• Nenhum resultado encontrado

CAPÍTULO 4. O IMAGINÁRIO E A HERMENÊUTICA SIMBÓLICA

4.1 CONSTRUINDO SIGNIFICAÇÕES

Se eu tivesse que refletir sobre minha posição pessoal ao longo dos anos, eu diria que, desde o começo, sempre rejeitei o ponto de vista do século dezenove que dividia a sociedade humana em “cultura”, que compreendia símbolos e idéias, e “civilização”, que compreendia coisas e artefatos. Para mim, a “civilização” sempre foi parte da personalidade do homem, uma área em que ele expressou seus ideais básicos, seus sonhos, suas aspirações e seus valores.

Peter Drucker95

O ser humano, em sua relação com o ambiente, sempre procurou interpretá-lo e construir sentidos, seja por questões filosóficas ou por questões objetivas e, nessa perspectiva, a cultura, e de forma especial, a mitologia, o auxiliaram a “conhecer” sua origem e promover sua adaptação. Neste processo de dar significado ao mundo, o indivíduo se utiliza de uma função da mente que é a imaginação. Conforme destaca Pitta (1995), o raciocínio e a razão permitem ao sujeito analisar os fatos e compreender a relação existente entre eles; entretanto, não são capazes de criar significado:

Para que a criação ocorra é necessário imaginar. É o que fazem, na sociedade ocidental, os filósofos, os cientistas sociais, os que estudam as religiões, os políticos, os arquitetos, os artistas, os físicos, os matemáticos... Criam filosofias, teorias, religiões, obras... Criam, a cada instante, o mundo. (PITTA, 1995, p.1)

A faculdade de “significar o mundo” implica em entrar no plano simbólico, transformando-se as questões cotidianas por meio da cultura. O símbolo, por sua ambiguidade, assume múltiplos significados e exerce uma reequilibração constante. Entretanto, como alerta Marc Girard (1997), tudo – ou quase tudo – reivindica a etiqueta do símbolo, o que requer estudos que permitam compreender os conceitos atribuídos e os domínios referentes ao processo de simbolização e ao imaginário.

O modelo científico da modernidade se alicerça, segundo apontam Araújo et al (2001, p.6), em uma civilização constantemente solicitada pelo imaginário cujo estudo se apresenta como o lugar de “entre-saberes, um tecido conjuntivo entre as disciplinas em que o saber se tem compartimentado e interpela o investigador e incita-o a um outro modo de fazer ciência que dê conta da complexidade”.

A indissociação entre razão e imaginação é destacada por Silva e Araújo (2006), que resgatam de Wunenburger (2002) e D‟Humiac (1900) a convicção dessa relação de compatibilidade e complementaridade. Conforme menciona Santos (2006), o conhecimento científico é socialmente construído e sua objetividade não implica neutralidade.

A busca exarcebada por uma “cientificidade objetiva” influenciou a forma como a ciência foi se desenvolvendo ao longo dos séculos, condição que foi mencionada por Gilbert Durand, em artigo publicado em 196996, que aponta que “o mal fundamental de que morre talvez nossa cultura é o de haver acreditado na ausência, na minimização das imagens e do mito, em uma civilização positiva, racionalista e asseptizada”.

Mas o imaginário tem se desembaraçado dessa “visão curta”. Conforme ressalta Pitta (1995), a ciência, enquanto conhecimento, pode ser obtida por caminhos variados e, no final do século XX, os progressos da física demonstraram ser impossível estudar o ser humano como um simples objeto. Nesta perspectiva, a autora conclui que “um estudo baseado na observação sensível dos fatos aparece como muito mais adequado para a obtenção de um conhecimento aprofundado de um objeto tão complexo quanto o ser humano”, argumentação que coloca o imaginário como integrante do cenário científico. Como destacam Araújo e Baptista (2003, p.14)

O imaginário não é redutível a explicações parcelares ou sectoriais a cargo deste ou daquele ramo de saber: ele postula sempre a abrangência integradora de um olhar poliédrico e multiperspéctico, melhor ainda, de uma entrelaçada e diversificada rede de “modos de olhar e de ver”, uma vez que o que está em causa não é só a natureza do Homem mas também a sua cultura e a sua história... Por isso mesmo é que o interesse pelo estudo do Imaginário não se limita a explorar a “substância” profunda do mito, mas intenta compreender também a acção humana no quadro das dinâmicas histórico-culturais e políticas envolventes, ou seja, os textos, os intertextos e os contextos...

