liberal a história produziu, segundo o autor, o pleno direito e liberdade.

Uma aproximação, embora forçada, entre os conceitos gramsciano de sociedade civil e os ideais neoliberais tem resultado, segundo Violin (2006) e Martins (2008), uma apropriação indébita da formulação gramsciana do conceito de sociedade civil, que passou a ser utilizada por autores ligados ao terceiro setor, afeitos aos neoliberalismo. Esses fazem isso utilizando a noção de terceiro setor, que passa a ser interpretado com ―os recursos e os

aparelhos da ‗sociedade civil‘ e da sociedade política [Estado ampliado] numa operação mediada pelos intelectuais comprometidos com a manutenção do modelo de sociabilidade presente‖ (MARTINS, 2008, p. 93).

Esse equilíbrio instável entre maior e menor possibilidade de conquistas de direitos ou de hegemonia de interesse da classe trabalhadora também acompanha, além da capacidade de luta dos demandantes, os redesenhos ou reconfigurações do Estado, que são expressões jurídicas das relações do modo de produção capitalista, que adquire novas configurações, que pode ser notado com a transição do Estado Liberal para a configuração do Estado de Bem-Estar e, deste, para uma reconfiguração, em Estado Neoliberal.