A abordagem que se adota nesta pesquisa ampara-se nos pressupostos apresentados acima que, entretanto, cabe ressaltar, não são os únicos. Conforme destacam Laplantini e Trindade (1997) o estudo do imaginário pode ocorrer sob diferentes teorias: de um lado as que enfatizam o nível consciente sobre o inconsciente e nas quais imagem, imaginário e símbolo diferem segundo as relações que estabelecem, constituindo-se os símbolos como esquemas de ações intencionais produzidas nas interações dos indivíduos, e, de outro lado, as que

96

Citação constante do artigo publicado na revista Circé, n.1, Lettres Modernes, Paris, 1969, cuja tradução de Hulmo Passos consta dos Anais do II Ciclo de Estudos sobre o Imaginário publicado em Pitta (1984)

consideram imaginário e símbolo como sinônimos que emergem do inconsciente universal, doador de significados e, ao mesmo tempo, irredutível aos significados históricos e culturais que os homens atribuem a esses símbolos”.

De forma específica, a presente pesquisa parte do estudo do imaginário na perspectiva desenvolvida por Gilbert Durand97, um dos principais responsáveis por trazer o imaginário ao campo científico. O trabalho deste antropólogo, que pretendia se constituir em “um modesto repertório inventariado e classificado dos dinamismos imaginários”98

, se transformou em uma teoria que visa uma ordenação do imaginário baseada em um trajeto antropológico. O sentido de “antropológico” empregado pelo autor se associa com a antropologia enquanto um conjunto de ciências que estudam o homo sapiens, entendimento que é visto na citação, extraída de Lévi-Strauss99, que Gilbert Durand apresenta na introdução de sua obra “As Estruturas Antropológicas do Imaginário” na qual concebe

Uma antropologia entendida no seu mais amplo sentido, ou seja, um conhecimento do homem que associe diversos métodos e disciplinas, e que um dia nos revelará os mecanismos secretos que movem este hóspede que está presente sem ter sido convidado para os nossos debates: o espírito humano...(DURAND, 2012, p.21)

Para Teixeira e Araújo (2013), Durand se destaca como um dos grandes pensadores do século XX em função do valor que atribuiu ao homo symbolicus e aos processos de simbolização, o que possibilitou a reabilitação da dimensão dos arquétipos e a força diretiva do mito, demonstrando que o imaginário não é uma vaga abstração, mas segue regras estruturais visando a uma hermenêutica.

Assim, a hermenêutica simbólica adotada nesta tese parte da concepção de uma cultura do imaginário estabelecida por Gilbert Durand que considera o imaginário como um elemento constitutivo e instaurador do comportamento específico do homo sapiens e que tem no “trajeto antropológico” a sua pedra angular (Durand, 2012, p.41). A opção por utilizar esta perspectiva se deve à hermenêutica instauradora e integradora desenvolvida por Gilbert Durand nas suas estruturas antropológicas que culmina em uma articulação biopsicossocial. Considera-se que essa condição, aliada ao eixo estruturante (e não estruturado) da teoria proposta pelo autor, permite uma análise mais profunda do imaginário organizacional.

97

Gilbert Durand, discípulo de Gaston Barchelard, é conhecido mundialmente por seus trabalhos sobre imaginário e mitologia. Indicações sobre sua biografia estão disponíveis em http://www.yle-seti- imaginario.org/userfiles/file/In+Memoriam+12-2012%20-%202.pdf

98 Durand (2012, p.15) 99